A caixa de papelão

Arthur Conan Doyle

A caixa de papelão

Título original: The Carboard Box
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Janeiro de 1893 e com 8 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Carboard Box publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

Ao escolher alguns casos típicos, que demonstrassem bem os extraordinários dotes mentais de meu amigo Sherlock Holmes, esforcei-me, tanto quanto possível, por selecionar os que, apesar de oferecerem vasto campo para aplicação de suas qualidades, apresentassem o mínimo de sensacionalismo. Infelizmente, porém, não há possibilidade de separar inteiramente o elemento sensacional do criminal, e o cronista fica a braços com o dilema de sacrificar pormenores essenciais à narrativa, e dar assim uma falsa impressão do problema, ou usar o material oferecido pelo acaso e não pela escolha. Com este breve preâmbulo, volto às minhas anotações sobre o caso que se revelou uma sucessão de acontecimentos estranhos, embora apavorantes.

Era um dia sufocante de agosto. A Baker Street parecia um forno, e o reflexo do sol sobre os azulejos amarelos da fachada da casa fronteira tornava-se intolerável aos olhos. Custava crer que fossem aquelas as mesmas paredes sombrias que mal se distinguiam através da névoa espessa do inverno. Tínhamos até baixado as cortinas das janelas, e Holmes estava recostado no sofá, lendo e relendo uma carta que recebera pelo correio da manhã. Quanto a mim, o tempo de serviço na Índia habilitara-me a suportar melhor o calor que o frio, e, assim, o termômetro a trinta e cinco graus não me incomodava. Mas o jornal matutino nada continha de interesse. O Parlamento suspendera os seus trabalhos, grande parte da população abandonara a cidade e eu ansiava pelas clareiras verdejantes de New Forest ou pelas praias recobertas de seixos de Southsea. A situação precária de minha conta bancária, contudo, havia me obrigado a adiar as férias, e, no tocante a meu companheiro, nem o campo nem o mar exerciam sobre ele a menor atração. Deliciava-se em permanecer no meio de cinco milhões de pessoas, qual aranha a desenvolver em torno de si os fios da teia, sempre alerta ao menor rumor ou suspeita de um crime inextricável. A apreciação da natureza não encontrava lugar entre seus inumeráveis predicados, e a única mudança que ele podia suportar era desviar seu espírito do malfeitor da cidade para perseguir o colega deste na província.

Percebendo que Holmes estava demasiado absorto para conversar, pus de lado o jornal inútil e recostei-me na cadeira, concentrado em melancólica divagação. De súbito, a voz de meu amigo interrompeu-me o curso dos pensamentos.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— Você tem razão, Watson — disse. — É de fato absurda essa maneira de resolver contendas.

— Incrivelmente absurda! — exclamei. No mesmo instante, porém, compreendendo que ele fizera eco ao que eu estava pensando naquele momento, endireitei-me na Cadeira e fitei-o, atônito.

— Como é possível, Holmes? — gritei. — Isso ultrapassa tudo quanto eu poderia imaginar.

Ele riu gostosamente de minha perplexidade.

— Deve lembrar-se — disse ele — de que quando há pouco tempo li para você um trecho de um conto de Poe, no qual certa personagem acompanha pelo raciocínio os pensamentos íntimos do companheiro, você se mostrou inclinado a considerar o assunto simplesmente um tour de force do autor. Como se afirmasse que estava habituado a fazer a mesma coisa, mostrou-se incrédulo.

— Oh! Não é verdade!

— Talvez não tenha dito nada, meu caro Watson, mas o movimento de suas sobrancelhas deu-o a entender. Assim, quando o vi abandonar o jornal e pôr-se a pensar, aproveitei o ensejo para seguir o curso de sua meditação e, eventualmente, interrompê-lo com uma oportuna observação, a fim de lhe provar que o havia feito. — Todavia, eu estava longe de me dar por satisfeito.

— No exemplo que você leu — disse eu —, o raciocinador tira suas conclusões dos atos praticados pelo homem que ele observa. Se não me engano, este tropeçou num monte de pedras, olhou para as estrelas, e assim por diante. Eu, porém, deixei-me ficar tranqüilamente em minha cadeira. Portanto, que indicação poderia ter-lhe proporcionado?

— Você não é justo para com você mesmo. As feições foram dadas ao homem como meio de exprimir suas próprias emoções, fato que em si pode muito bem ser absurdo.

— Quer dizer que você seguiu o curso de meus pensamentos pela expressão de meu rosto?

— Do rosto e especialmente dos olhos. Talvez se recorde de como teve início seu devaneio, não é verdade?

— Na verdade, não me lembro.

— Então, vou dizer-lhe. Depois de ter atirado o jornal para o chão, gesto esse que me atraiu a atenção para sua pessoa, deixou-se ficar durante meio minuto com o rosto inexpressivo. Em seguida, seus olhos fixaram-se no retrato, recentemente emoldurado, do general Gordon, e percebi, pela mudança de sua fisionomia, que este lhe provocara uma série de reflexões. Estas, porém, não o levaram muito longe. Seu olhar voltou-se subitamente para o retrato ainda sem moldura de Henri Ward Beecher, que se encontra em cima de seus livros. Depois disso, você olhou para a parede e adivinhei-lhe claramente o pensamento. Você considerou que, se o retrato estivesse emoldurado, caberia exatamente naquele espaço vago e ficaria simétrico com o de Gordon, do outro lado.

— Você acompanhou-me maravilhosamente! — exclamei.

— Até aí, dificilmente poderia enganar-me. Mas, nesse momento, você voltou a pensar em Beecher, e seu olhar tornou-se fixo, como se estivesse estudando através das feições o caráter do homem. Depois, seus olhos perderam a firmeza; no entanto, você continuou a mirar o retrato com ar pensativo, evocando os incidentes da carreira de Beecher. Tinha certeza de que não poderia fazer isso sem se lembrar da missão por ele empreendida a favor do norte, durante a guerra civil, pois recordo-me de tê-lo ouvido dar largas à sua indignação pela maneira como foi recebido pêlos mais exaltados de nossos compatriotas. Seu ressentimento era tão forte a esse respeito, que compreendi não lhe ser possível pensar em Beecher sem se recordar disso. Quando, um instante depois, vi seu olhar desviar-se do retrato, suspeitei que seu pensamento se voltara para a guerra civil, e, ao observar-lhe os lábios cerrados, os olhos cintilantes e os punhos crispados, fiquei absolutamente certo de que estava se recordando da admirável bravura demonstrada por ambas as partes naquela luta desesperada. Todavia, seu rosto novamente se carregou, e você sacudiu a cabeça. Refletia sobre a tristeza e o horror daquele conflito, e o inútil desperdício de vidas. Sua mão pousou quase inadvertidamente sobre o ferimento na perna, e um sorriso lhe pairou nos lábios, o que me veio demonstrar que notara o ridículo desse modo de resolver questões internacionais. Foi então que concordei com você, afirmando-lhe que era absurda essa situação, e fiquei satisfeito por ver que todas as minhas deduções eram exatas.

— Exatíssimas! — confirmei. — E agora, depois de me ter explicado tudo, confesso que estou tão perplexo como antes.

— Asseguro-lhe que foi uma experiência muito superficial, caro Watson. E nem lhe teria chamado a atenção para isso, se não fosse a incredulidade demonstrada por você outro dia. Entretanto, tenho aqui entre as mãos um pequeno problema que talvez se mostre de solução bem mais difícil do que meu modesto ensaio de leitura de pensamento. Leu por acaso no jornal um breve parágrafo relativo ao estranho conteúdo de certo pacote enviado pelo correio à srta. Cushing, residente à Cross Street, em Croydon?

— Não, não li nada.

— Ah! Deve ter-lhe escapado, então. Passe-me o jornal. Cá está ele, sob a coluna financeira. Quer fazer o favor de lê-lo em voz alta?

Tomei o jornal que ele me devolvera e li o parágrafo indicado. Trazia o título “Um pacote macabro” e rezava o seguinte:

— “A srta. Susan Cushing, residente à Cross Street, Croydon, foi vítima do que se pode considerar uma brincadeira de mau gosto particularmente revoltante, a não ser que se prove que o incidente tenha significado mais trágico. Às duas horas da tarde de ontem, foi-lhe entregue pelo carteiro um pacote envolto em papel pardo. Dentro encontrava-se uma caixa de papelão cheia de sal grosso. Ao esvaziá-la, a srta. Cushing deparou, horrorizada, com duas orelhas humanas, aparentemente recém-cortadas. A caixa fora despachada de Belfast, como encomenda, na manhã anterior. Não há a menor indicação quanto à identidade do remetente, e o caso torna-se ainda mais misterioso ao considerar-se que a destinatária é solteira, tem cinqüenta anos de idade, sempre levou uma vida muito isolada e possui tão poucos conhecidos ou correspondentes que, para ela, é acontecimento raro receber qualquer coisa pelo correio. Todavia, há alguns anos, quando morava em Penge, alugou quartos a três jovens estudantes de medicina, dos quais foi obrigada posteriormente a desfazer-se devido aos hábitos irregulares e turbulentos deles. A polícia é de opinião que se trata de obra desses estudantes, que, por vingança, enviaram à srta. Cushing, com o intuito de aterrorizá-la, esses sobejos da sala de anatomia.

Essa hipótese apresenta certas probabilidades pelo fato de um dos estudantes ser oriundo do norte da Irlanda e mesmo, como a srta. Cushing crê poder afirmar, de Belfast. Entretanto, o caso está sendo ativamente investigado, sob a direção do sr. Lestrade, um de nossos mais hábeis agentes policiais.”

— Isto é o que diz o Daily Chronicle — disse Holmes, quando terminei a leitura. — Vejamos agora nosso amigo Lestrade. Recebi um bilhete dele hoje de manhã, com os seguintes dizeres:

“Suponho que este caso seja muito a seu gosto. Temos grandes esperanças de esclarecê-lo. No entanto, encontramos certa dificuldade em obter uma pista concreta. Já telegrafamos, naturalmente, para a agência do correio de Belfast, mas, como naquele dia foi entregue ali grande número de pacotes, não foi possível identificar o que nos interessa, nem a pessoa do remetente. A referida caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, e não nos fornece nenhuma indicação. Segundo me parece, a hipótese relativa ao estudante de medicina é a mais viável, mas, se o senhor pudesse dispor de algumas horas, teria muito prazer em vê-lo por aqui. Encontrar-me-á, a qualquer hora do dia, em casa da srta. Cushing ou no posto policial.’

“Que me diz disso, Watson? Sente-se com coragem para enfrentar o calor e me acompanhar até Croydon, com a vaga esperança de mais um caso para seus anais?”

— Estava ansioso por fazer alguma coisa.

— Aí tem, pois, a oportunidade. Chame o criado e peca-lhe que nos arranje um carro. Estarei pronto num instante; apenas o tempo de mudar de roupa e encher a charuteira.

Caiu uma chuva forte durante a viagem de trem, e encontramos em Croydon um calor muito menos opressivo do que na cidade. Holmes fizera-se preceder de um telegrama, de modo que Lestrade, nervoso, vivaz e furão como sempre, aguardava nossa chegada na estação. Uma caminhada de cinco minutos conduziu-nos à Cross Street, onde residia a srta. Cushing.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Era uma rua muito comprida, formada por fileiras de casas de tijolos, sóbrias e bem-conservadas, com degraus de pedra branca e pequenos grupos de mulheres tagarelando no limiar das portas. A meio caminho, Lestrade parou e bateu a certa porta, que foi aberta por uma criadinha. Fomos introduzidos na sala da frente, onde se encontrava a srta. Cushing, mulher de fisionomia plácida, olhos grandes e meigos e cabelos grisalhos, que caíam em bandós sobre as têmporas. Via-se em seu regaço uma coberta de poltrona, já quase toda bordada, e, sobre um tamborete próximo, um cesto com novelos de fios de seda de diversas cores.

— Aquelas coisas horrendas estão lá fora, no quarto de despejo — disse, ao ver Lestrade entrar. — Ficar-lhe-ia grata se as levasse daqui definitivamente.

— É o que vou fazer, srta. Cushing. Conservei-as aqui até que este meu amigo, o sr. Holmes, as visse em sua presença.

— Por que em minha presença?

— Para o caso de ele desejar fazer-lhe alguma pergunta.

— Que adianta fazer-me perguntas quando já lhe afirmei não saber nada a esse respeito?

— Perfeitamente, minha senhora — interpôs Sherlock Holmes com seu tom conciliador. — Estou certo de que já foi muito importunada por causa desse desagradável assunto.

— Já o fui, deveras. Sou amiga do sossego e levo vida retirada. É absoluta novidade para mim ter o nome nos jornais e a polícia em minha casa. Não quero ver aquelas coisas aqui, sr. Lestrade; se deseja examiná-las, deve fazê-lo no quarto de despejo, lá fora.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Era um acanhado quartinho, no estreito quintal dos fundos da casa. Lestrade entrou e trouxe de lá uma caixa amarela de papelão, embrulhada com um pedaço de papel pardo e um barbante. Havia um banco, num canto do quintal, em que todos nos sentamos, enquanto Holmes observava, um por um, os objetos que Lestrade lhe entregara.

— Este barbante é extremamente interessante — ponderou, levantando-o contra a luz e cheirando-o. — Que me diz disso, Lestrade?

— Foi besuntado com alcatrão.

— Precisamente. Trata-se de barbante alcatroado. Terá notado, sem dúvida, que a srta. Cushing o cortou com uma tesoura, como se depreende das duas pontas desfiadas. Isso é importante.

— Não vejo qual a importância de tal fato — retorquiu Lestrade.

— A importância está no fato de o nó não ter sido tocado. Ora, este nó é característico.

— Foi feito com muita precisão. Já o notara também — acrescentou Lestrade com ar complacente.

— Isso no que diz respeito ao barbante — continuou Holmes, sorrindo. — Vejamos, agora, o invólucro da caixa. Papel pardo com forte cheiro de café. Como? Não o havia notado? Creio não existir dúvidas. Endereço escrito em letra de forma e em caracteres muito irregulares: “Srta. S. Cushing, Cross Street, Croydon”. Escrito com pena de ponta grossa e tinta de qualidade muito ordinária. A palavra Croydon foi a princípio ortografada com i, depois transformado em y. O pacote, portanto, foi enviado por um homem — a letra é visivelmente masculina — de limitada cultura e que não conhece a cidade de Croydon. Até aqui, muito bem! A caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, amarela, sem nada de especial exceto duas marcas de polegar no ângulo inferior esquerdo. Está cheia de sal grosso, da qualidade usada para conservar peles e outros produtos comerciais de tipo inferior. E no meio dele é que se encontram estas singularíssimas remessas.

Enquanto falava, retirou as duas orelhas da caixa e, colocando-as sobre uma tábua, em cima dos joelhos, pôs-se a examiná-las atentamente, ao passo que eu e Lestrade, curvados a seu lado, olhávamos alternadamente para aqueles despojos horrorosos e para o rosto atento e sagaz de nosso companheiro. Finalmente, repôs as orelhas macabras na caixa e deixou-se ficar algum tempo imerso em profunda meditação.

— Com certeza, já deve ter observado — disse ele por fim — que estas duas orelhas não pertencem a um mesmo indivíduo.

— Sim, já o notara; mas, se isso é brincadeira de mau gosto da parte de alguns estudantes, a estes seria tão fácil subtrair da sala de anatomia duas orelhas diferentes como um par.

— Perfeitamente; mas não se trata aqui de travessura de estudantes.

— Tem certeza disso?

— As aparências são absolutamente contrárias a tal hipótese. Os cadáveres usados para dissecação normalmente são injetados com um líquido próprio para conservá-los. Ora, estas orelhas não apresentam sinais desse líquido e, além do mais, são frescas. Foram cortadas com instrumento cortante mal-afiado, o que dificilmente aconteceria se fosse obra de um estudante de medicina. Por outro lado, não ocorreria por certo a esse estudante escolher sal grosso como elemento preservativo, mas sim o formol ou o álcool retificado. Repito que não existe aqui nenhuma brincadeira de mau gosto, mas que nos encontramos em face de gravíssimo delito.

Senti um ligeiro arrepio percorrer-me a espinha ao ouvir as palavras de meu amigo e ao ver a gravidade de sua expressão. Aquele prelúdio brutal parecia vaticinar estranha e inexplicável tragédia. Lestrade, porém, abanou a cabeça como quem tivesse ainda suas dúvidas.

— Certamente, podem ser levantadas objeções à hipótese de uma travessura — disse. — Todavia, há razões muito mais fortes contra sua teoria. Sabemos que esta mulher levou vida tranqüila e respeitável durante os últimos vinte anos, tanto em Penge como aqui. Durante esse tempo, quase não se afastou de casa. Por que diabos um criminoso iria enviar-lhe as provas de sua culpabilidade, tanto mais que, salvo tratar-se de atriz consumada, ela parece entender tanto do assunto como nós mesmos?

— É esse o problema que nos cumpre resolver — replicou Holmes —, e por minha parte iniciarei as pesquisas no suposição de ser correto o meu raciocínio e de ter sido cometido um duplo assassinato. Uma dessas orelhas é de mulher: pequena, de contornos delicados e com um orificiozinho para brincos. A outra é de homem, queimada de sol, descorada e também furada para brincos. Ambas as pessoas devem estar mortas; caso contrário, já teríamos sabido alguma coisa. Hoje é sexta-feira. O pacote foi posto no correio quinta-feira cedo; a tragédia, portanto, ocorreu quarta ou terça-feira, ou talvez antes. Ora, se estas duas pessoas foram assassinadas, quem, senão o assassino, teria enviado à srta. Cushing a prova do delito? Podemos, pois, considerar o remetente do pacote como o homem que nos interessa. Contudo, alguma razão poderosa deveria tê-lo feito mandar esta caixa à srta. Cushing. Qual seria? Teria agido dessa maneira a fim de mostrar-lhe ter sido o crime cometido, ou talvez para impressioná-la e afligi-la? Nesse caso, ela sabe de quem se trata. Saberá realmente? Duvido. Se soubesse, por que haveria de chamar a polícia? Poderia ter enterrado as orelhas, e ninguém ficaria sabendo de nada. É o que teria feito se quisesse proteger o criminoso. No entanto, se não tivesse a intenção de protegê-lo, teria dado o nome dele. Há aqui uma confusão que precisa ser esclarecida.

Holmes falara rapidamente, em voz alta, olhando absorto por sobre a cerca do jardim. De súbito, pôs-se de pé e encaminhou-se para a casa.

— Preciso fazer algumas perguntas à srta. Cushing — explicou.

— Nesse caso, vou deixá-lo aqui — respondeu Lestrade —, pois tenho que tratar de outro assunto de menor importância. Creio já ter obtido da srta. Cushing todas as informações que me poderiam interessar. Encontrar-me-á no posto policial.

— Passaremos por lá quando formos para a estação — respondeu Holmes.

Momentos após, eu e ele encontrávamo-nos de novo na sala da frente, onde a impassível senhora continuava trabalhando tranqüilamente em seu bordado. Ao entrarmos, depô-lo no regaço e fitou-nos com os olhos azuis, francos e inquiridores.

— Estou convencida — disse-nos — de que toda essa história não passa de um engano, e que o pacote não me era destinado. Já o disse várias vezes àquele senhor da Scotland Yard, o qual, todavia, se limitou a rir de mim. Que eu saiba, não tenho um único inimigo no mundo. Por que iria alguém fazer tal brincadeira comigo?

— Estou propenso a concordar com a sua opinião, srta. Cushing — replicou Holmes, sentando-se ao seu lado. — Creio ser mais que provável…

Parou de falar e, olhando-o, fiquei admirado ao notar o singular interesse com que fitava o perfil da srta. Cushing. Nesse instante foi-me possível ler em seu rosto expressivo surpresa e contentamento, embora, quando ela se voltou para averiguar a causa de sua interrupção, ele já houvesse recuperado a impassibilidade habitual. Pus-me a estudar, por minha vez, seus cabelos lisos e grisalhos, a graciosa touca, os pequenos brincos dourados e suas feições serenas; nada, porém, encontrei que justificasse a evidente emoção de meu
amigo.

— Há uma ou duas perguntas…

— Oh! Já estou farta de perguntas — exclamou a srta. Cushing com impaciência.

— A senhorita tem duas irmãs, creio.

— Como pode saber isso?

— Logo que entrei nesta sala, vi sobre a prateleira da lareira o retraio de três moças, uma das quais é indiscutivelmente a senhorita, enquanto as outras se lhe assemelham de modo a não deixar dúvidas acerca do parentesco que as une.

— De fato, tem razão. São minhas irmãs Sara e Mary.

— E aqui a meu lado está outro retraio, tirado em Liverpool, de sua irmã mais nova em companhia de um homem que, pelo uniforme, me parece comissário de bordo. Vejo que nessa ocasião ela ainda não era casada.

— Que grande observador!

— É minha profissão.

— Realmente, acertou. Todavia, ela casou-se poucos dias após com Browner. Na época dessa fotografia, ele fazia o serviço regular de navegação para a América do Sul, mas amava-a tanto que não se resignou a passar tanto tempo longe dela, e conseguiu transferência para o serviço costeiro entre Londres e Liverpool.

— No Conqueror, por acaso?

— Não; no May Day, pelo menos na última vez que dele tive notícias. Em certa ocasião, Jim veio visitar-me. Foi antes de ele quebrar sua promessa; desde então, porém, sempre que desembarcava punha-se a beber, e bastavam uns poucos goles para transformá-lo num doido varrido. Ah! Dia fatídico aquele em que começou a beber! Primeiro deixou de me procurar, depois brigou com Sara, e agora que Mary deixou de me escrever, não sei como andam as coisas entre eles.

Era evidente ter a srta. Cushing tocado em assunto que lhe era de extremo interesse. Como a maioria das pessoas de vida solitária, tinha se mostrado tímida a princípio, mas acabara por tornar-se excessivamente loquaz. Contou-nos numerosas particularidades a respeito do cunhado marinheiro, e depois passou ao assunto dos antigos pensionistas, os estudantes de medicina, de cujas travessuras nos fez longa relação, dando-nos seus nomes e os dos hospitais em que praticavam. Holmes ouvia tudo com atenção, fazendo ocasionalmente uma ou outra pergunta.

— A propósito de sua segunda irmã, Sara — disse —, não compreendo como, sendo ambas solteiras, não pensaram em montar casa juntas.

— Ah! Se o senhor conhecesse o gênio de Sara, compreenderia. Tentei morar com ela por ocasião de minha mudança para Croydon, e estivemos juntas até há cerca de dois meses, quando fomos forçadas a nos separar. Não quero falar mal de minha própria irmã, mas Sara sempre foi muito difícil de aturar.

— A senhorita disse que ela se dava mal com seus parentes de Liverpool?

— Sim, mas houve tempo em que eles foram étimos amigos, a ponto de ela se mudar para lá para estar mais perto deles. E, no entanto, agora vive dizendo o pior de Jim Browner. Nos últimos seis meses que passou aqui, não fazia outra coisa senão falar na maneira como ele bebia e em seu mau comportamento. Suspeito que Jim a apanhou fazendo algum mexerico, ficou seriamente zangado e aí está como principiou a inimizade entre eles.

— Obrigado, srta. Cushing — disse Holmes, pondo-se de pé e fazendo uma vênia. — Parece haver-me dito que sua irmã Sara mora na New Street, em Wailington, não é? Passe bem, e creia que lastimo que tenha sido tão importunada num caso com o qual nada tem que ver.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Ao sairmos dali, passava um carro, e Holmes fez sinal ao cocheiro.

— Qual é a distância daqui a Wailington? — indagou.

— Não chega a um quilômetro e meio.

— Muito bem. Suba, Watson; precisamos malhar enquanto o ferro está quente. Embora simples, este caso oferece alguns aspectos muito interessantes. Pare um momento na agência telegráfica mais próxima,
cocheiro.

Holmes expediu um breve telegrama, e durante o resto do trajeto permaneceu recostado no fundo da carruagem, com o chapéu caído sobre os olhos para proteger-se do sol. Nosso veículo parou diante de uma casa não muito diversa da que acabávamos de deixar. Meu companheiro ordenou ao cocheiro que esperasse, e estava para bater à porta quando esta se abriu e um jovem de maneiras circunspectas, vestido de preto e usando uma cartola muito reluzente, apareceu no limiar.

— A srta. Cushing está em casa?

— A srta. Cushing acha-se gravemente enferma — respondeu o jovem. — Apresenta desde ontem distúrbios cerebrais de extrema intensidade. Como seu médico, não posso arcar com a responsabilidade de permitir-lhe visitas. Tomo a liberdade de pedir-lhes para voltarem daqui a uns dez dias.

Dizendo isso, calçou as luvas, fechou a porta e afastou-se a pé, rua abaixo.

— Bem, o que não tem remédio, remediado está — observou Holmes em tom gaiato.

— Talvez ela não estivesse em condições, ou mesmo não tivesse desejo de lhe dizer grande coisa.

— Não pretendia que ela me dissesse nada; queria apenas vê-la. Não obstante, creio ter obtido tudo quanto desejava. Leve-nos a algum hotel decente, cocheiro, onde possamos almoçar; depois, passaremos pelo posto policial para ver nosso amigo Lestrade.

Fizemos juntos uma agradável refeição, durante a qual Holmes não falou de outra coisa senão de violinos, explicando-me com grande satisfação como comprara pela ridícula soma de cinqüenta e cinco xelins, a um judeu vendedor de objetos de segunda mão, na Tottenham Court Road, seu Stradivarius, que valia no mínimo quinhentos guinéus. Esse assunto fê-lo divagar sobre Paganini, e ficamos, pelo espaço de uma hora, sentados diante de uma garrafa de clarete, enquanto desfiava histórias e mais histórias acerca dessa extraordinária personalidade. A tarde já declinava e a luz ardente do sol transformara-se em amena claridade, quando chegamos ao posto policial. Lestrade esperava-nos à porta.

— Aqui está um telegrama à sua espera, sr. Holmes — disse.

— Ah! É a resposta que aguardava. — Holmes abriu-o, leu rapidamente o texto e guardou-o no bolso. — Vai tudo muito bem — acrescentou.

— Conseguiu descobrir alguma coisa?

— Descobri tudo!

— Como?! — exclamou Lestrade, assombrado, fitando Holmes. — O senhor está brincando!

— Nunca disse nada de mais sério em minha vida. Foi perpetrado um crime espantoso, e acredito tê-lo desvendado em todos os pormenores.

— E o criminoso?

Holmes rabiscou algumas palavras no verso de um cartão de visita e estendeu-o a Lestrade.

— Eis o nome dele — explicou. — Todavia, não poderá prendê-lo senão amanhã à noite. Gostaria que meu nome não fosse mencionado no que diz respeito a este caso, porque prefiro associá-lo unicamente a crimes cuja solução ofereça reais dificuldades. Vamos, Watson.

Encaminhamo-nos a pé para a estação, enquanto Lestrade fitava, entre atônito e satisfeito, o cartão que Holmes lhe entregara.

— Este caso — declarou Sherlock Holmes enquanto cavaqueávamos naquela noite, saboreando nossos charutos nos aposentos da Baker Street — assemelha-se aos que você já descreveu sob os títulos de Um estudo em vermelho e O signo dos quatro, nos quais fomos obrigados a raciocinar, seguindo a ordem inversa, dos efeitos para as causas. Escrevi a Lestrade pedindo-lhe que nos forneça os detalhes que ainda nos faltam, os quais só poderão ser obtidos depois de ele ter capturado o homem. Isso podemos ter a certeza de que o fará, pois, embora desprovido totalmente de inteligência, é dotado de uma tenacidade de buldogue quando compreende o que deve fazer. Aliás, foi justamente essa tenacidade a causa de sua ascensão na Scotland Yard.

— Então seus dados ainda não estão completos? — perguntei.

— Estão quase completos no que se refere aos pontos essenciais. Sabemos quem é o autor deste crime revoltante, apesar de ainda ignorarmos a identidade de uma das vítimas. Você, naturalmente, já tirou suas próprias conclusões.

— Imagino ser Jim Browner, o comissário de bordo de um navio de Liverpool, a pessoa de quem você suspeita.

— Oh! É mais do que simples suspeita.

— E, ainda assim, nada vejo senão indícios muito vagos.

— Pelo contrário, para mim nada poderia ser mais claro. Deixe-me recordar-lhe os pontos principais. Como deve estar lembrado, enfrentamos o caso com espírito completamente desarmado, o que, nestas circunstâncias, constitui sempre uma vantagem. Não tínhamos formulado nenhuma hipótese. Ali estávamos, simplesmente para observar e tirar conclusões do que nos fosse dado ver. O que se nos deparou em primeiro lugar? Uma excelente senhora, calma e respeitável, que parecia completamente alheia ao mistério, e um retrato que me revelava possuir ela duas irmãs mais novas. Instantaneamente, surgiu-me no espírito a ideia de que o pacote talvez fosse destinado a uma delas. Deixei de lado essa hipótese, que poderia, em tempo oportuno, ser confirmada ou abandonada. Dirigimo-nos depois, como deve estar lembrado, para o quintal, onde examinamos o singularíssimo conteúdo da caixa amarela.

“O barbante do tipo usado no velame de navios, e, de súbito, o ambiente do mar invadiu nossas investigações. Quando observei que o nó era característico entre marinheiros, que o pacote fora expedido de um porto de mar e que a orelha masculina tinha um orifício para brinco, coisa muito mais comum entre marujos do que entre habitantes de terra firme, convenci-me de que os protagonistas da tragédia deviam encontrar-se nos meios marítimos.

“Ao examinar o endereço do pacote, notei estar ele dirigido à srta. S. Cushing. Ora, a irmã mais velha seria, naturalmente, também srta. Cushing, mas, embora sua inicial fosse S, essa letra poderia pertencer da mesma forma a uma das outras. Nesse caso, deveríamos iniciar nossas pesquisas em base completamente nova. Entrei, portanto, na casa, com o intuito de esclarecer esse ponto. Talvez se lembre de que, quando eu estava para afirmar à srta. Cushing minha convicção de ter havido algum engano, calei-me subitamente. O fato é que acabara de notar algo que me encheu de surpresa e, ao mesmo tempo, restringiu consideravelmente o campo de minhas indagações.

“Na qualidade de médico, Watson, deve saber que não existe parte do corpo humano que apresente tantas variações como a orelha. Cada uma tem as próprias características, e difere de todas as demais. Na Revista Antropológica do ano passado, você encontrará duas breves monografias de minha lavra sobre o assunto. Examinei, por isso, com olhos de entendido, as orelhas contidas na caixa, e verifiquei cuidadosamente suas peculiaridades anatômicas. Imagine, pois, meuespanto quando, ao olhar para a srta. Cushing, reparei corresponder sua orelha à orelha feminina que eu acabara de inspecionar. Não era possível pensar em coincidência. Ali estava o mesmo encurtamento da aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais, era perfeita a semelhança.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Percebi logo a enorme importância de tal observação. Era evidente ser a vítima uma consangüínea e até, provavelmente, parente muito próxima. Comecei a falar-lhe de sua família, e você se lembra que ela nos propiciou informações particularmente preciosas.

“Em primeiro lugar, o nome da irmã era Sara, e até há pouco tempo o endereço de ambas era idêntico, o que tornava patente a causa do engano e a pessoa a quem se destinava o pacote. Falou-nos depois daquele comissário de bordo, casado com sua irmã mais nova, e ficamos sabendo que suas relações com Sara foram tão íntimas durante algum tempo que esta passara a residir em Liverpool a fim de ficar mais próxima dos Browners, embora uma desavença os separasse depois. Essa discórdia fizera cessar todas as relações entre eles durante alguns meses, e por isso, se Browner tivesse tido ocasião de remeter um pacote à srta. Sara, tê-lo-ia feito ao antigo endereço.

“O assunto começava, então, a tornar-se extremamente claro. Sabíamos da existência desse marujo, homem impulsivo e de paixões violentas (lembre-se de que, para ficar mais perto da esposa, renunciou a carreira muito superior), sujeito também a freqüentes bebedeiras. Tínhamos razões para crer que sua mulher fora assassinada e que um homem, talvez um marujo também, havia sido morto na mesma ocasião. Imediatamente, o ciúme se nos apresenta como motivo do crime. Mas por que mandar à srta. Sara Cushing as provas do delito? Possivelmente porque, durante sua estada em Liverpool, ela teve alguma influência na sucessão de acontecimentos que levaram à tragédia. Repare que os navios da linha de Browner fazem escala em Belfast, Dublin e Waterford; presumindo, portanto, que Browner tivesse cometido o crime, embarcando logo após no May Day, Belfast teria sido o primeiro porto do qual podia expedir o macabro pacote.

“Nessa fase, evidentemente, era possível uma segunda solução, e embora a achasse muito menos provável, resolvi elucidá-la antes de ir mais além. Um apaixonado repelido talvez pudesse ter matado o sr. e a sra. Browner, e a orelha masculina seria então do marido. Contra essa hipótese existiam muitas e graves objeções, mas era admissível. Por conseguinte, telegrafei a meu amigo Algar, da polícia de Liverpool, e pedi-lhe que me informasse se a sra. Browner se encontrava em sua residência e se Browner partira no May Day. Feito isso, dirigimo-nos a Wailington, a fim de visitar a srta. Sara Cushing.

“Antes de mais nada, estava curioso por ver até que ponto os traços de família da orelha se tinham reproduzido nela. Por outro lado, talvez ela pudesse fornecer-nos informações importantes, coisa com que, aliás, eu não contava muito. Já devia ter ouvido falar sobre o assunto no dia anterior, pois em toda Croydon não se comentava outra coisa, e só ela podia ter compreendido a quem se destinava o pacote. Se fosse sua intenção ajudar a justiça, decerto já teria se comunicado com a polícia. Em todo caso, era nosso dever procurá-la, e por isso fomos até lá. Verificamos que a notícia da chegada do pacote, pois sua doença datava daquele momento, produzira nela efeito tão violento que a prostrara de cama com uma febre cerebral. Era mais que evidente ter ela compreendido todo o seu significado e, por outro lado, era igualmente claro que teríamos de esperar algum tempo antes de podermos contar com qualquer ajuda de sua parte.

“Na realidade, porém, esse auxílio era-nos desnecessário. As respostas que desejávamos já nos esperavam no posto policial, pois dera a Algar instruções para remetê-las para lá. Não poderiam ser mais conclusivas. A casa da sra. Browner encontrava-se fechada havia mais de três dias, e os vizinhos acreditavam que ela viajara para o sul, em visita a parentes. Algar certificara-se, na companhia de navegação, da partida de Browner a bordo do May Day, que, calculo, entrará amanhã à noite no Tamisa. Ao chegar, será acolhido pelo obtuso mas resoluto Lestrade, e não tenho dúvidas de que obteremos então os pormenores que ainda nos faltam.”

Sherlock Holmes não viu frustradas suas expectativas. Dois dias mais tarde, recebia um envelope volumoso que continha um bilhete do detetive e um documento datilografado constando de várias páginas de papel de carta.

— Lestrade apanhou-o, como eu esperava — disse Holmes, lançando-me um olhar significativo. — Talvez lhe interesse saber o que ele diz.

“Meu caro sr. Holmes:

De acordo com o plano por nós estabelecido a fim de poder provar nossas teorias, dirigi-me ao cais Albert, ontem às dezoito horas, e subi a bordo do May Day, propriedade da Liverpool, Dublin & London Stream Packet Company. Procedendo a indagações, fui informado de que efetivamente se encontrava ali um comissário de nome James Browner, que se portara durante a viagem de maneira tão estranha que o capitão se vira forçado a dispensá-lo de suas funções. Descendo à sua cabina, fui encontrá-lo sentado num caixote, com a cabeça entre as mãos, agitando-se como um demente. É um tipo corpulento, robusto, de rosto escanhoado e pele trigueira — meio parecido com Aldrige, que nos auxiliou no caso da falsa lavanderia. Quando soube do objetivo de minha visita, pôs-se de pé num salto felino, e eu já estava com o apito na boca para chamar dois homens da polícia fluvial que me esperavam do lado de fora quando ele, dando mostras de completa falta de ânimo, estendeu maquinalmente as mãos às algemas, sem opor a menor resistência. Levamo-lo imediatamente para a prisão, juntamente com o caixote, que pensávamos pudesse conter algo de acusador; no entanto, além de um facão afiado, como os usados pela maioria dos marinheiros, nada encontramos que merecesse nosso trabalho. Mas verificamos não serem necessárias mais provas, pois, uma vez diante do inspetor de serviço, pediu licença para fazer uma declaração que, como é natural, foi anotada literalmente pelo nosso taquígrafo. Mandamos tirar três cópias datilografadas, das quais lhe mando uma. A coisa, como sempre imaginei, resolveu-se de maneira extremamente simples. Todavia, fico-lhe agradecido pela sua gentil assistência na investigação deste caso. Com as melhores saudações, creia-me seu amigo devotado,

G. Lestrade.”

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— Hum! A investigação era realmente muito simples — comentou Holmes; — no entanto, não creio que assim lhe parecesse quando nos procurou pela primeira vez. Vejamos, entretanto, o que diz Jim Browner. Eis sua declaração, feita diante do inspetor Montgomery, no posto policial de Shadwell, que tem a vantagem de ter sido registrada com as próprias palavras do criminoso:

“Se tenho alguma coisa que dizer? Sim, muitíssimo. Sinto necessidade de aliviar minha consciência. Se quiserem, podem enforcar-me ou deixar-me em paz. Pouco me importa. O que posso afirmar é que não preguei o olho desde que fiz aquilo, e não sei se jamais conseguirei fazê-lo. Algumas vezes é o rosto dele que vejo, mas é o dela que me surge diante dos olhos com mais freqüência. Não consigo fazê-los desaparecer de minha frente. Ele fita-me, carrancudo e ameaçador; ela, porém, olha-me com surpresa. Ah! Pobrezinha! O que não teria sentido ao ver a morte estampada num rosto onde até então só vira amor!

“No entanto, a culpa foi toda de Sara, e possa a maldição de um desgraçado cair sobre sua cabeça e fazer-lhe apodrecer o sangue nas veias! Não digo isso para me inocentar; tinha recomeçado a beber, como um bruto que sou. Mas tudo isso ela me teria perdoado; ela continuaria ligada a mim como uma corda à sua caçamba, se a figura daquela mulher nunca tivesse escurecido a porta de nosso lar. Pois Sara Cushing amava-me — esta foi a origem da tragédia —, amava-me até sua paixão desvairada se transformar em ódio venenoso quando percebeu que para mim tinham mais valor as pegadas de minha mulher na lama do que todo o seu corpo e alma juntos.

“Eram três irmãs. A mais velha era uma boa criatura; a segunda, um demônio, e a terceira, um anjo. Quando me casei, Sara tinha trinta e três anos, e Mary, vinte e nove. No início, a felicidade era completa em nosso lar, e em toda Liverpool não existia melhor esposa do que minha Mary. Certo dia convidamos Sara para passar uma semana conosco, mas a semana converteu-se num mês, os meses sucederam-se, e ela acabou por tornar-se pessoa da casa.

“Minha situação financeira naquela época era boa, tínhamos começado a economizar algum dinheiro, e tudo corria às mil maravilhas. Meu Deus, quem poderia supor que iríamos terminar assim? Quem poderia ao menos imaginá-lo?

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Freqüentemente, eu passava os fins de semana em casa, e algumas vezes, quando o navio ficava retido à espera de carga, tinha sete dias de licença, o que me proporcionava maior contato com minha cunhada. Era uma bela mulher, alta, morena e enérgica, de porte altivo e tinha olhos que pareciam lançar chispas de fogo. Todavia, quando a pequenina Mary estava em casa, nem pensava nela, e isso eu juro pela esperança que tenho na misericórdia divina.

“Às vezes, tinha a impressão de que ela desejava ficar só comigo ou procurava convencer-me a sair a passeio em sua companhia. No entanto, jamais dei importância a isso. Mas certa noite meus olhos abriram-se. Tinha desembarcado e, chegando a casa, encontrei apenas Sara à minha espera.

“— Onde está Mary? — perguntei.

“— Oh! Saiu para pagar umas contas.

“Fiquei impaciente e pus-me a andar de um lado para outro na sala.

“— Você não pode ficar sossegado cinco minutos sem Mary, Jim? — disse ela. — É bem pouco lisonjeiro para mim que não possa contentar-se com minha companhia por tão pouco tempo.

“— Não fique zangada comigo, minha cara — desculpei-me, estendendo-lhe a mão num gesto carinhoso. Ela, porém, tomou-a de súbito entre as suas, que queimavam como se estivesse com febre. Fitei-a nos olhos e compreendi tudo num relance. Não tivemos necessidade de falar, nem ela nem eu. Assumi um ar severo e retirei a mão de entre as suas. Ela permaneceu algum tempo em silêncio, depois levantou o braço e bateu-me no ombro.

“— Paciência, meu velho — disse-me e, com uma espécie de risada irónica, saiu da sala.

“Pois bem, desse dia em diante Sara passou a odiar-me de todo o coração. E de que ódio é capaz aquela mulher! Fui idiota por deixá-la continuar a viver conosco, um rematado idiota; mas nunca disse nada à minha mulher, pois sabia que a iria desgostar. Tudo ficou como antes; todavia, algum tempo depois, principiei a notar certas mudanças em Mary também. Ela, que sempre se mostrara confiante e inocente, tornara-se esquisita e suspeitosa. Queria saber onde eu estivera e o que havia feito, a proveniência de minhas cartas, o conteúdo de meus bolsos e outras tantas tolices. Dia a dia se tornava mais estranha e irritável, provocando discussões pêlos motivos mais fúteis. Tudo isso me deixava francamente perplexo. Sara passou a evitar-me; no entanto, ela e Mary eram inseparáveis. Percebo agora que ela conspirava contra mim e envenenava a alma de minha mulher. Entretanto, eu, cego e cretino, não via nada disso. Foi então que quebrei a promessa e recomecei a beber, mas não creio que o tivesse feito se Mary continuasse a ser a mesma de antigamente. Tinha, então, motivos bastantes para se sentir desgostosa comigo, e a cisão entre nós aumentava cada vez mais. Entretanto, apareceu em cena esse maldito Alec Fairbairn, e a situação piorou sensivelmente.

“Foi para ver Sara que ele foi pela primeira vez à minha casa, mas logo suas visitas destinavam-se a todos nós, pois era um homem de maneiras insinuantes e arranjava amigos aonde quer que fosse. Rapaz agradável, audacioso, elegante, vira meio mundo e sabia falar do que vira. Era sem dúvida bom companheiro, e sua educação excedia a de um marujo. Por isso, julgo que houve uma época em que viajava mais como passageiro do que como tripulante. Durante um mês não fez outra coisa senão ir à minha casa, e nem por um momento me passou pela cabeça a ideia de que qualquer mal pudesse resultar de seus modos gentis e suaves. Finalmente, porém, algo me fez suspeitar, e desde então minha tranqüilidade desapareceu para sempre.

“Na essência, o episódio foi insignificante. Eu entrara em casa de improviso e, ao transpor a soleira da porta, notei um clarão de alegria no rosto de minha mulher. Contudo, quando viu que se tratava de mim, essa luz desapareceu, e ela voltou-se com ar desapontado. Isso bastou-me. Não existia ninguém, além de Alec Fairbairn, cujo andar ela pudesse confundir com o meu. Se naquele momento o tivesse ao alcance das mãos, tê-lo-ia morto, pois sempre que fico fora de mim procedo como um louco. Mary leu nos meus olhos a fúria demoníaca, correu para mim e segurou-me pela manga do casaco.

“— Não, Jim, pelo amor de Deus! — suplicou.

“— Onde está Sara? — perguntei.

“— Na cozinha — respondeu.

“— Sara — gritei —, não quero que Fairbairn ponha mais os pés aqui dentro.

“— E por quê?

“— Porque assim o ordeno.

“— Oh! — exclamou —, se meus amigos não são dignos desta casa, eu também não o sou.

“— Faça como quiser — repliquei-lhe —, mas se Fairbairn tornar a aparecer por aqui, mandar-lhe-ei uma de suas orelhas como lembrança.

“Acredito que a tenha assustado com a expressão de meu rosto, pois não disse mais nada, e no dia seguinte abandonou nossa casa.

“Ora, não sei se essa mulher agia assim por simples maldade, ou se pensava poder revoltar-se contra minha mulher, encorajando-a a trilhar seu caminho. Seja como for, ela arranjou uma casa a dois quarteirões de distância, onde alugava aposentos a marinheiros. Fairbairn costumava alojar-se lá, e Mary ia freqüentemente tomar chá com a irmã e ele. Quantas vezes ela foi, não sei dizer. Certo dia, porém, segui-a, e, ao chegar à porta, Fairbairn fugiu covardemente, pulando o muro do quintal. Jurei a minha mulher matá-la se a encontrasse novamente na companhia daquele homem, e levei-a para casa, soluçante e trêmula, branca como uma folha de papel. Já não existia entre nós a menor sombra de amor. Percebia o ódio e o temor que ela me votava, e quando, por causa disso, me punha a beber, o desprezo juntava-se a esses sentimentos.

“Sara, entretanto, compreendeu que não lhe era possível ganhar o suficiente para viver em Liverpool. Por isso — pelo menos assim o creio — voltou a viver com a irmã em Croydon, mas a situação em minha casa continuou no mesmo estado vacilante de sempre. Finalmente, chegou esta última semana e toda a maldição e ruína que se seguiram.

“Foi assim. Tínhamos embarcado no May Day para uma viagem de sete dias, mas, devido a certa avaria a bordo, fomos obrigados a permanecer no porto durante doze horas. Deixei o navio e fui para casa, pensando na surpresa que iria causar a minha mulher e esperando que ela talvez ficasse contente por me ver de volta tão cedo. Essa idéia ainda me empolgava quando dobrei a esquina de minha rua, no momento em que passou por mim um carro, em cujo interior vi minha mulher sentada ao lado de Fairbairn, ambos conversando e rindo animadamente, sem notarem minha pessoa, que os observava imóvel na calçada.

“Asseguro-lhes que, daquele momento em diante, já não fui senhor de mim próprio, e tudo me parece um sonho confuso ao recordar os acontecimentos. Nestes últimos tempos andara bebendo muito, e as duas coisas juntas uniam-se para me transtornar completamente. Agora sinto qualquer coisa a bater-me na cabeça como o malho de um britador, mas naquela manhã tinha todo o Niagara assobiando e zumbindo nos ouvidos.

“Corri desabaladamente atrás do carro. Tinha nas mãos um pesado bastão de carvalho e afirmo-lhes que, desde o princípio, comecei a ver tudo vermelho; no entanto, a corrida tornou-me também astuto e, de vez em quando, procurava ficar um pouco para trás, a fim de ver sem ser visto. Dentro de pouco tempo eles pararam na estação. Havia muitas pessoas junto à bilheteria, e pude, portanto, aproximar-me deles sem ser notado. Compraram bilhetes para New Brighton; fiz o mesmo, mas instalei-me três vagões atrás. Chegados a seu destino, desceram e dirigiram-se para a praia. Eu acompanhava-os sempre a cerca de uma centena de metros de distância. Vi-os, por fim, alugar um barco e sair remando, pois fazia muito calor e eles julgavam sem dúvida que sobre a água o ar estaria mais fresco.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Na verdade, era como se estivessem em minhas mãos. O dia estava algo enevoado, e nada se via para além de certa distância. Aluguei também um barco e fui no encalço deles. Conseguia distinguir-lhes o contorno do barco, mas iam quase tão depressa como eu e já deviam estar a um quilômetro e meio da praia quando os alcancei. A neblina formava como que uma cortina à nossa volta, e dentro dela estávamos os três. Deus meu! Jamais poderei esquecer a expressão de seus rostos quando viram quem estava no barco que se aproximava! Ela soltou um grito de pavor, ele pôs-se a praguejar como um alucinado e atirou um remo em minha direção, pois deve ter lido nos meus olhos um presságio de morte. Eu esquivei-me ao golpe e atingi-o com meu bastão, que lhe espatifou a cabeça como se fosse um ovo. É possível que a tivesse poupado, apesar de toda a minha loucura. Ela, porém, lançou os braços em torno dele, gritando desesperadamente e chamando-o ‘Alec’. Desferi, então, novo golpe, e prostrei-a a seu lado. Sentia-me qual besta feroz que houvesse provado sangue. Se Sara estivesse presente, por Deus, ter-se-ia juntado a eles. Puxei de minha faca e… bem, chega! Já disse o bastante. Experimentava certa alegria selvagem ao pensar no que Sara sentiria diante daqueles dois testemunhos do resultado de suas intrigas. Amarrei então os corpos ao barco, quebrei uma tábua do fundo e fiquei ali perto até submergirem de todo. Sabia muito bem que o proprietário da embarcação julgaria que ambos tinham perdido o rumo na névoa, sendo impelidos para o alto-mar. Limpei-me bem. Depois regressei a terra e reembarquei em meu navio, sem que pessoa alguma suspeitasse de tudo quanto se passara. Naquela noite, preparei o pacote para enviá-lo a Sara Cushing, e no dia seguinte remeti-o de Belfast.

“E aqui têm toda a verdade. Podem enforcar-me ou fazer o que quiserem de mim, pois não poderão punir-me mais do que já fui punido. Não consigo fechar os olhos sem ver aqueles rostos a fitar-me. . . como o fizeram quando viram meu barco surgir ao lado do deles dentre a névoa. Matei-os rapidamente, mas eles estão me matando devagarinho; sei que, se isso durar mais uma noite, ficarei louco ou morrerei antes do amanhecer. O senhor não me porá sozinho numa cela, não é verdade? Pelo amor de Deus, não o faça. Oxalá seja tratado no dia de sua agonia como me tratar agora!”

— Qual é o significado disso tudo, Watson? — proferiu Holmes, em tom solene, ao terminar a leitura. — Que propósito anima este círculo de desgraça, violência e terror? Deve tender para um fim. De outro modo, nosso universo seria governado pelo acaso, o que é inadmissível. Mas qual será esse fim? Eis o imenso, imutável e eterno problema, de cuja solução a mente humana se encontra mais longe do que nunca.

1894
Memórias de Sherlock Holmes

1. Estrela de Prata § 2. A caixa de papelão
3. A face amarela § 4. O escriturário da corretagem
5. A tragédia do “Gloria Scott” § 6. O ritual Musgrave
7. O enigma de Reigate § 8. O corcunda
9. O paciente internado § 10. O intérprete grego
11. O tratado naval § 12. O problema final

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock