O corcunda

Arthur Conan Doyle

O corcunda

Título original: The Crooked Man
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Julho de 1893 e com 7 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Crooked Man publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume III,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.

Numa noite de verão, alguns meses depois de meu casamento, eu estava sentado perto da lareira, fumando a última cachimbada e cabeceando sobre um romance, porque tivera um dia de trabalho exaustivo. Minha mulher já subira, e o som da fechadura da porta do bali, um pouco antes, dizia-me que as criadas também já se haviam retirado. Levantara-me da cadeira e sacudia a cinza do cachimbo quando de repente ouvi o toque da campainha.

Olhei para o relógio. Faltava um quarto para a meia-noite. Não podia ser uma visita àquela hora. Era, evidentemente, um doente, e achei que teria de passar a noite trabalhando. Dirigi-me ao hall, mal-humorado, e abri a porta. Para meu espanto, era Sherlock Holmes que estava no degrau da porta.

— Ah! Watson — disse ele —, receava que fosse tarde demais para encontrá-lo.

— Meu caro amigo, entre, por favor.

— Parece surpreso, e não admira! E aliviado, também, calculo! Hum! Continua a fumar a mistura Arcádia dos seus dias de solteiro. É impossível confundi-la, com essa cinza leve que tem no casaco. Evidentemente, Watson, você está habituado a usar uniforme, mas nunca passará por um civil de puro-sangue enquanto conservar o hábito de meter o lenço na manga. Poderia alojar-me esta noite?

— Com prazer.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— Disse-me que tinha quarto de solteiro para um. E vejo que de momento não tem nenhuma visita importante. O bengaleiro prova-o.

— Terei grande prazer se ficar.

— Muito obrigado. Então me alojarei em qualquer parte. Entristece-me ver que precisou de um operário em casa. Está um cheiro dos demônios; não é o esgoto que está com problemas, espero.

— Não, é o gás.

— Ah, ele deixou duas pequenas marcas de suas botas no linóleo, precisamente onde bate a luz. Não, obrigado, já ceei em Waterloo [1], mas fumarei uma cachimbada com você com todo o prazer.

Passei-lhe minha tabaqueira, e ele, sentando-se à minha frente, fumou por algum tempo em silêncio. Eu estava convencido de que só um assunto importante o traria a minha casa a tal hora, de modo que esperei com paciência que se explicasse.

— Vejo que está profissionalmente muito ocupado — disse-me, olhando muito vivamente para mim.

— Sim, tive um dia cheio — respondi. — Pode parecer muito tolo a seus olhos — acrescentei —, mas não sei como o deduziu.

Holmes riu e disse:

— Tenho a vantagem de conhecer seus hábitos, meu caro Watson. Quando realiza poucas visitas, você vai a pé, e quando são muitas, utiliza um carro. Pelo que vejo, suas boinas, embora usadas, não estão sujas. Não posso duvidar, pois, de que hoje você esteve bastante atarefado para justificar o uso de um coche.

— Excelente — disse eu.

— Elementar — respondeu. — É um desses exemplos pelo qual o raciocinador pode produzir um efeito que parece notável a seu amigo, porque este passou por alto um pormenor que é a base da dedução. Pode-se dizer o mesmo, meu caro, do efeito de alguns desses seus pequenos esboços, que é inteiramente enganoso, pois consiste em reter nas próprias mãos alguns aspectos do problema que nunca se transmitem ao leitor. Ora, neste momento estou na posição dos leitores, porque tenho aqui diversos elementos de um dos casos mais estranhos que já deixaram perplexo o cérebro do homem; todavia, faltam-me um ou dois pontos necessários ao complemento de minha teoria. Mas hei de descobri-los, Watson, hei de descobri-los! — Seus olhos inflamaram-se, e um leve rubor coloriu-lhe a face. Por um instante, o véu daquela natureza tensa e apaixonada fora levantado, mas por um instante apenas. Quando o olhei outra vez pelo canto dos olhos, seu rosto já readquirira aquela compostura impassível de pele-vermelha que levara tantos a considerá-lo mais como máquina do que como homem.

— O problema apresenta características de interesse — disse ele. — Posso até dizer que de excepcional interesse. Considerei a matéria e quase cheguei, segundo penso, a uma solução. Se me pudesse acompanhar neste último passo, isso me seria de considerável valor.

— Com todo o prazer.

— Poderia ir até Aldershot amanhã?

— Não tenho dúvida de que Jackson se encarregará de meus clientes.

— Eu queria partir de Waterloo às onze e dez.

— Terei tempo suficiente.

— Então, se não estiver com muito sono, eu lhe farei um esboço do que aconteceu e do que resta a fazer.

— Estava com sono antes de você chegar. Agora estou perfeitamente desperto.

— Resumirei a história até onde for possível, sem omitir nada de vital ao caso. É provável que tenha lido alguma narrativa do assunto. Trata-se do suposto assassínio do coronel Barclay, do Royal Mallows, em Aldershot.

— Não sei de nada.

— Não atraiu grande atenção, exceto no local. Os acontecimentos ocorreram há apenas dois dias. Em resumo, são os seguintes:

“O Royal Mallows, como sabe, é um dos mais famosos regimentos irlandeses do exército britânico. Fez maravilhas tanto na Criméia como durante o Mutiny [2], e tem se distinguido desde esse tempo em todas as ocasiões possíveis. Até segunda-feira à noite, foi comandado por James Barclay, um valoroso veterano, que começou como soldado raso, foi elevado à classe de oficiais pela sua bravura no tempo do Mutiny, e viveu então para comandar o regimento no qual servira como soldado.

“O coronel Barclay casou-se quando era sargento. Sua esposa, cujo nome de solteira era Nancy Devoy, era filha de um antigo sargento porta-bandeira. Houve, portanto, um leve atrito social quando o jovem par (porque eles eram ainda jovens) se encontrou no novo ambiente. Parece, no entanto, que se adaptaram rapidamente. A Sra. Barclay sempre foi, segundo me disseram, tão popular entre as senhoras do regimento como seu marido entre seus irmãos de armas. Posso acrescentar que era uma mulher de grande beleza, e mesmo agora, depois de trinta e tantos anos de casada, é ainda de aparência atraente.

“A vida familiar do coronel Barclay parece ter sido uniformemente feliz. O major Murphy, a quem devo a maioria destas informações, assegura-me que nunca ouviu falar de nenhuma desavença entre o casal. Em resumo, ele acha que a devoção de Barclay pela esposa era maior do que a da esposa para com Barclay. Ficava terrivelmente inquieto se se separasse dela por um dia. Ela, pelo contrário, posto que dedicada e fiel, era menos claramente afeiçoada. Mas eram considerados no regimento como verdadeiro modelo de um casal de meia-idade. Não havia absolutamente nada nas suas relações mútuas que os preparasse para a tragédia que devia seguir-se.

“O próprio coronel Barclay parecia ter rasgos singulares de caráter. Era um velho soldado, habitualmente jovial e impetuoso. Mas havia ocasiões em que parecia mostrar-se consideravelmente violento e vingativo. Todavia, essa faceta de sua natureza parece nunca se ter voltado contra sua esposa. Outro fato que chocou o major Murphy, e três dos outros cinco oficiais com quem conversei, era uma espécie de estranha depressão que o atacava às vezes. Como disse o major, o sorriso muitas vezes morria-lhe nos lábios, como se mão invisível o arrancasse, quando participava das alegrias e brincadeiras da mesa comum do quartel. Por dias a fio, mergulhava na mais profunda tristeza, acometido por essa crise. Isso e um certo laivo de superstição eram os únicos traços invulgares de caráter que seus irmãos de armas observaram. A última peculiaridade consistia em não gostar de ficar sozinho, especialmente depois do escurecer. Essa característica pueril, numa natureza conspicuamente varonil, dera muitas vezes azo a comentários e conjeturas.

“O primeiro batalhão do Royal Mallows (que é o antigo 117.°) instalou-se em Aldershot por alguns anos. Os oficiais casados moravam fora do quartel, e o coronel ocupou sempre um chalé chamado Lachine, a cerca de oitocentos metros do North Camp. A casa está edificada em terreno próprio, mas o lado oeste não dista mais de trinta metros da estrada. Um cocheiro e duas criadas formam o corpo de empregados. Estes, com o patrão e a patroa, eram os únicos ocupantes de Lachine, porque os Barclays não tinham filhos e não costumavam abrigar visitantes permanentes.

“Passemos aos acontecimentos em Lachine, entre as vinte e uma e as vinte e duas horas de segunda-feira passada.

“A sra. Barclay era membro da Igreja Católica Romana. Interessava-se muito pelo estabelecimento da Guilda de São Jorge, que se formara em conexão com a capela da Watt Street a fim de fornecer roupas usadas aos pobres. Estava marcada uma reunião da Guilda para as vinte horas daquela noite, e a Sra. Barclay apressou o jantar para estar presente. Ao sair de casa, o cocheiro ouviu-a dirigir observações triviais ao marido, assegurando-lhe que estaria de volta dentro de pouco tempo. Foi então buscar a Srta. Morrison, uma jovem que mora na casa próxima, e as duas foram juntas à reunião. Durou quarenta minutos, e às vinte e uma e quinze a Sra. Barclay voltou para casa, deixando, ao passar, a Srta. Morrison à porta de casa.

“Há um cômodo que é usado como sala matinal em Lachine. Dá de frente para a estrada e abre, por meio de uma porta dobradiça de vidro, para o relvado. Este tem vinte e sete metros de lado a lado, e está separado da estrada apenas por um muro baixo, com grade de ferro. Foi nessa sala que a Sra. Barclay entrou quando regressou. As cortinas não estavam corridas, porque a sala raramente é utilizada à noite. A Sra. Barclay acendeu o candeeiro e tocou a campainha, pedindo a Jane Stewart, a caseira, que lhe trouxesse uma chávena de chá, o que era inteiramente contrário a seus hábitos. O coronel se sentara na sala de jantar, mas, ouvindo sua esposa chegar, juntou-se a ela na sala matinal. O cocheiro viu-o atravessar o hall e entrar na sala. E nunca mais ele foi visto com vida.

“O chá que a Sra. Barclay pedira foi-lhe trazido ao fim de dez minutos. Mas a criada, ao aproximar-se da porta, ficou surpresa por ouvir as vozes do patrão e da patroa em furiosa altercação. Bateu sem receber resposta e, girando a maçaneta, verificou que a porta estava trancada por dentro. Naturalmente, correu a informar a cozinheira, e as duas mulheres, com o cocheiro, subiram ao hall e ouviram a discussão que ainda perdurava. Todos estão de acordo em que somente duas vozes se ouviam, a de Barclay e a da esposa. As observações do coronel eram contidas e abruptas, de modo que não eram audíveis. As da senhora, pelo contrário, eram muito ásperas e, quando levantara a voz, ouviu-se claramente: ‘Covarde!’ Ela repetia constantemente: ‘O que se pode fazer agora? Devolva minha vida! Nunca respirarei o mesmo ar que você respira! Covarde! Covarde!’ Eram essas algumas de suas frases, que terminaram num grito de homem, terrível e angustioso, seguido do estrépito de uma queda e do grito cortante da mulher. Convencido de que ocorrera uma tragédia, o cocheiro abalou-se para a porta e tentou forçá-la, enquanto continuavam a vir gritos de dentro. Entretanto, não conseguiu entrar, e as criadas estavam tão aturdidas com o susto que em nada podiam ajudar. Veio-lhe, no entanto, um pensamento súbito, correu pela porta do hall e rodeou o relvado para onde davam as grandes janelas francesas. Um lado da janela estava aberto, o que lhe pareceu natural na época do verão, e ele entrou sem dificuldade na sala. Sua patroa cessara de gritar e estava estendida, sem sentidos, num canapé. Entrementes, com os pés de viés sobre o lado de uma poltrona e a cabeça no chão perto do canto da lareira, jazia o infortunado soldado, bem morto, numa poça de sangue.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Como é natural, a primeira idéia do cocheiro, ao descobrir que não podia fazer nada pelo amo, foi abrir a porta. Mas aqui uma dificuldade inesperada e singular se apresentou. A chave não estava do lado de dentro da porta, nem pôde encontrá-la em parte alguma da sala. Saiu outra vez, então, pela janela; obtendo o concurso de um policial e de um médico, voltou. A senhora, contra quem naturalmente recai a mais forte suspeita, foi transportada para seu quarto, ainda em estado de inconsciência. O corpo do coronel foi colocado no sofá, e fe2-se um exame cuidadoso do cenário da tragédia.

“O ferimento do pobre veterano era um corte profundo com cerca de cinco centímetros de comprimento na parte posterior da cabeça, causado por violenta pancada de uma arma não-cortante. Não era difícil adivinhar qual teria sido essa ferramenta. No soalho, perto do corpo, estava um estranho bastão, de madeira dura, com um cabo de osso. O coronel possuía uma variada coleção de armas trazidas de diferentes países onde estivera a serviço, e a polícia calcula que aquela bengala fazia parte de seus troféus. Os criados, porém, negaram tê-la visto antes, mas entre as numerosas curiosidades da casa é possível que pudesse passar despercebida. Nada mais de importância foi encontrado na sala pela polícia, mas resta o fato inexplicável de que, nem em posse da Sra. Barclay, nem no corpo da vítima, nem em qualquer outra parte da sala, se encontrou a chave que faltava. A porta foi aberta pelo ferreiro de Aldershot.

“Era este o estado de coisas, Watson, quando na manhã de terça-feira, a pedido do major Murphy, desci a Aldershot para auxiliar nos trabalhos da polícia. Creio que reconhecerá
que o problema era interessante, mas minhas observações logo me fizeram verificar que era, na verdade, muito mais extraordinário do que parecera à primeira vista.

“Antes de examinar a sala interroguei os criados, mas só consegui extrair os fatos que já conhecia. Outro pormenor de interesse foi lembrado por Jane Stewart, a caseira. Você deve recordar-se de que, ao ouvir o clamor da discussão, ela desceu e voltou com as outras criadas. Ela disse que, na primeira ocasião, enquanto estava só, as vozes do patrão e da patroa eram tão baixas que não podia ouvir coisa alguma, e julgou, mais pelo tom do que pelas palavras, que estivessem discutindo. Entretanto, depois de eu insistir, lembrou-se de ter ouvido a palavra ‘David’ pronunciada duas vezes pela senhora. O detalhe é de máxima importância para nos conduzir ao motivo da discussão repentina. O nome do coronel, como se lembra, era James.

“Uma coisa causou a mais profunda impressão, tanto nos criados como na polícia. Foi a contorção do rosto do coronel. Apresentava, de acordo com a narrativa deles, a expressão mais terrível de medo e horror que o semblante humano pode assumir. À vista dele, mais de uma pessoa desfaleceu, tão horrível era o efeito. Estava completamente fora de dúvida que ele previra seu destino e isso lhe causara o mais extremo horror. Certamente, isso se adapta bem à teoria da polícia, de que o coronel poderia ter visto sua esposa preparando-se para assassiná-lo. O fato de o ferimento ser na parte posterior da cabeça não é uma objeção absoluta contra essa hipótese, pois o coronel podia ter se virado para evitar o golpe. Nada se pôde arrancar da própria senhora, que ficou temporariamente insana com um agudo ataque de encefalite.

“Pela polícia fiquei sabendo que a Srta. Morrison, a qual, como se lembra, saíra naquela noite com a Sra. Barclay, negou ter qualquer conhecimento do que motivara o mau humor com que sua companheira voltara para casa.

“Depois de resumir esses fatos, Watson, fumei diversas cachimbadas, tentando separar os elementos essenciais dos incidentais. Não podia haver dúvida de que o ponto mais importante e sugestivo do caso era o desaparecimento singular da chave da porta. A mais rigorosa busca para descobri-la na sala não deu resultado. Portanto, alguém deve tê-la tirado de lá. Mas nem o coronel nem sua esposa poderiam tê-lo feito. Isso era perfeitamente claro. Nesse caso, devia ter entrado uma terceira pessoa na sala. E essa terceira pessoa só podia tê-lo feito pela janela. Parecia-me que um exame cuidadoso da sala e do jardim poderia revelar vestígios do misterioso indivíduo. Você já conhece meus métodos, Watson. Não houve nenhum que eu não aplicasse ao inquérito. Terminei por descobrir vestígios, mas muito diferentes daqueles que eu esperava. Na sala estivera um homem que tinha atravessado o relvado, vindo da estrada. Pude obter cinco impressões muito nítidas das marcas de seus pés — uma na própria estrada, no lugar onde pulou o muro baixo, duas no jardim e duas muito apagadas no soalho manchado, perto da janela por onde ele entrou. Aparentemente, saíra correndo pelo jardim, porque as marcas dos dedos eram mais profundas do que as do calcanhar. Mas não foi o homem que me surpreendeu. Foi seu companheiro.”

— Seu companheiro!

Holmes tirou do bolso uma grande folha de papel de seda e desdobrou-a com cuidado em cima do joelho.

— O que você deduziria disso? — perguntou.

O papel estava coberto pelas marcas de pés de um animalzinho. Tinha cinco rastros bem marcados, indicação de unhas compridas, e a marca de cada pé tinha quase o tamanho de uma colher de sobremesa.

— Parecem de cão — respondi.

— Já ouviu falar de cães subindo pelas persianas? Encontrei provas inconfundíveis de que essa criatura o fez.

— Um macaco, então?

— Mas não são as pegadas de um macaco.

— O que poderá ser, então?

— Nem cão, nem gato, nem macaco, nem qualquer animal com que estejamos familiarizados. Tentei descobrir pelas medidas. Aqui estão quatro impressões do local onde o animal ficou imóvel. Pode-se ver que não há menos de quarenta centímetros da pata dianteira à traseira. Acrescente a isso o comprimento do pescoço e da cabeça, e você terá um animal não muito menor que sessenta centímetros de comprimento — provavelmente mais, se tiver rabo. Mas observe agora esta outra medida. O animal estava em movimento, e temos o comprimento de suas passadas. Em cada caso, é apenas de sete centímetros e meio. Tem-se assim a indicação de um corpo comprido com pernas muito curtas. Não fez a fineza de nos presentear com alguns pêlos. Mas sua forma geral deve ser a que indiquei, consegue subir pelas persianas e é carnívoro.

— Como sabe?

— Porque, com efeito, subiu à persiana. Havia uma gaiola com um canário pendurada à janela; ora, agarrar o pássaro parece ter sido seu objetivo.

— Então que animal era?

— Ah! Se eu lhe pudesse dar um nome, podia ter ido muito longe na solução do caso. Em resumo, era uma criatura da raça da doninha ou do arminho… todavia, é maior que qualquer desses.

— Mas o que teria a ver com o crime?

— Isto também está obscuro. Mas descobrimos bastantes coisas, como vê. Sabemos que um homem esteve parado na estrada, observando a discussão entre os Barclays; as cortinas estavam abertas, e a sala, iluminada. Sabemos também que ele correu pelo relvado e entrou na sala, acompanhado por um animal estranho. E atacou o coronel ou, o que é igualmente possível, o coronel, à vista dele, sobressaltou-se e caiu, partindo a cabeça numa quina da lareira. Finalmente, temos o fato curioso de o intruso levar a chave, quando fugiu.

— Suas descobertas parecem ter tornado o assunto mais obscuro do que a princípio — disse eu.

— Isso mesmo. Indubitavelmente, mostraram que a questão é muito mais profunda do que de início se supôs. Analisei tudo e cheguei à conclusão de que tinha de investigar o caso por outro prisma. Mas na realidade, Watson, estou mantendo-o acordado e poderia dizer-lhe tudo isso amanhã em nossa viagem para Aldershot.

— Muito obrigado; foi longe demais para parar.

— Estamos perfeitamente certos de que quando a sra. Barclay saiu de casa, às dezenove e trinta, estava em paz com o esposo. Ela nunca foi, como disse, ostensivamente afeiçoada, mas o cocheiro ouviu-a conversar com o coronel de modo amigável. Ora, é igualmente certo que, imediatamente depois de sua chegada, foi para a sala, onde era menos provável encontrar o marido, pediu chá, como faz uma mulher que está nervosa, e finalmente, com a entrada do marido, irrompeu em recriminações violentas. Portanto, ocorrera qualquer coisa entre as dezenove e trinta e as vinte e uma horas que alterou por completo seus sentimentos para com ele. Porém, a Srta. Morrison estivera com ela durante aquela hora e meia. É absolutamente certo, portanto, que, a despeito de sua negativa, devia saber alguma coisa do assunto.

“Minha primeira hipótese foi que teria havido relações entre essa jovem e o velho soldado, e esta as teria confessado à esposa. Isso explicaria a reação colérica desta, e também a negativa da jovem a respeito de tudo o que ocorrera. Nem seria inteiramente incompatível com a maioria das palavras ouvidas. Mas havia aquela referência a David, e havia a reconhecida afeição do coronel pela mulher a pesar contra ela, para não falar na intrusão dramática desse outro homem que podia, por certo, ser inteiramente alheio ao que antes ocorrera. Não me era fácil imaginar os fatos. Em resumo, estava inclinado a pôr de lado a idéia de ter havido alguma coisa entre o coronel e a Srta. Morrison. Porém, estava mais que nunca convencido de que a jovem possuía o segredo que levara a Sra. Barclay a odiar seu marido. Resolvi, portanto, chamar a Srta. Morrison, explicar-lhe que estava perfeitamente certo de que ela conhecia os fatos, e assegurar-lhe que sua amiga, a Sra. Barclay, podia vir a encontrar-se no banco dos réus sob uma acusação capital, se o assunto não se esclarecesse.

“A Srta. Morrison é uma pequena, etérea migalha de gente, de olhos tímidos e cabelos louros, mas achei que não lhe faltavam, de modo nenhum, perspicácia e bom senso. Pensou durante algum tempo depois do que eu disse, e então, voltando-se para mim com um ar decidido, rompeu num notável depoimento, que resumirei para você.

“— Prometi à minha amiga nada revelar do assunto, e promessas são promessas — disse ela. — Mas, se puder auxiliá-la, quando tão séria acusação se faz contra ela, e quando sua própria boca, pobre querida, está fechada pela doença, penso que estarei livre de minha promessa. Eu lhe direi exatamente o que aconteceu na noite da segunda-feira.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Voltávamos da capela Watt Street, às quinze para as nove, aproximadamente. Tínhamos de passar pela Hudson Street, que é uma viela muito deserta. Tem apenas um candeeiro do lado esquerdo e, quando nos aproximamos dele, vi um homem que vinha em nossa direção, com as costas muito curvadas e qualquer coisa que parecia uma caixa pendurada ao ombro. Parecia deformado, porque mantinha a cabeça baixa, e andava com os joelhos dobrados. Passávamos por ele quando ergueu o rosto para nós, no círculo de luz projetado pelo candeeiro. Ao fazê-lo, parou e gritou com uma voz medonha: — Meu Deus, é Nancy! A sra. Barciay ficou branca como a morte, e teria caído se não fosse amparada por aquela criatura de aspecto pavoroso. Eu ia chamar a polícia, mas ela, para minha surpresa, falou muito amavelmente para o sujeito:

“— Pensei que você estivesse morto durante esses trinta anos, Henry — disse ela, numa voz vacilante.

“— Assim é — disse ele, e era terrível o timbre de voz em que o dizia. Tinha um rosto muito escuro, pavoroso, e um brilho nos olhos que me volta em sonhos. Seus cabelos e sua barba começavam a ficar grisalhos. A face era toda enrugada e cheia de pregas, como uma massa emurchecida.

“— Pode seguir sozinha alguns passos, querida — disse a Sra. Barclay. — Quero ter uma palavra com este homem. Não há nada a recear. — Tentou falar com naturalidade, mas continuava mortalmente pálida e mal podia falar, devido ao tremor de seus lábios.

“Fiz como me pediu, e eles caminharam juntos por alguns minutos. Então, ela voltou com os olhos em brasa. E vi o inválido destroço de pé, junto do candeeiro, com o punho erguido, como se estivesse louco de raiva. Ela não disse mais nada até chegar à porta, e então tomou-me pela mão e pediu-me para não dizer nada a ninguém sobre o que acontecera. — Ele é uma velha amizade que desceu na escala social — disse ela. Quando lhe prometi que nada diria, beijou-me, e desde então nunca mais a vi. Eu agora disse toda a verdade, e se a ocultei da polícia foi porque não avaliara ainda o perigo a que minha querida amiga se expunha. Sei que só lhe trará vantagem que tudo seja conhecido.’

“Eis seu relato, Watson, que foi para mim, como deve imaginar, como uma luz numa noite escura. Tudo o que antes estava desconexo começou a assumir seu verdadeiro lugar, e eu tinha um pressentimento sombrio de toda a seqüência dos acontecimentos. Como é natural, minha diligência seguinte foi descobrir o homem que produzira tão extraordinária impressão na Sra. Barciay. Se ele estivesse ainda em Aldershot, não seria assim tão difícil. Não há lá número muito grande de civis, e é evidente que um homem deformado teria atraído atenção. Perdi um dia averiguando, e à noite, esta mesma noite, Watson, descobri-o. O nome do homem é Henry Wood, e mora nos alojamentos da mesma rua onde as mulheres o encontraram. Está apenas há cinco dias na região. Quanto a informações, tive uma conversa muito interessante com sua hospedeira. O homem é mágico e ator por ofício, e anda pelas cantinas, ao cair da noite, dando pequenos espetáculos em cada uma delas. Leva com ele certo animal numa caixa, acerca do qual a hospedeira parecia consideravelmente perturbada, porque nunca vira bicho semelhante. Ele o emprega em alguns de seus truques, segundo o que ela afirma. Foi tudo o que me pôde dizer, e também acrescentou que era um milagre o homem suportar sua deformidade, e que às vezes falava numa língua estranha; nas últimas duas noites, ela o ouvira gemer e chorar na cama. Quanto a dinheiro, parece se arranjar, mas como depósito havia lhe dado o que a ela parecia um florim falso. Ela o mostrou a mim, Watson, e era uma rupia indiana.

“E agora, meu caro, já sabe tudo e sabe o que quero. É evidente que, depois que as senhoras partiram, esse homem as seguiu à distância, presenciou a discussão entre o marido e a mulher pela janela, precipitou-se para dentro, e o animal que levava na caixa se soltou. Tudo isso é ponto pacífico. Mas ele é a única pessoa no mundo que pode dizer exatamente o que se passou naquela pequena sala.”

— E você pretende perguntar-lhe?

— Claro… mas na presença de uma testemunha.

— E eu serei a testemunha?

— Se você quiser ter a bondade. Se ele esclarecer o assunto, muito bem. Se se recusar, não há outra alternativa senão solicitar uma ordem de prisão.

— Mas como sabe que ele ainda estará lá quando voltarmos?

— Pode estar certo de que tomei certas precauções. Um de meus rapazes da Baker Street o está vigiando, e o seguirá como um cão, vá para onde for. Nós o encontraremos amanhã na Hudson Street, Watson; e agora o criminoso seria eu, se o conservasse por mais alguns minutos fora da cama.

Era meio-dia quando nos encontramos na casa onde ocorrera a tragédia e, sob a liderança do meu companheiro, seguimos imediatamente para a Hudson Street. A despeito de sua capacidade para ocultar as emoções, pude facilmente perceber que Holmes estava numa excitação reprimida, enquanto eu próprio sentia o nervosismo de um prazer meio cômico, meio intelectual, que invariavelmente experimentava quando me associava às suas investigações.

— Esta é a rua — disse ele quando entramos numa viela curta, ladeada por casas de tijolos simples, de dois andares. — Ah, aí vem Simpson para nos informar.

— Ele está em casa, com certeza, Sr. Holmes — bradou um árabe de pequena estatura, que veio correndo ao nosso encontro.

— Muito bem, Simpson! — disse Holmes, batendo-lhe de leve na cabeça. — Venha, Watson, é esta a casa. — E mandou seu cartão com um recado, dizendo que viera para tratar de um negócio importante; um momento depois, estávamos em frente do homem que tínhamos vindo ver. A despeito do calor, ele estava enrolado perto do fogo, e o quartinho parecia um forno. O homem estava encolhido em posição pouco natural na cadeira, de maneira que me deu uma indescritível impressão de deformidade. Mas o rosto que voltou para nós, embora trigueiro e tisnado, devia ter sido, noutra época, notável pela beleza. Agora, olhava para nós com olhos amarelos de bílis, e, sem falar ou levantar-se, indicou duas cadeiras.

— Sr. Henry Wood, recém-chegado da Índia, creio eu? — disse Holmes com afabilidade. — Venho por causa da morte do coronel Barclay.

— O que acha que eu sei a esse respeito?

— É o que precisamos verificar. Deve saber, suponho, que, a menos que a coisa seja esclarecida, a Sra. Barclay, sua amiga, será com toda a probabilidade julgada por homicídio. O homem levou um susto violento.

— Não sei quem é o senhor — exclamou ele —, nem como veio a saber o que sabe. Mas é capaz de jurar que é verdade o que está me dizendo?

— Ora essa, estão apenas à espera de que ela recupere os sentidos para prendê-la.

— Meu Deus! O senhor é da polícia?

— Não.

— Qual é então sua profissão?

— A tarefa de todo homem é zelar pela justiça.

— Pode crer na minha palavra de que ela está inocente.

— Então o senhor é culpado?

— Não, eu, não.

— Quem matou, então, o coronel Barclay?

— Foi a providência que o matou. Mas saiba que, se lhe tivesse rebentado os miolos, como desejava, ele não teria tido mais do que o que merecia. Se sua própria consciência culpada não o matasse, é muito provável que seu sangue escorresse sobre minha alma. Quer que lhe conte minha história? Não vejo motivo para não contá-la, porque não tenho por que me envergonhar dela.

“Foi assim. O senhor vê-me agora com costas de camelo e com todas as costelas retorcidas. Houve tempo, porém, em que o cabo Henry Wood era o homem mais belo do 117.° Regimento de Infantaria. Estávamos na Índia, acampados num lugar a que chamaremos Bhurtee. Barclay, que morreu outro dia, era sargento da mesma companhia que eu. E a beldade do regimento, sim, a mais linda moça que jamais existiu, era Nancy Devoy, filha do sargento porta-bandeira. Havia dois homens que a amavam, e apenas um que ela amava. Olhando para esta pobre criatura à sua frente o senhor certamente rirá ao ouvir-me dizer que era por causa de minha bela aparência que ela me amava.

“Ora, embora ela me amasse, seu pai estava resolvido a casá-la com Barclay. Eu era um rapaz estouvado e temerário, e ele recebera educação e já estava destinado a uma bela carreira. Mas a jovem se mantinha fiel a mim e parecia que eu viria a possuí-la, quando rebentou o Mutiny, e todo o país ficou alvoroçado.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Ficamos cercados em Bhurtee, a sede de nosso regimento, com a metade de uma bateria de artilharia, uma companhia de siques, e uma porção de civis e mulheres. Em torno de nós havia dez mil rebeldes, e estavam tão ativos como uma trela de cães terriers ao redor de uma gaiola de ratos. Cerca de uma semana depois, a água acabou-se, e restava saber se poderíamos comunicar-nos com a coluna do general Neill, que se dirigia para a região. Era nossa única possibilidade, porque não podíamos lutar levando atrás mulheres e crianças. De modo que me apresentei como voluntário para ir avisar o general Neill do perigo que corríamos. Meu oficial aceitou, e falei com o sargento Barclay, considerado o melhor conhecedor do terreno, que traçou a rota pela qual eu podia atravessar as linhas rebeldes. Às dez horas da mesma noite, saí para cumprir minha missão. Havia dez mil vidas a salvar, mas era a de uma só pessoa que me ocupava o pensamento quando saltei o muro naquela noite.

“Meu caminho seguia o leito de um rio seco, que, assim esperávamos, me ocultaria das sentinelas inimigas. Quando completei de rastos a curva desse rio, dei de frente com seis delas, agachadas na escuridão, esperando por mim. Logo fiquei atordoado com uma pancada, e amarraram meus pés e minhas mãos. Mas o golpe verdadeiro foi no coração, e não na cabeça. Pois, quando recuperei os sentidos e já estava em estado de entender as palavras das sentinelas, ouvi o suficiente para me certificar de que meu camarada, o mesmo homem que traçara o itinerário que eu devia seguir, me traíra por intermédio de um servo nativo, entregando-me nas mãos do inimigo.

“Não há necessidade de me demorar nessa parte. Os senhores agora sabem do que James Barclay era capaz. Bhurtee foi libertada no dia seguinte por Neill, mas os rebeldes levaram-me com eles em sua retirada, e só depois de muitos anos passados é que eu vi de novo um rosto branco. Fui torturado e, ao tentar fugir, fui capturado e torturado outra vez. Os senhores podem ver a que estado fiquei reduzido. Alguns que fugiram para o Nepal levaram-me com eles, e então fui transferido para Darjeeling. Os montanheses de lá mataram os rebeldes que me levaram, e tornei-me escravo deles por algum tempo, até que escapei. Mas, em vez de ir para o sul, tive de ir para o norte até me encontrar no Afeganistão. Ali andei errando cerca de um ano, e por fim voltei a Punjab, onde vivi a maior parte do tempo entre os nativos e passei a ganhar a vida com apresentações de mágicas que aprendera. De que valia a um náufrago aleijado voltar à Inglaterra e fazer-se reconhecer pêlos velhos camaradas? Nem mesmo meu desejo de vingança me levaria a fazê-lo. Preferia que Nancy e os meus antigos amigos pensassem em Henry Wood como alguém que morreu com as costas direitas, e não terem diante de si um homem arrastando uma bengala como um chimpanzé. Nunca duvidaram de que eu estava morto, e eu queria que nunca duvidassem. Ouvi dizer que Barclay se casara com Nancy e subia rapidamente no regimento, mas nem isso me fez falar.

“Mas quando se envelhece, tem-se saudades da pátria. Levei anos a sonhar com os brilhantes campos verdes e com as sebes da Inglaterra. Havia economizado o bastante para fazer a viagem, e então vim para cá, onde estão os soldados, porque conheço seus costumes e sei diverti-los, e assim posso ganhar o bastante para me manter.”

— Sua narrativa é muitíssimo interessante — disse Sherlock Holmes. — Já ouvi falar em seu encontro com a Sra. Barclay e do mútuo reconhecimento. O senhor então, segundo fui informado, seguiu-a até sua casa e assistiu pela janela a uma discussão entre os dois, na qual ela lhe lançou em rosto sua conduta. Seus sentimentos venceram-no, o senhor correu através do jardim e precipitou-se para dentro.

— É isso mesmo, senhor. Mas, ao ver-me, ele me lançou um olhar que eu dantes nunca vira em homem algum, e caiu com a cabeça sobre a lareira da sala. Já estava morto antes de cair. Li a morte em seu rosto, tão claramente como posso ler esse texto à luz do fogo. Minha simples presença foi como se uma bala lhe atravessasse o coração culpado.

— E então?

— Então, Nancy desmaiou e eu lhe tirei da mão a chave, com a intenção de abrir a porta e ir em busca de auxílio. Quando o fazia, pareceu-me melhor deixá-la sozinha e fugir, porque a coisa podia ficar preta para mim e meu segredo se desvendaria se eu fosse preso. Com a pressa, meti a chave no bolso e deixei cair a bengala enquanto procurava Teddy, que galgara uma persiana. Quando o meti na caixa, de onde ele se esgueirara, fugi, correndo tão depressa quanto me era possível.

— Quem é Teddy? — perguntou Holmes.

O homem se curvou e puxou para fora uma espécie de coelheira que estava no canto. Num instante, saiu de lá uma bonita criatura castanho-avermelhada, frágil e flexível, com as pernas de arminho, nariz fino e comprido, e um par dos olhos mais delicados que jamais vi na cabeça de um animal.

— É um mangusto! — exclamei.

— Há quem lhe chame assim, e outros chamam-lhe icnêumon — disse o homem. — Caça-cobras é como eu lhe chamo, e Teddy é de uma rapidez admirável para apanhar serpentes. Tenho aqui uma sem as presas, e Teddy a caça toda noite para divertir o pessoal da cantina. Mais alguma coisa, senhor?

— Bem, talvez o procuremos novamente se a Sra. Barclay ficar em dificuldades.

— Nesse caso, eu sem dúvida me apresentarei.

— Não havendo mais nada, não há utilidade em se levantar tal escândalo contra um morto, embora tenha agido maldosamente, como agiu. O senhor tem pelo menos a satisfação de saber que durante trinta anos de sua vida a consciência de Barclay o atormentou. Ah, lá vai o major Murphy do outro lado da rua. Adeus, Wood; quero saber se aconteceu alguma coisa de ontem para cá.

Tivemos tempo de alcançar o major antes de chegar à esquina.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— Ah, Holmes — disse ele. — Creio que você já soube que todo esse rebuliço deu em nada.

— O que houve?

— O inquérito terminou agora mesmo. A observação médica provou que a morte foi devido a uma apoplexia. Como vê, o caso afinal foi muito simples.

— Oh, absolutamente superficial — disse Holmes, sorrindo. — Venha, Watson, já não me parece que sejamos necessários em Aldershot.

— Há uma coisa — disse eu, quando descíamos para a estação: — Se o nome do marido era James, e o do outro, Henry, por que a palavra David?

— Só essa palavra, caro Watson, teria me desvendado toda a história, caso eu fosse o raciocinador ideal que você está ávido por descrever. Era evidentemente um termo de censura.

— De censura?

— Exatamente. Ora, David, como deve saber, tomava às vezes atitudes semelhantes às do sargento Barclay. Lembra-se do pequeno incidente de Urias e Betsabé? Meu conhecimento bíblico está um pouco enferrujado, receio, mas pode encontrar a história em Samuel, I ou II.

[1] Estação de trem, em Londres. (N. do T.)
[2] Revolta dos indianos contra os ingleses. (N. do T.)

1894
Memórias de Sherlock Holmes

1. Estrela de Prata § 2. A caixa de papelão
3. A face amarela § 4. O escriturário da corretagem
5. A tragédia do “Gloria Scott” § 6. O ritual Musgrave
7. O enigma de Reigate § 8. O corcunda
9. O paciente internado § 10. O intérprete grego
11. O tratado naval § 12. O problema final

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock