O atleta desaparecido

Arthur Conan Doyle

O atleta desaparecido

Título original: The Missing Three-quarter
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Agosto de 1904 e com 7 ilustrações de Sidney Paget
e na Collier´s Weekly, em Novembro de 1904,
com 6 ilustrações de Frederic Dorr Steele.

Sobre o texto em português
Este texto digital reproduz a
tradução de The Missing Three-quarter publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

The Missing Three-Quarter § Capa da Collier’s, com ilustração de Frederic Dorr Steele (Cortesia: University of Minnesota Libraries)

The Missing Three-Quarter § Capa da Collier’s, com ilustração de Frederic Dorr Steele (Cortesia: University of Minnesota Libraries)

Estávamos habituados, na Baker Street, a receber estranhos telegramas, mas lembro-me especialmente de um que nos foi entregue numa feia manhã de fevereiro, há sete ou oito anos, e que deixou Sherlock Holmes pensativo durante um quarto de hora. Era endereçado a ele e dizia:

“Favor esperar-me. Grande infelicidade. Jogador ala direita desaparecido. Indispensável amanhã.

Overton”

— Carimbo do Strand, expedido às dez e trinta e seis — disse Holmes, relendo-o. — O sr. Overton evidentemente estava muito excitado quando o mandou, e por isso se mostra incoerente. Bem, bem, ele já terá chegado quando eu acabar de ler o Times, e ficaremos a par de tudo. O mais insignificante dos problemas será bem recebido, nestes dias de ociosidade.

Os negócios estavam realmente parados, e eu aprendera a temer os períodos de inação, pois sabia que a mente de meu amigo era tão ativa que seria perigoso deixá-la sem material com que se ocupar. Há vários anos convivia com ele na maior intimidade. Como médico, zelava por sua saúde; como amigo, acompanhava com muito interesse sua brilhante carreira. Conhecia-lhe, pois, todos os hábitos e características individuais.

Holmes tinha um sono leve, acordando várias vezes no meio da noite. Freqüentemente, em períodos de inação, surpreendia em seu rosto ascético um ar abatido e nos olhos inescrutáveis uma expressão sonhadora. Por isso abençoei o sr. Overton, fosse ele quem fosse, já que viera, com sua enigmática mensagem, quebrar a monótona calma que, para Holmes, era mais perigosa do que todas as tempestades de sua tormentosa existência.

Conforme esperávamos, o telegrama foi logo seguido da pessoa que o mandara. O cartão do sr. Cyril Overton, do Trinity College, Cambridge, anunciou a chegada de um rapaz enorme, sólido e musculoso, cujos ombros quase tocavam os dois lados do batente. Olhou-nos de um para o outro, com rosto simpático, mas onde havia uma expressão ansiosa.

— Sr. Sherlock Holmes? — perguntou.

O meu amigo inclinou-se.

— Estive na Scotland Yard, sr. Holmes. Falei com o inspetor Hopkins. Ele me aconselhou a vir procurá-lo. Disse que o caso, ao que lhe parece, era mais para o senhor do que para a polícia oficial.

— Por favor, sente-se e conte-me o que se passou.

— É horrível, sr. Holmes, simplesmente horrível! Não sei como não fiquei com os cabelos brancos. Godfrey Staunton… Ouviu falar nele, com certeza… Ele é simplesmente o cabeça de toda a equipe da escola. Eu preferiria ficar privado de dois outros jogadores a perder Godfrey. Para passar a bola, atacar ou marcar os adversários, ninguém o iguala. Além disso, tem cabeça, e faz com que todos joguem com equilíbrio. O que vou fazer? É o que lhe pergunto, sr. Holmes. Temos Moorhouse, o primeiro reserva, mas foi treinado como centro-avante e mete-se sempre no barulho, em vez de ficar na ponta. É um bom jogador, não há dúvida, mas não tem cabeça e não sabe correr. Ora, Morton ou Johnson, da equipe de Oxford, poderiam dar-lhe um baile! Stevenson é suficientemente rápido, mas tem grandes defeitos e não merece um lugar de responsabilidade. Não, sr. Holmes, estamos perdidos, a não ser que nos ajude a encontrar Godfrey Staunton.

Holmes ouvira com ar de divertida surpresa esse longo discurso, pronunciado com sinceridade e energia, e a todo momento reforçado pelo rapaz com uma palmada da mão musculosa no joelho. Depois que nosso visitante se calara, Holmes estendeu a mão e pegou um livro, procurando a letra S. Dessa vez, procurou em vão naquela variada fonte de informações.

— Temos Arthur H. Staunton, o próspero falsificador — disse Holmes. — E Henry Staunton, que ajudei a mandar para a forca, mas não encontro nenhum Godfrey Staunton.

Foi a vez de nosso visitante ficar admirado.

— Oh, sr. Holmes, pensei que o senhor soubesse tudo — disse ele. — Então, se nunca ouviu falar em Godfrey Staunton, com certeza também não conhece Cyril Overton.

Holmes sacudiu a cabeça, bem-humorado.

— Santo Deus! — exclamou o atleta. — Oh, fui primeiro reserva da Inglaterra contra Gales e capitão da equipe da universidade, durante o ano inteiro. Isso ainda não é nada, mas pensei que não houvesse uma alma na Inglaterra que não conhecesse Godfrey Staunton, o maior craque de Cambridge, Blackheat e cinco internacionais. Santo Deus, sr. Holmes, onde o senhor tem vivido?

Holmes riu do ingênuo espanto do rapaz.

— O senhor vive num mundo diferente do meu, sr. Overton, um mundo melhor e mais sadio. Meu trabalho ramifica-se por muitas seções da sociedade, mas, sinto prazer em dizê-lo, nunca atingiu o esporte amador, que é o que há de melhor e de mais sadio na Inglaterra. Mas sua inesperada visita hoje de manhã prova-me que, mesmo nesse mundo de ar fresco e jogo limpo, pode haver trabalho para mim. E agora, caro senhor, peço-lhe que me conte lentamente e com exatidão o que aconteceu, e de que maneira deseja meu auxílio.

O rosto de Overton adquiriu a expressão de um homem que está mais habituado a usar os músculos do que o cérebro, mas, pouco a pouco, com muita repetição e falta de clareza (que vou omitir na minha narrativa), contou-nos esta estranha história.

— Foi assim, sr. Holmes. Como disse, sou o capitão da equipe de rúgbi da Universidade de Cambridge, e Godfrey Staunton é meu melhor homem. Amanhã vamos jogar contra Oxford. Chegamos a Londres ontem e instalamo-nos no Hotel Bentiey. Às dez horas, fui ver se os rapazes estavam na cama, pois acho necessário muito sono e disciplina para que um grupo se conserve em forma. Falei com Godfrey antes de ir vê-lo na cama. Pareceu-me pálido e preocupado. Perguntei-lhe o que havia. Respondeu-me que estava bem, apenas com um pouco de dor de cabeça. Dei-lhe boa-noite e deixei-o. Meia hora mais tarde, o porteiro contou-me que um homem de aparência rude, de barba, viera trazer um bilhete para Godfrey. O porteiro levou o bilhete ao quarto do rapaz. Godfrey leu-o e caiu numa cadeira, como que fulminado. O porteiro ficou tão assustado que quis chamar-me, mas Godfrey impediu-o, bebeu um gole de água e pareceu melhor. Depois, desceu, disse umas palavras ao homem que trouxera o bilhete e saíram juntos. O porteiro viu-os sair quase correndo, na direção do Strand. Hoje de manhã, Godfrey não foi encontrado no quarto, a cama dele não fora desfeita e estava tudo como na noite anterior. De-115 == pois de ter saído inesperadamente com aquele homem, não ouvimos mais uma palavra a respeito dele. Não creio que ainda volte. Era um esportista, sr. Holmes, até a raiz dos cabelos, e não teria interrompido o treino e abandonado o seu capitão se não houvesse um motivo muito forte. Não. Creio que se foi de uma vez para sempre, e que nunca mais o veremos.

Holmes ouviu com o maior interesse a estranha narrativa e, por fim, perguntou:

— Que providências o senhor tomou?

— Telegrafei para Cambridge, para saber se tinham tido notícias dele. Já veio a resposta. Não sabem de nada.

— Ele poderia ter voltado para Cambridge?

— Sim, havia um trem muito tarde, às onze e quinze.

— Mas, ao que lhe consta, o rapaz não o tomou, não?

— Não; ninguém o viu.

— O que o senhor fez em seguida?

— Telegrafei para Lorde Mount-James.

— Por quê?

— Godfrey é órfão, e Lorde Mount-James é seu parente mais próximo; seu tio, creio.

— Ora! Isso dá outro aspecto ao caso. Lorde Mount-James é um dos homens mais ricos da Inglaterra.

— Foi o que Godfrey me disse,

— E seu amigo é o parente mais próximo?

— Sim, é o herdeiro. O velho tem quase oitenta anos, e sofre de gota, ainda por cima. Nunca deu um níquel a Godfrey em toda a vida, pois é um grande avarento, mas o dinheiro acabará por ser do meu amigo, disso não há dúvida.

— Recebeu resposta de Lorde Mount-James?

— Não.

— Que motivos seu amigo poderia ter para procurar o tio?

— Pois bem, alguma coisa o preocupava ontem à noite, e, se o problema era dinheiro, é possível que recorresse ao parente mais próximo, que tem tanto, embora sem grande probabilidade de êxito, pelo que tenho ouvido dizer do velho. Godfrey não gosta do tio. Não iria procurá-lo se houvesse outra alternativa.

— Pois bem, isso é fácil de averiguar. Se seu amigo foi ver Lorde Mount-James, temos então de explicar a visita do homem de aparência rude que o procurou tão tarde, e a agitação que causou.

Overton apertou a cabeça entre as mãos.

— Não entendo nada — disse ele.

— Bem, bem, tenho o dia livre e posso tratar do caso — prometeu Holmes. — Aconselho-o a continuar os preparativos para o jogo sem contar com o rapaz. Como o senhor próprio disse, somente um motivo de força maior o afastaria, e é possível que esse mesmo motivo o detenha. Vamos até o hotel para ver se o porteiro pode dar mais alguma informação.

Holmes era um artista para fazer uma testemunha humilde ficar à vontade. Na intimidade do quarto abandonado de Godfrey, arrancou tudo o que o porteiro tinha a dizer. O visitante da véspera não era um cavalheiro, nem um operário. Era o que o porteiro descrevia como “pessoa de aparência mediana”: homem de cinqüenta anos, barba grisalha, rosto pálido, vestido discretamente. Também ele parecia agitado. O porteiro notara que a mão lhe tremia, ao entregar o bilhete. Staunton enfiara o bilhete no bolso. Não apertara a mão do homem no vestíbulo. Tinham trocado palavras, das quais o porteiro distinguira apenas uma: “tempo”. Depois saíram apressadamente. O relógio da entrada marcava dez e meia.

— Deixe-me ver — disse Holmes, sentando-se na cama de Staunton. — Você é o porteiro do dia, não é?

— Sim, senhor. Saio às onze.

— O porteiro da noite não viu coisa alguma, suponho.

— Não, senhor. Um grupo vindo do teatro chegou tarde. Ninguém mais.

— Você esteve em serviço durante todo o dia, ontem?

— Sim, senhor.

— Levou algum recado ao sr. Staunton?

— Sim, senhor, um telegrama.

— Oh, isso é interessante. Que horas eram?

— Mais ou menos seis.

— Onde estava o sr. Staunton, quando recebeu o telegrama?

— Aqui no quarto.

— Estava presente, quando ele o abriu?

— Sim, senhor; esperei para ver se havia resposta.

— E houve?

— Sim, senhor. Ele escreveu um bilhete.

— Você o levou?

— Não, senhor, ele próprio foi levá-lo.

— Mas escreveu-o em sua presença?

— Sim, senhor. Eu estava perto da porta, e depois de escrevê-lo, de costas para mim, diante daquela mesa, ele disse: “Muito bem, porteiro, eu próprio vou levá-lo”.

— Com que ele escreveu?

— Com uma caneta.

— O talão para preenchimento do telegrama era um desses que estão sobre a mesa?

— Sim, senhor. Era o de cima.

Holmes ergueu-se. Pegou o talão e levou-o para perto da janela, examinando com cuidado a folha de cima.

— Pena ele não ter escrito a lápis — disse, atirando-o de novo sobre a mesa com um gesto de desapontamento. — Como sabe, Watson, a impressão muitas vezes fica na folha de baixo, fato esse que desmanchou muito casamento feliz. Mas nada encontro aqui. Fico porém satisfeito por ver que escreveu com uma pena de ponta larga, e espero encontrar algumas impressões no mata-borrão. Ah, sim, é isso mesmo.

Holmes arrancou uma folha do mata-borrão e mostrou-nos o que estava impresso ali.

Cyril Overton ficou muito excitado.

— Ponha diante do espelho — disse.

— Não é necessário — observou Holmes. — O papel é fino. Virando-o, podemos ler o que está escrito. Vejam.

Virou o papel e lemos:

— É o final do telegrama que Godfrey expediu, poucas horas antes de desaparecer. Pelo menos seis palavras escaparam-nos. Mas o que restou: “Ajude-nos, pelo amor de Deus”, indica que o rapaz soube que um horrível perigo o ameaçava, e que uma pessoa poderia protegê-lo. “Ajude-nos.” Notem bem o “nos”. Outra pessoa estava envolvida.Quem haveria de ser, senão o homem de barba que parecia tão agitado? Qual a relação entre esse homem e Staunton? E qual a terceira pessoa que ambos procuraram, pedindo proteçao contra o perigo? É o que temos de averiguar.

— Basta descobrir a quem foi enviado o telegrama — observei.

— Exatamente, caro Watson. Sua idéia, embora profunda, já me ocorrera. Mas talvez já tenha notado que, se você for ao telégrafo e pedir para ler um telegrama mandado por outra pessoa, os empregados não o atenderão com boa vontade. Há tanta burocracia! Mas creio que, com um pouco de delicadeza e fineza, conseguiremos nosso intento. Neste meio tempo, gostaria de examinar em sua presença, sr, Overton, os papéis deixados sobre a mesa.

Havia algumas cartas, contas e cadernos de apontamentos, que Holmes examinou com dedos nervosos e olhos penetrantes.

— Nada aqui — disse, finalmente. — A propósito, espero que seu amigo seja um rapaz sadio!

— Forte como um touro.

— Já ouviu falar que tivesse estado doente?

— Nunca. Certa vez ficou de repouso, por causa do joelho, mas não foi nada de importância.

— Talvez não seja tão forte como o senhor supõe. Creio que tem qualquer doença. Com sua permissão, vou levar estes papéis, caso venham a ter relação com nossas futuras investigações.

— Um momento, um momento! — disse uma voz fanhosa.

Olhamos para a porta e ali vimos um velhinho esquisito, gesticulando. Estava com um terno preto e surrado, chapéu de aba larga e gravata branca, solta, dando a impressão de um pároco de aldeia ou de um agente funerário. Mas, apesar de malvestido e de sua absurda aparência, a voz era firme, e sabia impor sua presença.

— Quem é o senhor, e com que direito mexe nos papéis do rapaz? — perguntou.

— Sou um detetive particular, e estou procurando explicar seu desaparecimento.

— Ah, é? E quem o chamou, senhor?

— Este cavalheiro, amigo do sr. Staunton, que me procurou por indicação da Scotland Yard.

— Quem é o senhor? — perguntou o velho ao rapaz.

— Sou Cyril Overton.

— Então foi o senhor que me mandou o telegrama. Sou Lorde Mount-James. Vim assim que pude. Quer dizer que chamou um detetive?

— Sim, senhor.

— E está disposto a arcar com a despesa?

— Tenho certeza, senhor, de que meu amigo Godfrey, quando for encontrado, estará pronto a fazê-lo.

— Mas e se nunca for encontrado, hein? Responda.

— Nesse caso, sem dúvida a família…

— Nada disso, cavalheiro! — gritou o velho. — Não esperem de mim nem um centavo! Nem um centavo! Compreenda isso, senhor detetive! Sou a única família que o rapaz tem, e digo-lhe que não sou responsável. Se ele tem expectativas, é pelo fato de eu nunca ter desperdiçado dinheiro, e não pretendo começar a fazê-lo agora. Quanto aos papéis que o senhor examinava com tanto desembaraço, aviso-o de que, se houver alguma coisa de valor no meio deles, ficará responsável pelo que lhes acontecer.

— Muito bem — disse Sherlock Holmes. — Nesse meio tempo, posso perguntar-lhe se tem alguma teoria a respeito do desaparecimento do rapaz?

— Não, senhor, não tenho. Ele tem idade bastante e tamanho suficiente para tomar conta de si próprio, e, se é tonto a ponto de se perder, recuso-me a assumir a responsabilidade de mandar procurá-lo.

— Compreendo perfeitamente sua posição — disse Holmes, com um brilho malicioso no olhar. — Talvez o senhor não compreenda a minha. Parece que Godfrey Staunton é um homem pobre. Se foi raptado, não pode ter sido pelo que possui. Mas a fama de sua riqueza atravessou os mares, Lorde Mount-James, e é possível que uma quadrilha de ladrões tenha raptado seu sobrinho para obter informações quanto à sua casa, seus hábitos e seus tesouros.

O nosso desagradável visitante ficou branco como um lençol.

— Deus do céu, que idéia! Nunca pensei em tamanha patifaria! Que bandidos desumanos há neste mundo! Mas Godfrey é um bom rapaz, um rapaz direito. Nada o induziria a trair seu velho tio. Mandarei as pratas da casa para o banco hoje mesmo. Nesse meio tempo, não poupe esforços, senhor detetive. Suplico-lhe que não deixe pedra sobre pedra para fazê-lo voltar. Quanto ao dinheiro, pois bem, se for questão de cinco libras, ou mesmo dez, pode contar comigo.

Mesmo nessa mansa disposição de espírito, o nobre avarento não pôde dar informação que nos valesse, pois pouco sabia da vida particular do sobrinho. Nossa única pista era o telegrama, e, com uma cópia do que lera, Holmes saiu à procura do segundo elo da corrente. Tínhamo-nos livrado de Lorde Mount-James, e Overton fora consultar os outros membros da equipe, a respeito da desventura que se abatera sobre eles. Havia uma agência de telégrafo a pequena distância do hotel. Paramos diante dela.

— Vale a pena tentar, Watson — disse Holmes. — Claro que, com uma ordem da polícia, poderíamos exigir que nos mostrassem as cópias dos telegramas já expedidos, mas ainda não chegamos a esse ponto. Não creio que se lembrem de fisionomias em lugar tão movimentado. Vamos experimentar.

— Sinto incomodá-la — disse ele com sua voz mais suave, à jovem atrás da grade. — Houve um pequeno engano no telegrama que mandei ontem. Não obtive resposta, mas receio ter omitido meu nome no fim. Pode dizer-me se foi isso o que aconteceu?

A moça folheou um maço de cópias.

— A que horas foi? — perguntou.

— Um pouco depois das seis.

— O que estava escrito?

Holmes pôs o dedo nos lábios e olhou de relance para mim.

— As últimas palavras eram “pelo amor de Deus” — murmurou ele confidencialmente. — Estou muito aflito por não ter tido resposta.

A jovem separou uma das cópias.

— É esta. Não tem assinatura — disse ela, empurrando o papel sobre o balcão.

— Então é por isso que não recebi resposta — exclamou Holmes. — Deus do céu, que estupidez a minha! Até logo, minha senhora, e muito obrigado por me ter aliviado o espírito.

Quando nos vimos na rua, Holmes deu uma risadinha, esfregando as mãos.

— Então? — perguntei.

— Progredimos, Watson, progredimos. Eu tinha sete diferentes planos para dar uma olhada no telegrama, mas não esperava obter sucesso logo no primeiro.

— E que ganhou com isso?

— O ponto de partida de nossa investigação — respondeu Holmes, chamando uma carruagem. — Para a Estação King’s Cross — ordenou ele ao cocheiro.

— Então, vamos viajar? — perguntei.

— Sim, creio que temos de ir a Cambridge. Tudo aponta nessa direção.

— Diga-me, tem alguma suspeita quanto à causa do desaparecimento? Em todos os casos que investigamos, não me lembro de nenhum cujos motivos fossem mais obscuros. Você não desconfia, realmente, que ele tenha sido raptado para dar informações quanto à fortuna do tio, não é?

— Confesso, caro Watson, que isso não me atrai como provável explicação. Mas pareceu-me a única capaz de interessar àquela desagradável criatura.

— E com resultado. Mas quais as alternativas?

— Posso mencionar várias. Você deve reconhecer que é curioso o incidente se ter dado justamente na véspera de um jogo importante, envolvendo o único homem cuja presença parece essencial para a vitória do time. Pode ser coincidência, mas é interessante. Oficialmente, não se fazem apostas no esporte amador; mas há um grande número de apostas entre o público, e é possível que seu desaparecimento interessasse a alguém. Esta é uma hipótese. A segunda é que o rapaz é de fato o herdeiro de uma grande fortuna, por mais modestos que sejam seus meios atualmente, e não é impossível que o tenham raptado para efeitos de resgate.

— Essas teorias não explicam o telegrama.

— É verdade, Watson. O telegrama ainda é a única coisa sólida que temos, e não devemos permitir que nossa atenção se afaste dele. É para descobrir o que há no telegrama que nos dirigimos para Cambridge. O caminho de nossa investigação ainda é obscuro, mas ficarei muito admirado se antes do cair da noite não tivermos lançado nele um raio de luz.

Já era quase noite quando chegamos à velha cidade universitária. Holmes apanhou uma carruagem na estação e pediu ao homem que nos levasse à residência do dr. Leslie Armstrong. Minutos depois, parávamos diante de uma grande mansão, na rua mais movimentada das redondezas. Depois de longa espera, fizeram-nos entrar no consultório, onde encontramos o médico sentado à escrivaninha.

A prova de que eu perdera contato com meus colegas estava no fato de Leslie Armstrong ser um nome desconhecido para mim. Sei agora que não somente é um dos chefes da escola médica da universidade, mas um pensador afamado em toda a Europa, em mais de um ramo da ciência. Mas, mesmo sem conhecer sua brilhante carreira, não se podia deixar de ficar impressionado com o homem — rosto maciço, quadrado, expressão sonhadora sob as grossas sobrancelhas, queixo firme. Homem profundo, de mente alerta, decidida, controlada, formidável — foi o que li no dr. Armstrong. Ele tinha na mão o cartão de Holmes, e ergueu os olhos com expressão descontente no rosto severo.

— Conheço-o de nome, sr. Sherlock Holmes, e sei qual sua profissão, embora ela não mereça minha aprovação — disse ele.

— Nisso o senhor está de acordo com todos os criminosos do país, doutor — replicou Holmes tranqüilamente.

— Enquanto seus esforços se dirigem contra os criminosos, senhor, eles têm de merecer o apoio da comunidade, embora eu não duvide de que a máquina oficial tenha competência para combatê-los. Mas o senhor se expõe à crítica quando se mete nos segredos de particulares, quando traz à tona assuntos de família que seria preferível deixar ocultos, e quando desperdiça o tempo de homens mais ocupados do que o senhor. No momento presente, por exemplo, eu devia estar escrevendo um tratado, em vez de estar conversando com o senhor.

— Sem dúvida, doutor, mas talvez a conversa venha a ser mais importante do que o tratado. Entretanto, afirmo-lhe que estamos fazendo o contrário daquilo que o senhor critica, e procuramos evitar que venham a público assuntos privados, o que fatalmente aconteceria se o caso fosse parar nas mãos da polícia. O senhor pode considerar-me simplesmente como um soldado irregular que vai à frente das forças regulares. Vim pedir-lhe notícias do sr. Godfrey Staunton.

— Que há com ele?

— O senhor o conhece, não é verdade?

— É meu amigo íntimo.

— Ele desapareceu.

— Ah, sim? — exclamou o médico, sem que sua expressão se alterasse.

— Saiu do hotel ontem à noite, e ainda não deu notícias.

— Com certeza voltará.

— Amanhã realiza-se o jogo da universidade.

— Não ligo a esses jogos infantis. A sorte do rapaz interessa-me profundamente, uma vez que o conheço e estimo. O esporte não entra na minha esfera de ação.

— Peço-lhe, então, que se interesse pelo assunto, agora que vou fazer investigações quanto ao desaparecimento do rapaz. Sabe onde ele está?

— De forma nenhuma.

— Não o viu desde ontem?

— Não, não o vi.

— O sr. Staunton é um homem sadio?

— Certamente.

— Já o viu doente alguma vez?

— Nunca.

Holmes colocou uma folha de papel diante do médico.

— Então talvez o senhor explique esse recibo de treze guinéus, pagos pelo sr. Godfrey Staunton, o mês passado, ao dr. Leslie Armstrong, de Cambridge. Encontrei-o no meio dos papéis do rapaz.

O médico ficou vermelho de cólera.

— Não vejo razão para lhe dar explicações, sr. Holmes.

Holmes guardou de novo a conta no bolso.

— Se preferir uma explicação pública, terá de ser dada, cedo ou tarde — replicou ele. — Já lhe disse que posso abafar aquilo que outros teriam de publicar. O senhor faria bem se confiasse em mim.

— Nada sei.

— Recebeu comunicação de seu amigo, de Londres?

— Claro que não.

— Deus meu, o telégrafo novamente! — suspirou Holmes. — Um telegrama urgente foi-lhe mandado de Londres por Godfrey Staunton, às seis e pouco, ontem à tarde… telegrama indubitavelmente ligado a seu desaparecimento, e o senhor não o recebeu! É incrível. Faço questão de ir ao telégrafo daqui para registrar a queixa.

O dr. Armstrong pulou da cadeira, furioso.

— Peço-lhe o favor de sair de minha casa, senhor — disse ele. — E pode dizer a seu patrão, Lorde Mount-James, que não quero saber dele, nem de seus representantes. Não, senhor, nem mais uma palavra! — O médico tocou furiosamente a campainha e disse ao criado que apareceu: — John, acompanhe esses senhores à porta.

Um mordomo imponente acompanhou-nos com ar severo e dali a segundos vimo-nos na rua. Holmes começou a rir.

— Não há dúvida de que o dr. Armstrong é pessoa de energia e de caráter — disse ele. — Nunca vi homem que, se dirigisse seu talento para outro lado, estivesse mais apto a preencher a lacuna deixada pelo ilustre professor Moriarty. E agora, caro Watson, aqui estamos, perdidos e sem amigos, nesta cidade pouco hospitaleira. E não podemos abandoná-la sem abandonar nosso caso. Aquele hotelzinho diante da casa de Armstrong adapta-se singularmente a nossos planos. Se você quiser reservar um quarto da frente e comprar os artigos necessários para aqui passarmos a noite, creio que terei tempo de fazer umas investigações.

As investigações, porém, foram mais longas do que Holmes imaginara, pois não voltou antes das nove horas. Estava pálido e abatido, sujo de pó, e exaurido pela fome e pelo cansaço. Uma ceia fria esperava-o, e depois que o apetite foi satisfeito e o cachimbo, aceso, ele já estava disposto a tomar aquela atitude filosófica e meio cômica que adotava quando os negócios lhe corriam mal. Um ruído de rodas fez com que se erguesse e fosse espreitar à janela.

Um carro puxado por dois cavalos cinzentos estava à porta do médico, sob a luz do lampião da rua.

— Esteve fora durante três horas — observou Holmes. — Saiu às seis e meia e está de volta. Isto nos dá uma área de dezesseis a vinte quilômetros, e ele faz a viagem uma ou duas vezes por dia.

— Nada de extraordinário, para um médico que esteja clinicando.

— Mas Armstrong não é propriamente um clínico. É conferencista e consultor, e não gosta de clinicar, pois isso o afasta de seus trabalhos literários. Por que então faz essas longas viagens, que devem irritá-lo, e a quem vai ele visitar?

— O cocheiro…

— Caro Watson, duvida que o tenha procurado em primeiro lugar? Não sei se foi por causa de sua natureza maldosa, ou por instigação do patrão, mas o homem soltou um cão em meu encalço. Nem o cão nem o homem gostaram da aparência de minha bengala, de modo que as coisas pararam por aí. Nossas relações ficaram frias depois disso, de modo que nada mais ousei indagar. Tudo o que sei consegui por intermédio de um rapaz amável, que trabalha no quintal de nosso hotel. Foi quem me falou dos hábitos do médico e de suas viagens diárias. No momento em que me contava isso, a carruagem justamente parava à porta.

— Não poderia segui-la?

— Excelente, caro Watson! Você hoje está brilhante. A idéia ocorreu-me. Como deve ter observado, há uma loja de bicicletas ao lado do hotel. Corri para lá, aluguei uma, e consegui partir antes que a carruagem tivesse desaparecido de vista. Aproximei-me e, conservando uma discreta distância de cem metros, segui as luzes traseiras até sairmos da cidade. Já estávamos longe quando aconteceu um incidente humilhante para mim. O carro parou, o médico desceu, caminhou apressadamente até o ponto onde eu também parara e, de maneira sardônica, disse que achava que a estrada era um tanto estreita e que a carruagem estava impedindo a passagem da bicicleta. Passei imediatamente à frente e, conservando-me na estrada, pedalei durante alguns quilômetros, escondendo-me depois num lugar conveniente para ver se a carruagem passava. Não vi sinal dela, de modo que, evidentemente, enveredara por um dos muitos atalhos lá existentes. Voltei, mas nem sinal do carro, o qual, como você viu, chegou aqui depois de mim. Claro que, a princípio, eu não tinha base para ligar esses fatos ao desaparecimento de Staunton, e estava apenas investigando de um modo geral, pois tudo o que diz respeito ao dl. Armstrong nos interessa. Mas agora vejo que ele toma tantas precauções para não ser observado nessas excursões que o caso me parece muito mais sério, e não pretendo abandoná-lo enquanto não estiver tudo claro.

— Podemos segui-lo amanhã — sugeri.

— Podemos? Não é tão fácil como pensa. Você não está familiarizado com a topografia de Cambridge, não é? Ela não se presta a esconderijos. O terreno por onde passei é plano como a palma de minha mão, e o homem que estamos seguindo não é tolo, como provou hoje à tarde. Telegrafei a Overton, dando nosso endereço e pedindo-lhe que me comunique qualquer novidade. Nesse meio tempo, temos de nos concentrar no dr. Armstrong, cujo nome a prestimosa jovem do telégrafo me deixou ler no telegrama. Ele sabe onde está Staunton, disso não há dúvida e, já que sabe, será culpa nossa se não conseguirmos descobrir o rapaz. De momento, temos de admitir que os melhores trunfos estão com ele, mas você bem sabe, Watson, que não costumo deixar o jogo muito tempo nessas condições.

Mas o dia seguinte não nos levou à solução do mistério. Vieram trazer-nos um bilhete, à tarde. Holmes leu-o e entregou-o a mim com um sorriso.

“Senhor, posso garantir-lhe que está perdendo seu tempo a espiar-me. Tenho, como deve ter percebido ontem, uma janela na parte de trás da carruagem, e, se o senhor desejar fazer um passeio de quarenta quilômetros, que o trará de volta ao ponto de partida, é só seguir-me. Nesse meio tempo, informo-o de que o fato de me seguir não ajudará em nada o sr. Godfrey Staunton, e estou convencido de que, se quiser favorecer o rapaz, o melhor que tem a fazer é voltar para Londres e dizer a seu patrão que não conseguiu encontrá-lo. Não há dúvida de que está perdendo tempo em Cambridge.
Atenciosamente,

Leslie Armstrong.”

— Antagonista franco e despachado, o doutor — observou Holmes. — Bem, bem, ele desperta minha curiosidade, e preciso descobrir mais alguma coisa antes de lhe dizer adeus.

— A carruagem está à porta — disse eu. — O médico está subindo nela. Vi-o olhar para cá. Quer que experimente segui-lo de bicicleta?

— Não, não, caro Watson! Com o devido respeito pela sua natural perspicácia, não me parece que seja antagonista para o doutor. Creio que posso atingir meus fins à minha moda. Tenho de deixá-lo só, caro amigo, pois a presença de dois estranhos curiosos, na campina sonolenta, iria provocar comentários que desejo evitar. Com certeza encontrará belas vistas nessa venerável cidade, e espero trazer melhores notícias antes que chegue a tarde.

Mas meu amigo iria mais uma vez ficar decepcionado. Voltou à noite, cansado e derrotado.

— Dia perdido, Watson. Sabendo qual o rumo que tem tomado o médico, visitei todas as vilazinhas perto de Cambridge, pedindo notícias aos freqüentadores das tabernas e outros locais públicos. Estive em Chesterton, Histon, Waterbeach e Oakington, e nada consegui apurar. A aparição diária de uma carruagem não poderia deixar de chamar a atenção naqueles lugares mortos. O médico lavrou outro tento. Algum telegrama para mim?

— Sim; abri-o. Aqui está. “Procure Pompey, de Jeremy Dixon, Trinity College.” Não compreendo, Holmes.

— Para mim é muito claro. É nosso amigo Overton, em resposta a uma pergunta minha. Vou mandar um bilhete ao sr. Jeremy Dixon e tenho certeza de que nossa sorte mudará. Por falar nisso, há notícias do jogo?

— Sim, o jornal local dá uma ótima descrição da partida, na última edição. Oxford ganhou. O último parágrafo diz:

“A derrota de Cambridge pode ser atribuída inteiramente à infeliz ausência do grande esportista internacional Godfrey Staunton, cuja falta se fez sentir a cada minuto, apesar dos esforços do valoroso time”.

— Então os receios do nosso amigo Overton justificaram-se — disse Holmes. — Pessoalmente, estou de acordo com o dr. Armstrong, pois esse esporte não me atrai. Vamos cedo para a cama hoje, Watson, pois creio que amanhã teremos um dia cheio.

Na manhã seguinte encontrei Holmes diante da lareira, com uma seringa na mão. Ante minha expressão de curiosidade, ele explicou:

— Neste momento, esta seringa será a chave que abrirá as portas do misterioso caso. Nela estão minhas esperanças. Acabo de voltar de uma excursão, e tudo vai bem. Faça uma boa refeição, Watson, pois pretendo seguir o dr. Armstrong hoje e, uma vez no seu encalço, não pretendo comer nem descansar enquanto não tiver descoberto sua toca.

— Nesse caso, é melhor levarmos conosco nossa refeição da manhã — sugeri. — O médico vai sair cedo. A carruagem já está à porta.

— Não se incomode. Deixe-o partir. Será muito inteligente se conseguir chegar aonde eu não o possa seguir. Depois de terminar o café, venha comigo para baixo e eu lhe apresentarei um detetive, que é eminente especialista no trabalho que está à nossa frente.

Depois que descemos, segui Holmes à cocheira. Ele abriu a porta de uma caixa e dali saiu um cão atarracado, de orelhas caídas.

— Permita que o apresente a Pompey — disse ele. — Pompey é o orgulho dos cães de fila, não grande corredor, como seu corpo indica, mas um cão firme, que nunca abandona uma pista. Pois bem, Pompey, você não é corredor, mas creio que, mesmo assim, correrá mais que dois cavalheiros de meia-idade, e vou tomar a liberdade de pôr-lhe esta correia ao pescoço. Bem, rapaz, venha mostrar do que é capaz.

Holmes levou-o até a porta do médico. O cão farejou por um instante e depois, com um ganido excitado, saiu pela rua, puxando a correia, esforçando-se para ir mais depressa. Em meia hora, tínhamos deixado a cidade e seguíamos por uma estrada rural.

— Que fez você, Holmes?

— Adotei um truque muito conhecido, mas útil. Fui ao quintal do médico hoje de manhã e injetei uma seringa cheia de essência de aniz na roda de trás da carruagem. Um cão de fila seguirá o cheiro de aniz até o fim do mundo; nosso amigo Armstrong jamais conseguiria escapar a Pompey. Oh, o diabo é esperto! Foi aqui que ele me iludiu na outra noite.

O cão saíra de repente da estrada principal, enveredando por um atalho verdejante. Oitocentos metros adiante, entramos em outra estrada larga e o cão virou à direita, em direção à cidade que acabávamos de deixar. A estrada subiu para o sul da cidade, continuando na direção oposta àquela de onde tínhamos vindo.

— Então esta volta foi em nosso benefício? — observou Holmes. — Não é de admirar que minhas indagações nas outras cidades tenham dado em nada. Com certeza o médico tinha razão para isso, e eu gostaria de saber qual será, para se dar ao trabalho de tanta dissimulação. Ali deve ser o vilarejo Trumpington, à direita. Por Deus, lá vem a carruagem. Depressa, Watson, ou estamos perdidos!

Holmes entrou num campo, passando por um portão, e puxou o relutante Pompey. Mal nos tínhamos escondido atrás da sebe, a carruagem passou por nós, vindo em direção oposta. Vimos de relance o dr. Armstrong, de ombros caídos, cabeça entre as mãos, a verdadeira imagem do desespero. Pela expressão grave de Holmes notei que ele também o vira.

— Receio que nossa investigação tenha um fim negro — disse ele. — Mas depois saberemos. Vamos, Pompey, deve ser aquela casa no campo.

Chegáramos ao fim da jornada, sem dúvida. Pompey corria de um lado para outro e gania do lado de fora do portão, onde ainda se viam, no chão, as marcas das rodas da carruagem. Um caminho conduzia à vivenda isolada. Holmes amarrou o cão à sebe. Continuamos. Meu amigo bateu à porta sem obter resposta, e tornou a bater. Mas a casa não estava deserta, pois chegou a nossos ouvidos um som baixo — um gemido de desespero, incrivelmente melancólico. Holmes parou, irresoluto, depois olhou de novo para a estrada de onde tínhamos vindo. Uma carruagem aparecera, e não havia dúvida quanto àqueles cavalos cinzentos.

— Por Deus, o médico está de volta! — exclamou Holmes. — Então, está decidido. Temos de averiguar o que há antes que ele chegue.

Holmes abriu a porta e entramos no vestíbulo. O gemido pareceu-nos mais forte, até se tornar um grito de desespero. Vinha de cima. Holmes subiu e acompanhei-o. Ele empurrou uma porta semi-aberta, e ambos ficamos atônitos com o que vimos.

Uma mulher morta, jovem e bela, estava deitada na cama. O rosto calmo, pálido, de olhos azuis completamente abertos, era emoldurado por cabelos dourados. Aos pés da cama, meio sentado, meio ajoelhado, com o rosto escondido nas roupas da cama, vimos um rapaz que se sacudia em soluços. Tão perturbado estava que não ergueu os olhos, até Holmes bater em seu ombro.

— O senhor é o sr. Godfrey Staunton? — perguntou.

— Sim, senhor, mas chegou tarde demais. Ela morreu.

Estava tão fora de si, que não conseguiu compreender que não éramos médicos mandados para ajudá-lo. Holmes tentava dizer algumas palavras de consolação e explicar o alarme que seu desaparecimento provocara nos amigos, quando ouvimos passos na escada, e apareceu à porta o rosto severo e indagador do dr. Armstrong.

— Então, senhores, atingiram seu objetivo e escolheram um momento delicado para a intrusão. Não me agrada perder a calma em presença da morte, mas asseguro-lhes que, se fosse mais jovem, tal conduta não deixaria de ser punida.

— Desculpe-me, dr. Armstrong. Creio que há entre nós um mal-entendido — disse Holmes com dignidade. — Se quiser descer conosco, poderemos esclarecer-nos mutuamente a respeito deste assunto.

Momentos depois o médico e nós estávamos na sala de baixo.

— Então? — perguntou ele.

— Quero que compreenda, em primeiro lugar, que não estou a serviço de Lorde Mount-James, e que não tenho nenhuma simpatia por aquele senhor. Quando um homem desaparece, é meu dever investigar o fato. Mas, ao encontrá-lo, fica terminada minha missão e, contanto que não haja ato criminoso, prefiro abafar um escândalo particular a dar-lhe publicidade. Se, como imagino, a lei não foi infringida, pode contar com minha discrição e com minha cooperação para que os jornais nada publiquem.

O dr. Armstrong deu um passo rápido à frente e apertou a mão de Holmes.

— É uma boa pessoa — disse ele. — Tinha-o julgado mal. Agradeço aos céus pelo fato de meu remorso não ter permitido que deixasse só o pobre Staunton, e por ter-me feito voltar, pois assim posso conhecê-lo melhor, sr. Holmes. Sabendo o que sabe, a situação é fácil de ser explicada. Há um ano, Godfrey Staunton passou uma temporada em Londres e ficou apaixonado pela filha da senhoria, com quem se casou. Ela era boa, além de bonita e inteligente. Nenhum homem teria de se envergonhar de tal esposa. Mas Godfrey era herdeiro daquele velho malvado, e não há dúvida de que a notícia de seu casamento seria o fim da herança. Eu conhecia bem o rapaz, e estimava-o pelas suas excelentes qualidades. Procurei ajudá-lo. Fizemos o possível para que o casamento ficasse secreto, pois, quando há um murmúrio, as pessoas acabam sabendo. Graças a esta casa isolada e à discrição de Godfrey, até agora nada transpirou. Os únicos que sabiam desse segredo éramos eu e um criado fiel, que foi agora a Trumpington buscar socorro. Mas a esposa de meu amigo contraiu uma moléstia terrível. Uma tuberculose gravíssima. O pobre rapaz ficou desesperado, mas tinha de ir para Londres por causa daquele jogo, e não podia esquivar-se sem dizer o motivo que revelaria seu segredo. Tentei animá-lo com um telegrama, e ele mandou-me outro, implorando-me que fizesse o possível. Foi esse o telegrama que, de maneira inexplicável, parece que o senhor viu. Não contei ao rapaz a gravidade do perigo, pois sabia que ele aqui nada poderia fazer, mas telegrafei contando a verdade ao pai da jovem e ele, levianamente, comunicou o fato a Godfrey. O resultado foi a vinda do rapaz, num estado de quase alucinação, e assim ele ficou, desde então, ajoelhado aos pés da cama, até que hoje de manhã a morte pôs fim aos sofrimentos da pobre jovem. É tudo, sr. Holmes, e tenho a certeza de que posso contar com sua discrição e a de seu amigo.

Holmes apertou a mão do médico.

— Venha, Watson — disse ele.

Saímos daquela casa de dor para a claridade dúbia de um pálido sol de inverno.

1905
A volta de Sherlock Holmes

1. A casa vazia § 2. O construtor de Norwood
3. Os dançarinos § 4. A ciclista solitária
5. A escola do priorado § 6. Pedro Negro
7. Charles Augustus Milverton § 8. Os seis bustos de Napoleão
9. Os três estudantes § 10. O pincenê dourado
11. O atleta desaparecido § 12. Abbey Grange § 13. A segunda mancha

Ilustrações: Frederic Dorr Steele e Sidney Paget, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock