A escola do priorado

Arthur Conan Doyle

A escola do priorado

Título original: The Priory School
Publicado pela primeira vez na Collier’s Weekly,
em Janeiro de 1904, com 6 ilustrações de Frederic Dorr Steele
e na Strand Magazine, em Fevereiro de 1904,
com 9 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Priory School publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume IV,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Lígia Junqueiro.

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Capa da Collier’s, com ilustração de Frederic Dorr Steele (Cortesia: The Arthur Conan Doyle Encyclopedia)

Em nosso pequeno palco, na Baker Street, temos tido dramáticas entradas e saídas, mas não posso me lembrar de nada mais súbito e surpreendente do que a primeira aparição do dr. Thorneycroft Huxtable, M. A., Ph. D., etc. O cartão, que parecia pequeno demais para conter a lista de seus diplomas, precedeu-o de alguns segundos. Depois, entrou o homem: tão grande, tão pomposo, tão digno, que era a personificação da solidez. Apesar disso, seu primeiro gesto, depois de fechar a porta, foi apoiar-se à mesa, cambaleante. No minuto seguinte, escorregou para o chão, e lá ficou a majestosa figura, estendida, inconsciente, no nosso tapete de pele de urso.

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(Sidney Paget, 1904)

Tínhamo-nos levantado de um salto e, por segundos, ficamos olhando, em silencioso espanto, para aquele náufrago, que nos falava de alguma tempestade fatal no mar da vida. Depois, Holmes correu com uma almofada, que colocou sob a cabeça do homem, e eu com um cálice de conhaque, para reanimá-lo. O rosto pálido tinha rugas causadas pela preocupação, sob os olhos havia círculos escuros, a boca descaía dolorosamente nos cantos, o rosto estava de barba por fazer. A camisa e o colarinho apresentavam vestígios de uma longa viagem, e os cabelos estavam em desalinho, na cabeça bem-feita. O homem a nossos pés era uma criatura ferida pelo destino.

— Que me diz, Watson? — perguntou-me Holmes.

— Completa exaustão… talvez apenas fome e cansaço — respondi, segurando o pulso, onde a vida se fazia sentir debilmente.

— Passagem de regresso para Mackleton, no norte da Inglaterra — disse Holmes, tirando-lhe o bilhete do bolso do colete. — Ainda não é meio-dia. Não há dúvida de que partiu cedo.

As pálpebras inchadas tinham começado a estremecer, e agora uns olhos cinzentos, de expressão vazia, fitavam-nos. No momento seguinte, o homem pôs-se de pé, rubro de vergonha.

— Perdoe-me a fraqueza, sr. Holmes; ando esgotado. Muito obrigado. Se me derem um copo de leite e um biscoito, creio que me sentirei melhor. Vim pessoalmente, sr. Holmes, para lhe pedir que volte comigo. Receei que um telegrama, por mais insistente que fosse, não o convencesse da urgência do caso.

— Depois que estiver melhor.

— Estou bem. Não sei como pude sentir tal fraqueza. Desejo que me acompanhe a Mackleton no próximo trem, sr. Holmes.

Meu amigo sacudiu a cabeça.

— Meu colega, o dr. Watson, poderá dizer-lhe que estamos muito ocupados presentemente. Estou trabalhando no caso dos Documentos Ferrers e no assassinato de Abergavenny, que em breve irá a julgamento. Somente um assunto muito grave me afastaria de Londres nesta altura.

— Grave! — exclamou nosso visitante, atirando as mãos para o ar. — Não ouviu falar do rapto do único filho do duque de Holdernesse?

— O quê? O ministro?

— Exatamente. Procuramos manter o fato fora dos jornais, mas houve uma alusão no Globe, ontem à noite. Pensei que talvez tivesse chegado aos seus ouvidos.

Holmes estendeu o braço longo e magro e apanhou o volume “H” de sua enciclopédia particular.

— “Holdernesse, sexto duque, K. G., P. C.” Quase metade do alfabeto…! “Barão Beverley, conde de Garston”… Deus do céu, que lista! “Lorde-tenente de Hallamshire desde 1900. Casou-se com Edith, filha de Sir Charles Appiedore, em 1888. Tem um único filho e herdeiro, Lorde Saltire. Dono de duzentos e cinquenta acres. Minas em Lancashire e Gales. Endereço: Carlton Terrace; Holdernesse Hall, em Hallamshire; Castelo Carston, em Bangor, Gales. Lorde do Almirantado, 1872; secretário-chefe de…” Bom, bom, não há dúvida de que este homem é um dos maiores súditos da coroa!

— O maior e talvez o mais rico. Sei, sr. Holmes, que o senhor é muito digno, quando se trata da profissão, e que está sempre pronto a trabalhar por amor ao trabalho. Mas quero dizer-lhe que Sua Graça já declarou que um cheque de cinco mil libras será entregue à pessoa que lhe disser onde está seu filho, e mais um de mil, para aquele que indicar o nome ou os nomes das pessoas que o raptaram.

— Oferta principesca — declarou Holmes. — Watson, creio que acompanharemos o dr. Huxtable ao norte da Inglaterra. E agora, dr. Huxtable, depois de ter tomado o seu leite, peço-lhe que me conte o que aconteceu, quando e como, e o que tem o senhor, dr. Thorneycroft Huxtable, da Escola do Priorado, perto de Mackleton, a ver com o caso, e por que vem, três dias após o acontecimento (percebo-o pelo estado da sua barba), pedir a minha humilde colaboração.

Nosso visitante tinha tomado o leite e os biscoitos. Voltara-lhe o brilho aos olhos e a cor às faces, e começou a explicar a situação, com vigor e lucidez.

— Quero informá-los, senhores, de que a Escola do Priorado é uma escola preparatória, da qual sou fundador e diretor. Meu livro Huxtable’s sidelights on Horace [1] talvez faça com que se lembre do meu nome. A escola é, sem dúvida, a melhor e a mais seleta escola preparatória da Inglaterra. Lorde Leverstoke, o conde de Blackwater, Sir Cathcart Soames — todos eles me confiaram os seus filhos. Mas achei que minha escola chegara ao apogeu quando, há três semanas, o duque de Holdernesse mandou seu secretário, sr. James Wilder, avisar-me que Lorde Saltire, de dez anos de idade, seu filho e herdeiro, me seria confiado. Mal sabia eu que isto seria o prelúdio do maior infortúnio de minha vida.

“O menino chegou no dia 1.° de maio, começo das aulas de verão. Era um menino encantador, que logo se habituou às normas do internato. Creio poder dizer-lhes (espero não estar sendo indiscreto, mas num caso como este é necessário falar com absoluta franqueza) que o menino não era muito feliz em casa. Ninguém ignora que a vida matrimonial do duque não foi das mais venturosas, pois terminou em separação, por consentimento mútuo, tendo a duquesa ido residir no sul da França. Havia pouco tempo que isso acontecera, e era sabido que o menino se inclinava para o lado da mãe. Parece que ficou triste, após sua partida de Holdernesse Hall, e foi por esse motivo que o pai resolveu mandá-lo para minha escola. Depois de quinze dias, o menino já se sentia completamente à vontade, parecendo muito feliz em nossa companhia.

“Foi visto pela última vez na noite de 13 de maio, isto é, na última segunda-feira. Seu quarto ficava no segundo andar, ao qual se tinha acesso por outro quarto maior, onde dormiam dois meninos. Estes nada viram ou ouviram, de modo que calculamos que o jovem Saltire não tenha saído por lá. Sua ausência foi notada às sete da manhã, na terça-feira. A cama estava desfeita e a janela aberta; pelas paredes da casa cresce hera, desde o chão até esta altura. Não vimos vestígio algum, mas não há outra saída. Ele se vestira completamente, e saíra com sua jaqueta preta de Eton e calças cinza. Não havia sinais de alguém ter entrado no quarto, e não há dúvida de que gritos ou luta teriam sido ouvidos, uma vez que Caunter, o menino mais velho, que dorme no quarto contíguo, tem um sono muito leve.

“Quando verifiquei que Lorde Saltire havia desaparecido, chamei todo o estabelecimento, alunos, professores e criados. Foi então que verificamos que Lorde Saltire não era o único desaparecido. Sentimos a falta de Heidegger, professor de alemão. O quarto dele ficava no segundo andar, na extremidade oposta do prédio, e dava para o mesmo lado que o de Saltire. Também sua cama estava desfeita, mas aparentemente ele saíra meio vestido apenas, pois encontramos sua camisa e suas meias no chão. Deve ter descido pela hera, pois vimos as marcas de seus pés quando caiu na grama. Sua bicicleta desaparecera.

“Trabalhava comigo há dois anos, tendo trazido as melhores referências, mas era um homem silencioso, soturno, não muito popular entre alunos e professores. Não encontramos sinal dos fugitivos, e hoje, quinta-feira, estamos na mesma ignorância de terça. Claro que mandamos imediatamente indagar em Holdernesse Hall, que fica apenas a alguns quilômetros de distância. Imaginamos que o menino, ao se sentir subitamente indisposto, tivesse ido procurar o pai, mas lá não sabiam de coisa alguma. O duque está muito preocupado. Quanto a mim, os senhores viram a que estado de nervosismo e prostração me vi reduzido pela expectativa, e pelo senso de responsabilidade. Sr. Holmes, se algum dia usou ao máximo seus dons, suplico-lhe que o faça agora, pois dificilmente terá encontrado caso mais digno deles.”

Sherlock Holmes ouvira, com a máxima atenção, as palavras do infeliz mestre-escola. Sua expressão séria mostrava que não precisava que o incitassem a concentrar a atenção num problema que, além dos grandes interesses em jogo, devia apelar para seu amor ao complexo e ao incomum. Tirou o caderno de notas e tomou um ou dois apontamentos.

— Fez muito mal em não me procurar mais cedo — disse severamente. — Faz-me começar a investigação com uma grande desvantagem. É incrível que a hera, por exemplo, não revelasse coisa alguma para um perito.

— A culpa não é minha, sr. Holmes. Sua Graça desejava que não houvesse escândalo. Receava que a desventura da família fosse exposta ao público. Tem horror a essas coisas.

— Mas houve investigação oficial?

— Sim, senhor, e foi decepcionante. Foi obtido um indício, imediatamente, pois viram um menino e um homem apanharem o primeiro trem, numa estação vizinha. Ontem à noite, soubemos que os dois tinham sido procurados em Liverpool, mas ficou provado que nada tinham a ver com o caso. Foi aí que, desesperado, após uma noite de insônia, vim procurá-lo, pelo primeiro trem.

— Com certeza a investigação local foi desprezada, enquanto seguiam a pista falsa.

— Foi abandonada por completo.

— Então temos três dias perdidos. O caso foi tratado de maneira deplorável.

— Sinto isso e reconheço-o.

— Apesar de tudo, é possível encontrar uma solução. Terei muito prazer em aceitar o caso. Conseguiu estabelecer relação entre o menino e o professor de alemão?

— Nenhuma.

— Era aluno desse professor?

— Não, e nunca trocaram uma palavra, ao que sabemos.

— É estranho… O menino tinha bicicleta?

— Não.

— Desapareceu mais alguma?

— Não.

— Tem certeza? — perguntou Holmes.

— Absoluta.

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(Sidney Paget, 1904)

— Mas o senhor não supõe que o alemão tenha saído no meio da noite, de bicicleta, com o menino nos braços, não?

— Claro que não.

— Então qual é sua teoria?

— Talvez a bicicleta tenha sido usada como pista falsa. Talvez esteja em algum lugar, tendo eles partido a pé.

— Exatamente. Mas teria sido uma artimanha absurda, não acha? Havia outras bicicletas guardadas?

— Várias.

— Não teriam escondido duas, se quisessem dar a impressão de que tinham partido de bicicleta?

— Creio que sim.

— Claro que sim. A teoria da pista falsa não serve. Mas o incidente é um admirável ponto de partida para a investigação. Afinal de contas, uma bicicleta não é coisa fácil de se ocultar ou destruir. Outra pergunta. Alguém veio visitar o menino, no dia do seu desaparecimento?

— Não.

— Recebeu cartas?

— Recebeu uma.

— De quem?

— Do pai.

— O senhor abre as cartas dos alunos?

— Não.

— Como sabe que era do pai?

— Havia o brasão no envelope, e o endereço fora escrito na letra característica, dura, do duque. Além disso, o duque se lembra de lhe ter escrito.

— Quando recebera o menino outra carta, antes dessa?

— Dias antes.

— Chegou alguma da França?

— Não; nunca.

— Naturalmente o senhor sabe aonde quero chegar. Ou o menino foi levado à força, ou foi de livre vontade. Neste último caso, é de supor que seria preciso algum incitamento de fora, para fazer com que um menino dessa idade agisse assim. Se não recebeu nenhuma visita, esse incitamento deve ter vindo por carta. Por isso procuro saber quem lhe escreveu.

— Creio que não posso ajudá-lo muito. Pelo que sei, somente o pai lhe escrevia.

— E escreveu-lhe no dia do desaparecimento. As relações entre pai e filho eram afetuosas?

— O duque não é afetuoso com ninguém. Está completamente submerso nos negócios públicos, e imune às emoções comuns. Mas, à sua maneira, sempre foi bom para o menino.

— Mas este estava do lado da mãe?

— Estava.

— Ele disse isso?

— Não.

— Foi o duque então?

— Santo Deus, não!

— Então como é que sabe?

— Tive uma conversa particular com o secretário, sr. James Wilder. Foi quem me deu as informações a respeito dos sentimentos de Lorde Saltire.

— Está certo. Por falar nisso, a última carta do duque… foi encontrada no quarto do menino, depois que ele partiu?

— Não. Deve tê-la levado consigo. Creio, sr. Holmes, que está na hora de partirmos para a estação.

— Vou mandar chamar um carro. Dentro de um quarto de hora estaremos às suas ordens. Se telegrafar para casa, sr. Huxtable, é bom que a vizinhança pense que as investigações continuam em Liverpool, ou onde estiverem seus homens. Nesse meio tempo, trabalharei tranqüilamente na escola. Talvez a pista não esteja tão fraca, a ponto de dois cães de caça, como Watson e eu, nada poderem farejar.

Encontramo-nos nessa noite no clima frio e excitante de Peak, onde ficava a famosa escola. Estava escuro quando lá chegamos. Havia um cartão na mesa, e o mordomo murmurou qualquer coisa para o patrão, que se voltou para nós muito agitado.

— O duque está aqui — disse ele. — O duque e o sr. Wilder estão no meu escritório. Venham, senhores, vou apresentá-los a eles.

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(Sidney Paget, 1904)

Eu, naturalmente, conhecia o grande estadista, de fotografia, mas o homem era diferente. Alto e imponente, vestido com esmero, de rosto fino e abatido, nariz grotescamente curvo e longo. Sua pele era extraordinariamente pálida, contrastando com a barba ruiva, que descia até o colete, por entre os fios do qual brilhava a corrente do relógio. Era essa a augusta personagem que nos olhava duramente, de pé, sobre o tapete do dr. Huxtable. A seu lado, um rapaz que tomei como sendo Wilder, o secretário particular. Era baixo, nervoso, alerta, com inteligentes olhos azuis. Foi ele quem, em tom positivo e claro, iniciou a conversa.

— Vim vê-lo hoje de manhã, dr. Huxtable, tarde demais para impedir sua ida a Londres. Fiquei sabendo que sua intenção era convidar o sr. Sherlock Holmes para investigar o caso. Sua Graça ficou admirado, dr. Huxtable, pelo fato de o senhor ter tomado tal iniciativa sem consultá-lo.

— Quando soube que a polícia fracassara…

— Sua Graça não está de forma nenhuma convencido de que a polícia tenha fracassado.

— Mas, enfim, sr. Wilder…

— O senhor sabe perfeitamente que Sua Graça deseja evitar um escândalo. Prefere que o mínimo possível de pessoas tomem conhecimento do caso.

— O remédio é fácil — disse o abatido professor. — O sr. Holmes poderá voltar para Londres, pelo trem da manhã.

— Nada disso, doutor, nada disso — disse Holmes, no seu tom mais suave. — O ar do norte é revigorante e agradável, de modo que pretendo passar uns dias aqui, da melhor maneira possível. Se terei o abrigo da sua casa, ou da estalagem da vila, é coisa que o senhor decidirá.

Vi que o pobre professor estava no auge da indecisão, mas foi socorrido pela profunda e sonora voz do duque de barba ruiva, que soou como um gongo.

— Concordo com o sr. Wilder, dr. Huxtable, quando diz que eu devia ter sido consultado. Mas, já que o sr. Holmes foi inteirado do caso, seria absurdo não utilizarmos seus serviços. Em vez de ir para a estalagem, sr. Holmes, eu teria prazer em hospedá-lo em Holdernesse Hall.

— Agradeço a Vossa Graça. Mas, para o sucesso de minha investigação, acho que será acertado eu permanecer na cena do mistério.

— Como quiser, sr. Holmes. Qualquer informação que desejar de mim ou do sr. Wilder estará, é claro, à sua disposição.

— Será, provavelmente, necessário visitá-lo na mansão — disse Holmes. — Só desejo lhe perguntar agora se tem, pessoalmente, alguma teoria a respeito do misterioso desaparecimento de seu filho.

— Não, senhor, não tenho.

— Perdoe-me aludir a algo que lhe deve ser penoso, mas não tenho outra alternativa. Acha que a duquesa tem alguma relação com o caso?

O ministro mostrou certa hesitação.

— Não creio — respondeu finalmente.

— Outra possibilidade é o menino ter sido raptado, para efeito de resgate. Não recebeu nenhum pedido nesse sentido?

— Não, senhor.

— Mais uma pergunta. Ouvi dizer que escreveu a seu filho, no dia do ocorrido.

— Não; escrevi na véspera.

— Exatamente. Mas ele recebeu a carta no dia, não?

— Recebeu.

— Havia em sua carta alguma coisa que pudesse perturbá-lo e levá-lo a dar tal passo?

— Não, senhor, de forma nenhuma.

— O senhor mesmo pôs a carta no correio?

A resposta foi dada pelo secretário, que falou acaloradamente.

— Sua Graça não tem o hábito de levar suas cartas ao correio — disse ele. — A carta foi colocada junto com as outras, na mesa do escritório, e eu mesmo a coloquei na sacola do correio.

— Tem certeza de que estava no meio das outras?

— Sim.

— Quantas cartas escreveu Sua Graça naquele dia?

Desta vez foi o duque quem respondeu.

— Vinte ou trinta.” Mantenho vasta correspondência. Mas, certamente, isto é sem importância, não?

— Não de todo — declarou Holmes.

— De minha parte, aconselhei a polícia a dedicar sua atenção ao sul da França — informou o duque. — Já disse que não acredito que a duquesa tenha participação em ato tão monstruoso, mas o menino tem idéias errôneas, e é possível que tenha ido procurá-la, ajudado por esse alemão. Creio, sr. Huxtable, que vamos regressar à mansão.

Vi que Holmes não tinha mais perguntas a formular, mas a atitude brusca do duque indicou que dava a entrevista por terminada. Não havia dúvida de que aquela conversa sobre assuntos de família desagradava sumamente à sua natureza aristocrática, e ele temia que novas perguntas lançassem luz sobre os pontos obscuros de sua história ducal.

Depois que o duque e o secretário partiram, Holmes atirou-se ao trabalho, com o zelo habitual.

O quarto do menino foi examinado cuidadosamente, mas nada nos revelou, a não ser que a fuga se dera pela janela. O quarto do alemão também nada nos esclareceu. Ali, um ramo de hera se quebrara sob o peso do homem, e vimos com uma lanterna a marca dos saltos onde ele caíra. Aquela marca na grama era a única prova material da inexplicável fuga noturna.

Sherlock Holmes saiu de casa sozinho, e só voltou depois das onze horas. Conseguira um vasto mapa da região. Levou-o para o meu quarto e estendeu-o na cama. Equilibrando o candeeiro no centro, começou a examiná-lo, mostrando de vez em quando, com a boquilha do cachimbo pontos de interesse.

— O caso me interessa, Watson — disse ele. — Há, sem dúvida, alguns pontos interessantes. Mesmo no início, quero que note a topografia, que poderá nos ser útil.

Holmes fez uma pausa.

— Olhe para este mapa. O quadrado escuro indica a escola. Ponho aqui um alfinete. Esta linha indica a estrada. Veja que vai de leste para oeste, passando pela escola, e note que não há atalhos, numa extensão de um quilômetro e meio, nem de um lado nem de outro. Se os dois seguiram por alguma estrada, foi por esta aqui.

— Exatamente.

Ilustração original da edição brasileira

Ilustração original da edição brasileira

— Por uma feliz e singular coincidência, podemos verificar o que se passou nesta estrada, na noite da fuga. Neste ponto, onde o meu cachimbo descansa, um policial esteve de guarda da meia-noite às seis da manhã. Como vê, é a primeira encruzilhada, a leste. O homem garante que não se afastou um instante de seu posto e tem certeza de não ter visto homem ou criança passar por ali. Conversei com ele e parece-me pessoa de absoluta confiança. Isso exclui este lado. Temos agora o outro. Há aqui uma estalagem, Touro Vermelho, e sua proprietária estava doente. Ela mandara alguém a Mackleton chamar um médico, mas este chegou de manhã, pois estava ocupado com outro caso. O pessoal da estalagem ficou acordado a noite toda à espera, e parece que esteve sempre uma ou outra pessoa vigiando a estrada. Declaram que não passou ninguém. Se pudermos acreditar nisso, temos a sorte de poder também excluir o lado oeste e dizer que os fugitivos não se serviram da estrada.

— Mas, e a bicicleta? — perguntei.

— Exatamente. Já chegaremos à bicicleta. Continuando o nosso raciocínio: se eles não foram pela estrada, devem ter atravessado o campo, ao norte ou ao sul da casa. Isso é certo. Vamos analisar as hipóteses. Ao sul da casa existe, como você vê, um grande trecho de terra de lavoura, dividida em pequenos campos, separados por muros de pedra. Aqui é impossível admitir-se a hipótese da bicicleta. Podemos abandonar a idéia. Voltemos nossa atenção para o norte. Temos um bosque pequeno, assinalado “Ragged Shaw”, e na extremidade há o pântano Lower Gill, estendendo-se por dezesseis quilômetros e subindo gradualmente. Deste lado, fica Holdernesse Hall, a dezesseis quilômetros da estrada, mas a apenas dez do pântano. Lugar estranhamente deserto. Há alguns pequenos fazendeiros, que criam bois e ovelhas. A não ser eles, os únicos habitantes são aves, até que se chegue à auto-estrada de Chesterfield. Ali há uma igreja, como vê, algumas casas e uma estalagem, a Galo de Briga. Adiante, os morros se tornam mais escarpados. Não há dúvida de que aqui, para o norte, é que devemos procurar.

— Mas, e a bicicleta? — perguntei.

— Ora, ora! — exclamou Holmes, impaciente. — Um bom ciclista não precisa de boa estrada. O pântano está cheio de veredas, e a lua brilhava no céu. Oh, que é isso?

Ouviu-se bater agitadamente à porta. No momento seguinte, o dr. Huxtable entrava no quarto. Na mão trazia um boné azul, com uma divisa branca em cima.

— Finalmente, um indício! — disse ele. — Graças a Deus, estamos na pista do querido menino! Eis o seu boné.

— Onde foi encontrado?

— Na carroça dos ciganos acampados no pântano. Eles saíram na terça-feira. Hoje a polícia os alcançou e examinou a caravana. O boné foi encontrado com eles.

— Como os ciganos explicam isso?

— Esquivaram-se às perguntas e mentiram, dizendo que o tinham encontrado no pântano, na manhã de terça-feira Sabem onde está o menino, os miseráveis! Felizmente estie todos na cadeia. O medo da lei, ou o dinheiro do duque, acabarão por fazer com que soltem a língua.

— Até aqui, muito bem — disse Holmes, depois que o professor finalmente se retirou. — Pelo menos isso reforça a teoria de que é do lado do pântano que devemos esperar resultados. A polícia não fez realmente nada, a não ser prender esses ciganos. Veja isso, Watson! Passa um riacho através do pântano. Está aqui marcado no mapa. Em alguns lugares, abre-se num paul, principalmente na região entre Holdernesse Hall e a escola. É inútil procurar a pista em outro ponto, com esta seca, mas ali há a possibilidade de terem ficado marcas. Irei acordá-lo amanhã muito cedo, e juntos procuraremos desvendar o mistério.

O dia começava a clarear, quando acordei e vi o vulto magro e alto de Holmes a meu lado. Ele estava completamente vestido e parecia já ter saído.

— Examinei o gramado e o galpão das bicicletas — disse ele. — Estive no bosque Ragged Shaw. Agora Watson, um chocolate o espera no quarto contíguo. Peço-lhe que se apresse, pois temos um dia cheio à nossa frente.

Seus olhos brilhavam e seu rosto estava corado, com a alegria do artesão que sabe que o trabalho está à sua espera. Um Holmes muito diferente, esse homem alerta, ativo, do introspectivo e pálido sonhador da Baker Street. Ao olhar para a figura flexível, repleta de energia nervosa, compreendi que tínhamos, de fato, um dia atarefado à nossa espera.

Mas começou com a maior das decepções. Atravessamos, esperançosos, o pântano cheio de veredas, até chegarmos à larga faixa verde do paul entre a escola e Holderness Hall. Se o menino se dirigira para casa, certamente passara por ali e não podia ter passado sem deixar vestígios. .Mas não havia sinal dele, e tampouco do alemão. Com expressão sombria, meu amigo andou pela margem, observando atentamente todos os sinais de lama na relva. Havia, em profusão, marcas de patas de ovelhas, e em certo ponto, a quilômetros de distância, via-se que também haviam passado bois por ali. Nada mais.

— Decepção número um — disse Holmes, olhando melancolicamente a vasta extensão de pântano. — Há outro paul mais longe ainda. Ora, que é isto?

Tínhamos chegado a uma vereda que formava um traço escuro no chão. No meio, viam-se claramente as marcas de uma bicicleta.

— Viva! — exclamei. — Acertamos.

Mas Holmes sacudiu a cabeça, com o rosto perplexo e expectante, mais do que alegre.

— Uma bicicleta, sem dúvida, mas não a bicicleta. Conheço quarenta e duas impressões deixadas por pneumáticos. Estas aqui são, como pode ver, de pneus Dunlop, com um remendo do lado de fora. Os pneus do professor alemão, Heidegger, eram de marca Palmer, e deixavam riscos longitudinais. O professor de matemática, Aveling, foi categórico nesse ponto. Não é, portanto, a bicicleta de Heidegger.

— Do menino, então.

— Provavelmente, se pudermos provar que estava de posse de uma bicicleta. Mas não conseguimos apurar nada nesse sentido, como sabe. Essas marcas foram feitas por pessoa que vinha do lado da escola.

— Ou que para lá se dirigia?

— Não, não, caro Watson. A marca mais forte é, naturalmente, feita pela roda traseira, onde recai o peso. Você vê vários lugares por onde ela passou e apagou a marca mais fraca da roda da frente. A bicicleta, indubitavelmente, vinha do lado da escola. Isso pode ou não ter relação com o caso, mas vamos seguir as marcas, para trás, antes de tentar qualquer outra coisa.

Foi o que fizemos, mas dali a centenas de metros perdemos as marcas, ao sairmos da parte lamacenta do pântano. Voltando, encontramos um lugar onde havia uma nascente. Também ali se viam marcas de bicicleta, embora quase apagadas pelas patas dos bois. Depois disso, não havia mais nada, mas a vereda entrava no bosque Ragged Shaw, que ia quase até a escola. Dali devia ter saído o ciclista. Holmes sentou-se numa pedra e descansou o rosto nas mãos. Fumou dois cigarros, antes de se levantar.

— Ora, ora — disse, afinal. — É possível, naturalmente, que um homem esperto trocasse os pneus da bicicleta, para deixar sinais diferentes. O criminoso capaz de pensar nisso é homem com quem eu sentiria prazer em lutar. Deixemos isso por enquanto e vamos voltar, pois ficou muita coisa por explorar.

Continuamos a busca sistemática e logo nossa perseverança foi recompensada.

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(Sidney Paget, 1904)

Bem no meio da parte baixa do paul, havia um caminho lamacento. Holmes soltou um grito de prazer ao aproximar-se. Vimos uma marca, como que de fios telegráficos.

— Aqui está Herr Heidegger, sem a menor dúvida! — exclamou Holmes, exultante. — Meu raciocínio estava certo, Watson.

— Parabéns.

— Mas temos muito o que fazer ainda. Faça o favor de sair do caminho. Vamos agora seguir a pista. Receio que ela não nos leve muito longe.

À medida que avançávamos, víamos que aquele trecho do pântano estava cheio de marcas leves, e, embora muitas vezes perdêssemos a pista, logo adiante encontrávamos as marcas da bicicleta.

— Percebe que aqui o ciclista começou a acelerar? — perguntou Holmes. — Veja esta impressão onde se notam claramente as marcas dos dois pneus, tanto do da frente como do de trás, pelo fato de o ciclista se inclinar para a frente com o esforço. Por Deus! Aqui ele caiu.

Uma marca grande, irregular, cobria um trecho da vereda. Depois, havia pegadas e, logo adiante, surgiam de novo as marcas da bicicleta.

— Uma escorregadela — disse eu.

Holmes segurava um galho de urze em flor. Vi, com horror, que os botões amarelos estavam manchados de vermelho. Também na vereda havia manchas escuras de sangue.

— Mau, mau! — disse Holmes. — Fique de lado, Watson. Nem um passo desnecessário! Que vejo aqui? Ele caiu ferido, levantou-se, tornou a subir na bicicleta e continuou. Mas não há outras marcas. Passou gado por aqui. Teria ele sido atacado por um touro? Impossível! Mas não noto vestígios de pessoas em parte alguma. Temos de continuar, Watson. Não há dúvida de que, com as manchas de sangue a nos guiar, além da marca dos pneus, ele não poderá escapar.

Nossa busca não foi demorada. As marcas dos pneus descreviam agora curvas fantásticas, no chão úmido. De repente, ao olhar para diante, um brilho de metal chamou-me a atenção, no meio das moitas de urzes. Dali tiramos uma bicicleta, com pneus Palmer. Um pedal estava torto, e a frente da bicicleta, toda manchada de sangue. Corremos para trás dela e lá encontramos o infeliz ciclista. Era um homem alto, de barba, óculos, com uma das lentes quebrada. A morte fora causada por uma terrível pancada na cabeça, que lhe esmagara o crânio. O fato de ter continuado, após ter recebido tão rude golpe, indicava que era homem de coragem e energia. Estava de sapatos, mas sem meias e, pelo casaco aberto, via-se que ainda vestia roupa de dormir. Era, sem dúvida, o professor alemão.

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(Sidney Paget, 1904)

Holmes virou respeitosamente o corpo e examinou-o com atenção. Sentou-se, depois, ficando em profunda meditação. Vi, pela sua atitude, que aquela descoberta não o auxiliava no esclarecimento do caso.

— É um pouco difícil saber o que se deve fazer, Watson — disse ele finalmente. — Meu desejo seria prosseguir, pois já perdemos tanto tempo, que não podemos desperdiçar uma hora sequer. Por outro lado, temos de informar a polícia sobre esta descoberta, para que venham retirar o corpo do pobre homem.

— Eu podia ir avisar.

— Mas preciso da sua companhia e do seu auxílio. Espere um pouco! Está ali um sujeito, cortando turfa. Traga-o aqui, e ele irá buscar a polícia.

Fui chamar o assustado camponês, e Holmes despachou-o com um bilhete para o dr. Huxtable.

— Agora, Watson, já conseguimos dois indícios, hoje de manhã. Um foi a bicicleta com pneus Palmer, e vimos ao que ela nos conduziu. O outro é a bicicleta com um pneu Dunlop remendado. Antes de começarmos a investigar, temos de verificar o que sabemos, para tirar o máximo proveito, e separar o essencial do acidental. Em primeiro lugar, quero frisar que o menino fugiu de livre e espontânea vontade. Desceu pela janela e partiu, só ou acompanhado. Isso é certo.

Concordei com as deduções.

— Voltemo-nos agora para o infeliz professor. O menino estava completamente vestido quando partiu. Sabia, portanto, o que ia fazer. Mas o mestre estava sem meias. É evidente que saiu precipitadamente.

— Não há dúvida.

— Por que saiu? Porque viu a fuga do menino, pela janela do seu quarto. Porque desejava alcançá-lo e fazê-lo regressar. Pegou a bicicleta e seguiu o garoto, encontrando assim a morte.

— É o que parece.

— Chego agora à parte crítica da minha argumentação. O natural, para um homem que perseguisse um menino, seria correr atrás dele. Sabia que poderia alcançá-lo. Mas o alemão não o fez. Ouvi dizer que era ótimo ciclista. Apanhou a bicicleta, mas não o teria feito, a não ser que percebesse que o menino tinha um meio rápido de evasão.

— A outra bicicleta.

— Continuemos a reconstituição. Ele é morto a oito quilômetros da escola, não por uma bala, note bem, que até um menino poderia disparar, mas por um golpe forte, desferido por um homem. O menino tinha, portanto, um companheiro. E a fuga foi rápida, uma vez que um bom ciclista levou oito quilômetros para alcançá-lo. Já examinamos a cena da tragédia. Que encontramos? Sinais de gado, nada mais. Examinei o local, e não há caminho no espaço de cinqüenta metros. Outro ciclista não poderia ter tido relação com o crime. E não há pegadas.

— Holmes, isso é impossível! — exclamei.

— Admirável! Observação esclarecedora. É impossível da maneira como descrevi a situação, e, portanto, devo tê-la descrito erradamente. Você já o percebeu. Pode sugerir onde está a falha?

— Não poderia ele ter quebrado a cabeça na queda?

— Num paul, Watson?

— Não sei o que pensar.

— Calma, já resolvemos problemas mais duros. Temos, pelo menos, muito material, se soubermos usá-lo. Venha. Já que acabamos de examinar os pneus Palmer, vamos ver o que os Dunlop poderão nos revelar.

Pegamos a vereda e por ela seguimos durante algum tempo. Mas logo o pântano começou a subir, coberto de urzes, e deixamos para trás o riacho. Já não podíamos esperar encontrar sinais no chão. Do ponto onde vimos as últimas marcas dos pneus Dunlop, podia-se ir para Holdernesse Hall, cujas torres se erguiam à nossa esquerda, a alguns quilômetros de distância, ou então para a vila baixa, cinzenta, que estava à nossa frente e que indicava a posição da auto-estrada de Chesterfield.

prio-06

(Sidney Paget, 1904)

Quando nos aproximamos da estalagem sombria e abandonada, com um galo de briga em cima da porta, Holmes deixou escapar um gemido e agarrou-se ao meu ombro, para não cair. Torcera o tornozelo e teve de ir coxeando até a porta, onde vimos um homem atarracado, moreno, fumando um cachimbo.

— Como vai, sr. Reuben Hayes? — perguntou Holmes.

— Como vai o senhor, e como sabe o meu nome? — perguntou o homem, com um brilho suspeito nos olhos astutos.

— Pois bem, está escrito na tabuleta acima da sua cabeça. É fácil reconhecer o dono da casa. Não tem uma carruagem na sua cocheira?

— Não, não tenho.

— Mal posso firmar o pé no chão.

— Pois não o faça.

— Mas não posso andar.

— Então pule.

O homem estava longe de se mostrar amável, mas Holmes aceitou-o com extraordinário bom humor.

— Escute aqui, homem — disse ele. — Estou em maus lençóis. Pouco me importa a maneira como terei de continuar.

— A mim também — respondeu o calmo estalajadeiro.

— O caso é sério. Ofereço-lhe um soberano pelo empréstimo de uma bicicleta.

— Aonde quer ir?

— A Holdernesse Hall.

— Amigos do duque, com certeza? — perguntou ele, olhando com ironia para as nossas roupas enlameadas.

Holmes soltou uma gargalhada.

— Ele há de ficar satisfeito ao nos ver.

— Por quê?

— Porque levo boas notícias do filho desaparecido.

O homem teve um sobressalto.

— Estão no seu encalço?

— Sei que tiveram notícias dele, em Liverpool. Esperam encontrá-lo a qualquer momento.

Houve de novo uma mudança no rosto pesado, mal-barbeado, do estalajadeiro. O homem tornou-se subitamente alegre.

— Não tenho motivos para querer bem ao duque, pois fui seu cocheiro e ele me tratou muito mal — declarou. — Despediu-me, sem referências, por ter dado ouvidos a um mentiroso negociante de trigo. Mas estou satisfeito por saber que o menino está em Liverpool, e vou ajudá-lo a levar a notícia à mansão.

— Muito obrigado — disse Holmes. — Vamos comer qualquer coisa, primeiro, depois pode trazer sua bicicleta.

— Não tenho bicicleta.

Holmes mostrou-lhe o soberano.

— Já disse, homem, que não tenho bicicleta — declarou o sujeito. — Posso emprestar-lhes dois cavalos.

— Bom, bom, falaremos sobre isso depois de termos comido — disse Holmes.

Quando nos vimos a sós, na sala de pedra, foi extraordinária a maneira como o tornozelo torcido ficou bom. Era quase noite, e nada tínhamos comido desde a manhã, de modo que nossa refeição foi longa. Holmes, perdido em seus pensamentos, foi uma ou duas vezes até a janela, e ficou olhando para fora. A janela dava para um pátio imundo. Na outra extremidade havia uma forja, onde trabalhava um garoto sujo. Do outro lado ficava a cocheira. Holmes sentara-se de novo, após uma das suas idas à janela, quando, de repente, se levantou de um salto, exclamando:

— Diabos, Watson, creio que descobri! — exclamou ele. — Sim, sim, deve ter sido isso, Watson; lembra-se de ter visto sinais de patas de gado?

— Sim, muitos.

— Onde?

— Por toda parte. No paul, na vereda e perto do lugar onde Heidegger foi morto.

— Exatamente. Agora, Watson, quantos bois você viu no pântano?

— Não me lembro de ter visto um sequer.

— Estranho, Watson, que tenhamos visto as marcas e nenhum boi, em todo o pântano. Muito estranho, hein, Watson?

— Sim, de fato.

— Agora, Watson, faça um esforço, procure lembrar-se! Vê essas marcas no caminho?

— Vejo, sim.

— Consegue lembrar-se de que eram marcas assim… — Holmes colocou sobre a mesa várias partículas de pão, da seguinte maneira : : : : :, e às vezes assim: • : • : • : • , e, de vez em quando assim: . • . • . • Lembra-se?

— Não, não me lembro.

— Mas eu me lembro. Podia jurar que é assim. Mas vamos voltar, com calma, para verificar. Que idiota fui, em não ter tirado minha conclusão.

— Que conclusão?

— Que somente um boi extraordinário poderia andar, trotar e galopar. Com mil diabos, Watson, não foi um camponês que pensou em semelhante dissimulação! Parece que o campo está livre, a não ser por aquele garoto, na forja. Vamos sair de mansinho e ver o que há por aí.

Na cocheira havia dois cavalos maltratados. Holmes ergueu a pata traseira de um deles e soltou uma risada.

— Ferraduras velhas, mas ferradas recentemente; ferraduras velhas, mas pregos novos. Este caso merece ser considerado clássico. Vamos até a forja.

O garoto continuava trabalhando, sem olhar para nós. Vi Holmes olhar para a direita e para a esquerda, por entre os ferros e a madeira espalhada pelo chão. De repente, ouvimos passos atrás de nós e demos com o estalajadeiro, de sobrancelhas contraídas sobre os olhos selvagens, o rosto convulsionado pela cólera.

Tinha na mão uma curta barra de ferro e avançava tão ameaçadoramente que me senti feliz por ter o revólver no bolso.

— Espiões do inferno! — exclamou ele. — Que estão fazendo aqui?

— Ora, sr. Reuben Hayes, até parece que está com medo de que venhamos a descobrir alguma coisa — disse Holmes friamente.

O homem dominou-se com um tremendo esforço e soltou uma risada falsa, que era mais ameaçadora do que a carranca.

— A forja está às suas ordens — disse ele. — Mas fique sabendo, cavalheiro, que não gosto que andem revistando a casa sem minha licença, de modo que, quanto mais depressa pagarem a conta e desaparecerem, melhor.

— Está bem, sr. Hayes, não houve má intenção — disse Holmes. — Estivemos examinando os seus cavalos, mas acho que prefiro ir a pé, afinal de contas. Creio que não é longe.

— Não mais de três quilômetros, até os portões da mansão — respondeu o homem, olhando-nos com ar sombrio, quando nos afastamos.

Não fomos muito longe, na estrada, pois Holmes parou no momento em que uma curva nos escondeu dos olhos do estalajadeiro.

— Estava “quente”, como dizem as crianças, lá na estalagem — disse ele. — E parece que vai ficando “frio”, a cada passo que dou em direção contrária. Não, não posso sair daqui.

— Estou convencido de que aquele homem sabe de tudo — observei. — Que sujeito mal-encarado!

— Oh, achou? Lá estão os cavalos, a forja. Sim, é interessante essa Galo de Briga. Creio que vamos dar mais uma espreitadela, disfarçadamente.

Atrás de nós erguia-se uma colinazinha, coberta por pedras cheias de limo. Deixamos a estrada e começamos a subir o morro, quando, olhando na direção de Holdernesse Hall, vimos um ciclista que de lá vinha apressadamente.

— Deite-se, Watson! — exclamou Holmes, pondo a mão pesada no meu ombro.

prio-07

(Sidney Paget, 1904)

Mal nos escondêramos, o homem passou voando pela estrada. No meio de uma nuvem de poeira, vi um rosto pálido e agitado, com o horror estampado em todas as feições, a boca aberta, os olhos fixos na estrada à sua frente. Era uma caricatura do correio James Wilder que víramos na noite anterior.

— O secretário do duque! — exclamou Holmes. — Venha, Watson, vamos ver o que ele vai fazer.

Andamos de pedra em pedra até chegar a um ponto de onde podíamos ver a entrada da estalagem. A bicicleta de Wilder estava à porta. Ninguém se movia dentro de casa, nem víamos pessoa alguma às janelas. Lentamente, descia a noite, à medida que o sol se ocultava atrás das altas torres de Holdernesse Hall.

Vimos, então, acenderem-se duas luzes, numa carruagem que estava na cocheira. Logo em seguida ouvimos ruídos de patas de cavalos, quando o carro ganhou a estrada, dirigindo-se velozmente para Chesterfield.

— Que me diz disso? — murmurou Holmes.

— Parece uma fuga.

— Apenas um homem nessa carruagem, ao que parece. Bom, não é o sr. Wilder, pois lá está ele, na porta.

Um retângulo de luz rubra se refletia da casa. No meio, vimos o vulto do secretário com a cabeça para a frente, perscrutando a escuridão. Não havia dúvida de que esperava alguém. Finalmente ouvimos passos na estrada, e logo outro vulto surgiu no retângulo de luz. Fechou-se a porta e de novo ficou tudo escuro. Cinco minutos mais tarde, acendeu-se uma luz no andar de cima.

— Parece que a Galo de Briga tem fregueses estranhos — observou Holmes.

— Mas a estalagem fica do outro lado.

— De fato. Aqueles são os que poderíamos chamar de “hóspedes particulares”. Agora, que diabo estará o sr. Wilder fazendo na estalagem, a estas horas, e quem é a pessoa que veio ao encontro dele? Vamos, Watson, temos de nos arriscar a investigar mais um pouco.

prio-08

(Sidney Paget, 1904)

Juntos, dirigimo-nos para a estalagem. A bicicleta ainda estava contra a porta. Meu amigo riscou um fósforo, e vi-o dar uma risadinha, quando a luz caiu sobre os pneus Dunlop. Lá em cima a luz brilhava, no primeiro andar.

— Tenho de dar uma olhadela, Watson — disse Holmes. — Se você se abaixar, encostando-se à parede, creio que me arranjarei.

No momento seguinte, seus pés firmavam-se nos meus ombros. Mas ele desceu imediatamente.

— Vamos, amigo, nosso dia de trabalho foi bastante longo. Temos uma boa caminhada até a escola, e quanto mais depressa partirmos, melhor.

Mal abriu a boca enquanto atravessamos o pântano, e nem entrou na escola quando lá chegamos. Continuou até a estação de Mackleton, de onde expediu alguns telegramas. Já tarde da noite, ouvi-o consolar o dr. Huxtable, muito abalado com a morte do professor de alemão. Mais tarde ainda, entrou no meu quarto, parecendo tão vivo e alerta como nas primeiras horas do dia.

— Tudo bem, amigo — disse ele. — Prometo-lhe que, antes que o dia de amanha termine, teremos a solução do mistério.

Às onze da manhã do dia seguinte, meu amigo e eu entrávamos na alameda de teixos de Holdernesse Hall. Fizeram-nos passar pelo magnífico portal elisabetano, e entramos no escritório do duque. Ali encontramos o sr. Wilder, grave e cortês, mas ainda com vestígios do horror da noite anterior nos olhos furtivos e nas feições contraídas.

— Vieram ver Sua Graça? Sinto muito, mas o caso é que o duque não está passando bem. Ficou abalado com a trágica notícia. Recebemos ontem um telegrama do dr. Huxtable contando-nos sua descoberta, sr. Holmes.

— Preciso ver o duque, sr. Wilder.

— Mas ele está no quarto.

— Então tenho de ir ao quarto.

— Creio que ainda está na cama.

— Vê-lo-ei de qualquer maneira.

A atitude fria e inexorável de Holmes mostrou ao secretário que não adiantava insistir na negativa.

— Muito bem, sr. Holmes, dir-lhe-ei que estão aqui.

Meia hora mais tarde, aparecia o nobre senhor. Seu rosto estava mais cadavérico do que nunca, os ombros, caídos para a frente, e pareceu-me muito mais velho do que na manhã anterior. Recebeu-nos com muita cortesia e sentou-se à escrivaninha, com a barba ruiva batendo na madeira.

— Então, sr. Holmes?

Os olhos de meu amigo estavam fixos no secretário, atrás da cadeira do patrão.

— Creio, senhor, que falarei mais livremente na ausência de seu secretário.

O rapaz tornou-se mais pálido e lançou a Holmes um olhar malévolo.

— Se Vossa Graça assim o desejar…

— Sim, sim, é melhor sair. Agora, sr. Holmes, que tem a dizer?

Meu amigo esperou até que a porta se fechasse, após a saída, do secretário.

— O fato é, senhor duque, que meu amigo e eu ouvimos o dr. Huxtable dizer que há uma recompensa, neste caso. Gostaria de ouvir isso de seus próprios lábios.

— Sem dúvida, sr. Holmes.

— Parece-me que são cinco mil libras a quem lhe disser onde está seu filho.

— Exatamente.

— E mais mil para aquele que indicar a pessoa ou pessoas que o mantêm prisioneiro.

— Exatamente.

— Neste último caso, estão incluídas não só as pessoas que o levaram como também as que conspiram para mantê-lo preso?

— Sim, sim — disse o duque com impaciência. — Se fizer bem seu trabalho, sr. Holmes, não poderá queixar-se de mesquinhez da minha parte.

Meu amigo esfregou as mãos, mostrando uma avidez que me surpreendeu, pois conhecia-lhe os gostos simples.

— Parece-me que vejo seu talão de cheques sobre a mesa — continuou Holmes. — Gostaria que me passasse um cheque de seis mil libras.

O duque estava muito rígido, em sua cadeira, e olhou com frieza para meu amigo.

— É algum gracejo, sr. Holmes? Parece-me que o caso não é para brincadeiras.

— De forma nenhuma, senhor duque. Nunca estive mais sério em minha vida.

— Que quer dizer, então?

— Quero dizer que mereço a recompensa. Sei onde está seu filho e os nomes pelo menos de algumas das pessoas que o mantêm prisioneiro.

A barba do duque tornou-se agressivamente mais ruiva, contra o rosto horrivelmente pálido.

— Onde está ele? — perguntou.

— Está, ou estava, na noite passada, na Galo de Briga, a três quilômetros dos seus portões.

O duque afundou-se na cadeira.

— E a quem o senhor acusa?

A resposta de Holmes foi surpreendente. Adiantou-se rapidamente e tocou no ombro do duque.

— Acuso o senhor — disse ele. — E, agora, espero que me dê o cheque.

Nunca me esquecerei da expressão do duque, ao levantar-se, agarrando-se à mesa como alguém que se afunda num abismo. Depois, com extraordinário esforço, dominou-se. Sentou-se e escondeu o rosto nas mãos. Só falou dali a minutos.

— O que é que sabe? — perguntou finalmente, sem erguer a cabeça.

— Vi-os juntos a noite passada, ao senhor e a ele.

— Alguém mais, além de seu amigo, sabe disso?

— Não falei com ninguém.

O duque apanhou uma pena com dedos trêmulos e abriu o talão de cheques.

— Cumprirei minha promessa, sr. Holmes. Vou passar o cheque, por mais desagradável que me seja a informação que o senhor conseguiu obter. Quando ofereci a recompensa, mal sabia do caminho que tomariam os acontecimentos. Mas o senhor e seu amigo são discretos, sr. Holmes?

— Não compreendo o que quer dizer.

— Falarei mais claramente, sr. Holmes. Se apenas os senhores souberem do incidente, não há por que se tornar mais conhecido. Creio que lhe devo doze mil libras, não?

Holmes sorriu, sacudindo a cabeça.

— Receio que o assunto não possa ser resolvido com essa facilidade. Temos de nos lembrar da morte do professor de alemão.

— Mas James não sabia disso. O senhor não pode responsabilizá-lo. Foi obra daquele selvagem que ele teve a infelicidade de tomar ao seu serviço.

— Na minha opinião, senhor duque, quando um homem se lança a um crime, é moralmente responsável por qualquer crime que derive do primeiro.

— Moralmente, sr. Holmes. Certamente tem razão. Mas não aos olhos da lei. Um homem não pode ser condenado por um assassinato ao qual não esteve presente e que abomina tanto como o senhor. No momento em que soube disso, James confessou-me tudo, tão grande era seu horror e seu remorso. Não se demorou em ir recriminar o assassino. Oh, sr. Holmes, precisa salvá-lo, precisa salvá-lo.

O duque renunciara ao esforço de procurar dominar-se. Andava de um lado para outro, com expressão convulsa. Finalmente, acalmou-se e voltou para a escrivaninha.

— Aprecio sua conduta, vindo procurar-me antes de falar com qualquer outra pessoa — disse ele. — Pelo menos podemos ponderar a melhor forma de abafar o escândalo.

— Exatamente — disse Holmes. — Acho que isso só poderá ser feito se falarmos com absoluta franqueza. Estou pronto a ajudá-lo, da melhor maneira possível, mas, para isso, preciso de todos os pormenores. Parece-me que se referiu ao sr. Wilder e que ele não é o criminoso.

— Não é; o criminoso fugiu.

Sherlock Holmes sorriu.

prio-09

(Sidney Paget, 1904)

— Vossa Graça não deve conhecer a reputação que tenho, pois do contrário não acharia tão fácil uma pessoa me escapar. O sr. Reuben Hayes foi preso em Chesterfield, às onze horas da noite passada, graças às informações por num fornecidas. Recebi um telegrama do chefe da polícia antes de sair da escola, hoje de manhã, comunicando-me a sua prisão.

O duque recostou-se na cadeira e olhou com espanto para meu amigo.

— O senhor parece ter poderes sobre-humanos — disse ele. — Então Reuben Hayes foi preso? Estou satisfeito por ouvir isso, se o fato não prejudicar James.

— Seu secretário?

— Não, senhor, meu filho.

Foi a vez de Holmes ficar admirado.

— Confesso que isso para mim é novidade. Peço-lhe que seja mais explícito.

— Nada lhe ocultarei. Concordo com o senhor em que há necessidade de absoluta franqueza. Por mais penoso que me seja isso, é a melhor política, nesta situação desesperada a que nos reduziu a loucura e a inveja de James. Quando eu era jovem, sr. Holmes, amei como só se ama uma vez na vida. Quis me casar com a mulher dos meus sonhos, mas, alegando que isso me arruinaria a carreira, ela se recusou a aceitar meu pedido. Se ela não tivesse morrido, nunca teria me casado com mais ninguém. Morreu e deixou-me esse filho, que criei por amor a ela e a quem me afeiçoei. Não pude reconhecer a paternidade aos olhos do mundo, mas dei-lhe a melhor educação possível, e, quando cresceu, trouxe-o para minha companhia. Ele descobriu meu segredo, e desde então procurou fazer valer o que julga ser seu direito, ameaçando-me de escândalo, coisa que sabe que abomino. Sua presença foi, em parte, responsável pelo fracasso de meu casamento. Acima de tudo, ele odiava Lorde Saltire, meu filho legítimo e meu herdeiro. O senhor me perguntará por que o conservava aqui, nessas circunstâncias, mas posso lhe responder que é porque via em seu rosto os traços da mãe, e por amor a ela não queria afastá-lo. Todos os seus gestos me lembravam a mulher que amei outrora, e eu não podia mandá-lo embora. Mas receei que fizesse alguma coisa contra Arthur — isto é, Lorde Saltire —, e por isso mandei o menino para a escola do dr. Huxtable.

“James conheceu aquele tal Hayes quando o sujeito era meu inquilino, e James, meu administrador. O homem foi sempre um canalha. É incrível que James se tornasse íntimo… mas sempre gostou da companhia de gente baixa. Quando James resolveu raptar Lorde Saltire, lembrou-se de tomar Hayes ao seu serviço. O senhor se recorda de que escrevi a meu filho, na véspera da fuga. Pois bem, James abriu o envelope e acrescentou um bilhete, pedindo a Arthur que fosse ao seu encontro, no bosque Ragged Shaw; perto da escola. Serviu-se do nome da duquesa e, assim, fez com que o menino fosse. Naquela noite, James foi para lá de bicicleta — estou lhe dizendo o que ele próprio me confessou — e disse a Arthur, com quem se encontrou no bosque, que sua mãe estava ansiosa por tornar a vê-lo, que o esperava no pântano e que, se ele voltasse para o bosque à meia-noite, ali encontraria um homem com um cavalo, e que o sujeito o levaria até a duquesa. O pobre menino caiu na armadilha. Foi à entrevista e encontrou Hayes, que lhe trazia um cavalo. Arthur montou, e os dois seguiram juntos. James só ontem soube que eles tinham sido seguidos, que Hayes atacou o professor com uma barra de metal, matando-o. Hayes levou meu filho para a Galo de Briga, prendendo-o num quarto do andar de cima, onde ficou aos cuidados da sra. Hayes, mulher bondosa, mas dominada pelo marido.

“Pois bem, sr. Holmes, era esse o estado de coisas, quando o vi pela primeira vez, há dois dias. Não fazia a menor ideia da verdade. O senhor me perguntará que motivos teve James para agir dessa forma. Respondo que, de fato, há muito de loucura e fanatismo no ódio que ele tem ao meu herdeiro. Na sua opinião, ele é que deve ser o herdeiro de todas as minhas propriedades e não se conforma com as leis que tornam isso impossível. Por outro lado, tinha também um motivo definido. Estava ansioso por que eu quebrasse o vínculo, achando que eu tinha o poder de fazê-lo. Pretendia propor-me um negócio: devolver-me Arthur se eu quebrasse o vínculo, fazendo assim com que fosse possível deixar-lhe as propriedades em testamento. Sabia perfeitamente que eu nunca chamaria de boa vontade a polícia. Creio que me faria tal proposta, mas não chegou a fazê-la, pois os acontecimentos se precipitaram e ele não teve tempo de pôr em prática sua idéia.

“O maldoso plano foi frustrado quando o senhor descobriu o corpo de Heidegger. James ficou horrorizado. Soubemos disso ontem, quando estávamos sentados no escritório. O dr. Huxtable mandou um telegrama. James ficou tão transtornado, que minhas suspeitas, que já existiam, transformaram-se em certeza. Acusei-o. Ele fez uma confissão completa. Depois, suplicou-me que guardasse segredo por mais três dias, para dar tempo ao seu miserável cúmplice de fugir e se salvar. Acedi — como sempre — aos seus rogos, e logo James correu para a Galo de Briga, para prevenir Hayes e facilitar-lhe a fuga. Eu não podia ir lá de dia sem provocar comentários, mas, assim que caiu a noite, fui ver meu querido Arthur. Encontrei-o bem, mas horrorizado com o crime que presenciara. Por causa de minha promessa e contra a minha vontade, consenti em deixar o menino lá mais três dias, aos cuidados da sra. Hayes, já que parecia impossível informar a polícia do seu paradeiro sem contar quem era o assassino… e eu não via maneira de punir esse assassino sem que também James ficasse desgraçado. O senhor pediu franqueza, sr. Holmes, e concordei plenamente, pois contei-lhe tudo, sem a menor reserva. Seja, por sua vez, franco comigo.”

— Com certeza — disse Holmes. — Em primeiro lugar, sou obrigado a dizer que o senhor se colocou numa posição muito delicada aos olhos da lei. Tornou-se conivente num crime e ajudou a fuga de um assassino, pois não duvido de que o dinheiro que James Wilder levou ao cúmplice tenha vindo dos cofres de Vossa Graça.

O duque inclinou a cabeça.

— É, de fato, um assunto muito sério. Mais repreensível ainda, na minha opinião, é a sua atitude em relação a seu filho mais novo. O senhor o deixa naquele antro por mais três dias…

— Sob promessa formal…

— Que adiantam as promessas dessa gente? O senhor não tem a menor garantia de que não o levem novamente. Para fazer a vontade de seu filho mais velho, culpado, o senhor expôs o mais novo, inocente, a um perigo desnecessário. Foi uma atitude injustificável.

O orgulhoso senhor de Holdernesse não estava habituado a ser tratado dessa forma no seu salão ducal. O sangue subiu-lhe ao rosto, mas a consciência obrigou-o a ficar mudo. Holmes continuou:

— Vou ajudá-lo, mas com uma condição. É que toque a campainha e permita que eu dê ao lacaio as ordens que bem entender.

Sem uma palavra, o duque apertou o botão da campainha. Entrou um lacaio.

— Vai ficar satisfeito por saber que seu patrãozinho foi encontrado — disse Holmes. — O duque deseja que a carruagem vá imediatamente à Galo de Briga, para trazer Lorde Saltire para casa.

Depois que o criado, muito feliz, desapareceu, Holmes continuou:

— Agora, tendo tratado do futuro, procuremos ser condescendentes quanto ao passado. Não tenho cargo oficial, e não há motivo, contanto que se faça justiça, para eu revelar o que sei. Quanto a Hayes, nada tenho a dizer. Espera-o a força, e nada farei para salvá-lo. Não sei o que ele poderá revelar, mas não duvido de que Vossa Graça possa fazê-lo compreender que é de seu interesse guardar silêncio. Do ponto de vista da polícia, ele raptou seu filho para efeito de resgate. Se não descobrirem mais nada, não vejo razão para lhes abrir os olhos. Gostaria, no entanto, de prevenir Vossa Graça de que a contínua presença do sr. James Wilder em sua casa só poderá causar-lhe desventura.

— Estou de acordo, sr. Holmes, e já ficou combinado que ele me deixará para sempre e irá tentar a vida na Austrália.

— Nesse caso, já que o senhor mesmo me disse que o fracasso de seu casamento teve por causa a presença dele aqui, aconselhá-lo-ei a desculpar-se perante a duquesa, procurando recomeçar a vida matrimonial, tão desastrosamente interrompida.

— Também pensei nisso, sr. Holmes, e já escrevi à duquesa hoje de manhã.

Holmes ergueu-se.

— Nesse caso, acho que meu amigo e eu podemos congratular-nos quanto a alguns aspectos felizes de nossa visita aqui ao norte. Há ainda um ponto que desejo esclarecer. Aquele Hayes ferrou os cavalos com ferraduras que imitavam patas de gado. Foi com o sr. Wilder que aprendeu truque tão extraordinário?

O duque ficou pensativo por um momento, com expressão de grande surpresa na fisionomia. Depois abriu uma porta e conduziu-nos a um salão que parecia um museu. Levou-nos até uma vitrina a um canto e apontou para uma inscrição. Lemos:

“Estas ferraduras foram desenterradas dos fossos de Holdernesse Hall. São para cavalos, mas feitas com uma chapa de ferro partida ao meio, para despistar perseguidores. Acredita-se que tenham pertencido aos barões de Holdernesse, na Idade Média”.

Holmes abriu a vitrina, molhou os dedos e passou-os pelas ferraduras. Ainda havia nelas leves sinais de lama.

— Muito agradecido — disse ele, fechando a porta de vidro. — É a segunda coisa interessante que vi aqui no norte.

— E a primeira?…

Holmes dobrou o cheque e guardou-o cuidadosamente.

— Não sou muito rico — respondeu.

Bateu afetuosamente na carteira, pondo-a no bolso.

[1] “Notas de Huxtable sobre Horácio.” (N. do E.)

1905
A volta de Sherlock Holmes

1. A casa vazia § 2. O construtor de Norwood
3. Os dançarinos § 4. A ciclista solitária
5. A escola do priorado § 6. Pedro Negro
7. Charles Augustus Milverton § 8. Os seis bustos de Napoleão
9. Os três estudantes § 10. O pincenê dourado
11. O atleta desaparecido § 12. Abbey Grange § 13. A segunda mancha

Ilustrações: Frederic Dorr Steele & Sidney Paget, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock