O vale do terror – Primeira parte, Capítulo 6

Arthur Conan DoyleO vale do terror

Primeira parte: A tragédia de Birlstone

Título original: The Valley of Fear
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1914-15.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Valley of Fear publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Lígia Junqueiro.

Capítulo sexto: Uma réstia de luz

Os três policiais tinham muito que discutir sobre diversos pormenores do caso, por isso regressei sozinho ao nosso modesto quarto na estalagem da vila. Antes disso, porém, resolvi dar um pequeno passeio pelo curioso jardim arcaico que flanqueava a casa. Circundavam-no fileiras de teixos velhíssimos, podados de maneira esquisita. No belo interior, estendia-se um relvado com um antigo relógio solar no centro; toda a atmosfera do local era tão plácida e repousante que exercia sobre os meus nervos abalados o efeito de um bálsamo. Nesse ambiente de paz profunda, era possível esquecer, ou recordar somente como pesadelo inverossímil, o gabinete sombrio em cujo pavimento jazia uma forma humana coberta de sangue. E, contudo, enquanto eu vagueava por aquele doce jardim, procurando acalmar o espírito no bafejo dos seus tépidos aromas, ocorreu um estranho incidente que me fez recordar de chofre a tragédia e me deixou uma sinistra impressão.

Já disse que o jardim era circundado por fileiras de teixos. Na extremidade mais afastada da casa, eles formavam uma sebe contínua. Do lado oposto dessa sebe, oculto aos olhos de quem se avizinhasse da habitação, havia um banco de pedra. Ao aproximar-me desse recanto, notei um ruído de vozes — uma voz masculina, que fazia alguma observação em tom grave, em contraste com um riso feminino, breve e cristalino. Um momento depois, quando eu me encontrava junto à sebe, meus olhos pousaram na sra. Dougals e no sr. Barker, antes que ambos notassem a minha presença. O aspecto dela desconcertou-me. Na sala de jantar, mostrara-se séria e discreta; agora, porém, toda a simulação de tristeza se dissipara. Seus olhos brilhavam com a alegria de viver e seu rosto ainda vibrava com o prazer que lhe anisaram as observações do companheiro. Este estava sentado, inclinado para a frente, com os dedos das mãos entrelaçados e os cotovelos apoiados nos joelhos, e um sorriso no rosto audaz e belo. Um breve instante depois — mas demasiado tarde —, recobraram suas máscaras solenes, ao notarem a minha presença. Trocaram entre si algumas palavras rápidas, após o que, Barker se levantou e veio ao meu encontro.

— Desculpe-me — disse —, é ao dr. Watson que tenho a honra de falar?

Inclinei a cabeça com uma frieza que revelava claramente a impressão desagradável suscitada no meu espírito pelo seu comportamento.

— Imaginamos que fosse justamente o senhor, em vista da sua tão conhecida amizade com o sr. Holmes. Poderia vir falar um momento com a sra. Douglas?

Segui-o, de rosto impenetrável. Via ainda muito nitidamente, no pensamento, aquele corpo golpeado estendido no soalho, e eis que, poucas horas depois do trágico acontecimento, a mulher do assassinado e o seu amigo mais íntimo estavam rindo, juntos, atrás de uma moita, no jardim que fora dele. Cumprimentei a senhora muito reservadamente. Compartilhara a sua dor na sala de jantar; agora, porém, respondia-lhe ao olhar suplicante com olhos implacáveis.

— Receio que o senhor me julgue insensível e sem coração — disse ela.

— Isso não me diz respeito — retorqui-lhe, com um encolher de ombros.

— Talvez um dia o senhor me faça justiça. Se puder compreender…

— Não vejo por que o dr. Watson deva compreender! — interrompeu prontamente Barker. — Como ele próprio o disse, isso não lhe diz respeito.

— Precisamente — concordei —, e por isso peço-lhes licença para prosseguir o meu passeio.

— Um momento, dr. Watson — gritou a sra. Douglas, em tom de súplica. — Há uma pergunta à qual o senhor pode responder com mais autoridade que qualquer outra pessoa no mundo, e isso para mim poderá ter uma enorme importância. Conhece o sr. Holmes e as suas relações com a polícia melhor do que ninguém. Se ele fosse informado confidencialmente de alguma coisa, julga que teria absoluta necessidade de transmitir essa informação aos agentes encarregados da investigação oficial?

— Justamente — ajuntou Barker, ansioso. — Ele trabalha por conta própria ou opera unicamente por encargo das autoridades oficiais?

— Francamente, não me julgo no direito de poder me pronunciar sobre esse ponto.

— Por favor… suplico-lhe que nos ajude, dr. Watson. Garanto-lhe que o senhor nos favorecerá… auxiliando-me grandemente se nos esclarecer nessa questão.

Havia na voz da mulher tal sinceridade que, por um instante, esqueci completamente a sua leviandade e senti-me propenso unicamente a satisfazer-lhe o desejo.

— Holmes é um investigador independente — expliquei. — Não tem de prestar contas a ninguém e age de acordo com o seu julgamento pessoal. Por outro lado, não pode deixar de ser leal para com os agentes que com ele operam, e certamente não lhes ocultará nada que possa ajudá-los a entregar um criminoso à justiça. Nada mais posso dizer além disso, e aconselho-os a dirigirem-se ao próprio Holmes se desejam esclarecimentos mais amplos.

Em seguida, despedi-me, tirando o chapéu, e continuei o meu caminho, deixando-os sentados atrás da sebe protetora. Ao dar a volta à extremidade desta, voltei a cabeça e vi-os ainda conversando animadamente, e, como seus olhares me acompanhavam, era evidente que debatiam a entrevista que acabavam de ter comigo.

— Não quero ouvir-lhes as confidências — disse-me Holmes, quando lhe narrei o ocorrido. Meu amigo passara a tarde inteira na mansão, conferenciando com seus dois colegas, e regressara à estalagem por volta das cinco horas com um apetite devorador, resolvido a liquidar a abundante mesa de chá que eu lhe mandara preparar.

— Nada de confidências, Watson, porque se tornam demasiado embaraçosas se delas resulta uma prisão por crime premeditado.

— Acredita que a situação chegue a tal ponto?

Holmes encontrava-se num dos seus estados de espírito mais alegres e cordiais.

— Meu caro Watson, logo que tiver terminado este quarto ovo, estarei em condições de pô-lo a par de toda a situação. Não digo que tenhamos penetrado o problema até o fundo… longe disso, mas quando tivermos descoberto o outro haltere…

— O outro haltere?!

— Santo Deus, Watson! É possível que ainda não tenha compreendido que todo o caso gira em torno do haltere desaparecido? Ora, ora, não precisa ficar envergonhado, pois aqui entre nós, não creio que nem o inspetor Mac nem aquele outro excelente funcionário local tenham atinado com a extraordinária importância desse pormenor. Um único haltere, Watson! Pense um pouco se poderá existir um atleta que se sirva apenas de um. Imagine o desenvolvimento unilateral, o risco iminente de deformação da espinha dorsal. É absurdo, Watson, não lhe parece?

Mastigando uma torrada e com os olhos cintilantes de malícia, divertia-se a observar a minha confusão mental. Era suficiente reparar no seu ótimo apetite para ter uma garantia de êxito, pois eu me recordava perfeitamente de dias e noites nos quais ele nem pensava em se alimentar, quando se mantinha confuso perante um problema insolúvel, e seu rosto, já de si tão magro e descarnado, ainda mais se afinava no ascetismo de uma completa concentração mental. Acendeu, por fim, o cachimbo e, sentado num canto da lareira da velha hospedaria, pôs-se a falar lenta e desordenadamente sobre o caso, mais como quem pensa em voz alta do que como quem exprime um juízo já refletido e maduro.

— Uma mentira, Watson, um embuste imenso, total, formidável… eis o que se nos apresenta de início. Eis o nosso ponto de partida. Toda a história contada por Barker é uma mentira. Mas essa história é corroborada pela sra. Douglas; portanto, ela também está mentindo. Ambos mentem, e de comum acordo. Aqui estamos, pois, em face de um problema nítido: por que mentem, e qual será a verdade que ambos procuram tão desesperadamente ocultar? Vejamos, Watson, se conseguimos, nós dois, desmascarar essa mentira e reconstituir a verdade.

— Mas…

— Como sei que eles estão mentindo? Simplesmente porque se trata de uma invenção desastrada, que não pode ser verdadeira. Reflita! De acordo com a versão que nos foi apresentada, o assassino teve menos de um minuto, após perpetrar o delito, para tirar a aliança, que se encontrava abaixo de outro anel no dedo do morto, e repor esse outro anel… coisa que naturalmente jamais fez, e para colocar aquele misterioso cartão ao lado da sua vítima. Afirmo que isso é evidentemente impossível. Você pode objetar… todavia, respeito muito o seu bom senso, Watson, para julgar que possa fazê-lo… que a aliança tivesse sido tirada antes de o homem ter sido morto. O fato de a vela ter estado acesa durante muito pouco tempo mostra que não houve uma entrevista prolongada. Era Douglas, pelo que sabemos do seu caráter intrépido, homem que entregasse a própria aliança com tanta facilidade, ou melhor, podemos imaginar que de fato ele a tivesse entregado? Não, não, Watson, o assassino permaneceu junto do morto, com o lampião aceso, por um período certamente mais longo. Sobre esse ponto não tenho a menor dúvida. Entretanto, o tiro foi, aparentemente, a causa da morte. Devia, por conseguinte, ter sido disparado antes do que nos disseram. Não pode existir engano a respeito de um ponto como esse. Encontramo-nos, portanto, em presença de conivência deliberada por parte das duas pessoas que ouviram o disparo: Barker e a sra. Douglas. E agora, para coroar tudo isso, já que estou apto a demonstrar que a pegada de sangue no peitoril da janela foi deliberadamente ali deixada por Barker a fim de colocar a polícia numa pista falsa, você tem de admitir que os indícios fazem com que suspeitemos gravemente desse homem.

“Temos, em seguida, que nos perguntar a que horas o crime de fato ocorreu. Até as dez e meia, os criados moviam-se pela casa; logo, certamente não foi antes dessa hora. Às dez e quarenta e cinco, todos eles tinham se recolhido aos seus quartos, com exceção de Ames, que se encontrava na despensa. Fiz certas experiências depois que você nos deixou esta tarde e verifiquei que nenhum ruído feito por MacDonald no gabinete podia ser ouvido por mim na despensa, se todas as portas estivessem fechadas. Sucedeu o contrário, porém, em relação ao quarto da governanta. Não fica tão ao fundo do corredor, e dele se consegue perceber vagamente uma voz, desde que se fale em tom muito alto. O estampido de um tiro é até certo ponto abafado, quando a descarga é feita à queima-roupa, como sem dúvida o foi neste caso. Pode não ter sido muito forte, mas mesmo assim, dado o silêncio da noite, deve ter sido ouvido do quarto da sra. Allen. Esta é, como ela mesma o disse, um pouco surda; no entanto, declarou, no seu depoimento, ter escutado algo como o bater de uma porta, meia hora antes de ser dado o alarme. Meia hora antes do alarme significa dez e quarenta e cinco. Estou certo de que foi o disparo da arma de fogo o estrondo por ela ouvido, e de que foi esse o momento exato do delito. Se assim é, precisamos agora determinar o que o sr. Barker e a sra. Douglas, admitindo não terem sido eles os verdadeiros assassinos, estavam fazendo das dez e quarenta e cinco, ou seja, o instante em que o barulho da descarga os fez descer, até as onze e quinze, quando tocaram a campainha e chamaram os criados. Que faziam eles e por que não deram imediatamente o alarme? Esse é o problema que temos de resolver, e, quando o tivermos deslindado, teremos avançado bastante no caminho da solução final.”

— Pessoalmente, também estou convicto — disse eu — de que entre os dois deve existir um entendimento. Ela deve ser uma criatura desalmada para estar rindo assim, sei lá de que tolice, poucas horas após o assassinato do marido.

— Exatamente. Ela não dá a impressão de uma verdadeira esposa, mesmo quando descreve os fatos ocorridos. Não sou admirador incondicional do belo sexo, como você bem sabe, Watson, mas a minha experiência da vida ensinou-me que é rara a mulher que, com um mínimo de consideração pelo próprio marido, encontra consolação nas palavras de qualquer homem, a ponto de abandonar o cadáver do marido. Se algum dia eu me casar, Watson, espero ser capaz de inspirar à minha mulher tais sentimentos que não lhe permitam deixar-se levar docilmente por uma governanta, quando o meu cadáver jazer a poucos metros de distância. A pantomima foi muito mal ensaiada, pois mesmo o mais imbecil dos investigadores deveria sentir-se chocado com a total falta do habitual pranto feminino. Se não houvesse mais nada, bastaria essa lacuna para criar a suspeita de uma prévia conjura.

— Você então está convencido de que Barker e a sra. Douglas são culpados do homicídio?

— As suas perguntas, Watson, são de uma crueza impressionante! — exclamou Holmes, brandindo o cachimbo, em tom de gracejo, na minha direção. — Dão-me a impressão de projéteis desfechados contra mim. Se me perguntar se a sra. Douglas e Barker sabem a verdade acerca do delito e tentam escondê-la, posso, nesse caso, dar-lhe uma resposta positiva: estou certo disso. Sua conclusão mais cruel, todavia, não é tão clara. Reflitamos um instante nas dificuldades que se nos apresentam à formulação de tal hipótese.

“Suponhamos que esse par esteja unido pêlos laços de um amor culpável e que ambos hajam decidido desembaraçar-se do homem que lhes impedia a realização dos desígnios. É uma hipótese muito vaga, pois uma discreta indagação feita entre os criados e outras pessoas não logrou corroborá-la de modo algum. Pelo contrário, todas as testemunhas são concordes em afirmar que os Douglas constituíam um casal muito unido, dotado de mútua afeição.”

— Afirmo-lhe que isso não pode ser verdade — interrompi, recordando o lindo rosto sorridente no jardim.

— Bom, pelo menos eles davam essa impressão. Vamos supor, contudo, que eles formem um par habilíssimo, que tivessem conseguido iludir a todos nesse ponto e tramassem o assassinato do marido. Acontece que ele era um homem sobre cuja cabeça pairava um perigo…

— Mas a esse respeito só podemos nos basear na palavra deles.

Holmes parecia pensativo.

— Compreendo, Watson. Formulamos uma teoria segundo a qual tudo o que eles dizem desde o princípio é falso. De acordo com essa opinião, jamais existiu qualquer ameaça oculta, ou sociedade secreta, ou Vale do Terror, ou grão-mestre Mac-Qualquer-Coisa, ou o que a isso se assemelhe. Mas isso é uma generalização bastante ampla. Vejamos ao que ela nos conduz. Eles inventam toda essa história para explicar o delito. Depois, para comprovar essa versão, abandonam uma bicicleta no parque a fim de provar a existência de alguém que teria vindo de fora. A mancha de sangue no peitoril da janela reforça essa idéia; e serve para o mesmo fim o cartão deixado junto do morto, o qual bem pode ter sido preparado em casa. Tudo isso se enquadra na nossa hipótese, Watson. Agora, porém, chegamos àqueles fragmentos angulosos, inajustáveis, que não se adaptam a nenhum lugar. Por que, entre tantas armas, uma espingarda de cano curto, e além disso de marca americana? Como podiam estar tão seguros de que o barulho da descarga não faria com que alguém os surpreendesse em flagrante? Foi mero acaso, por exemplo, a sra. Allen não ter ido investigar o motivo pelo qual aquela porta bateu. Qual a razão que levou os dois culpados a fazerem tudo isso, Watson?

— Confesso não estar em condições de dar uma explicação.

— E outra coisa: se uma mulher e o próprio amante conspiram para o assassinato do marido, como ousariam patentear a sua culpa subtraindo a aliança do dedo deste último, após havê-lo assassinado? Acha isso provável, Watson?

— Não; não acho.

— E ainda mais: se lhe ocorresse a idéia de deixar uma bicicleta escondida do lado de fora, valeria a pena fazê-lo, quando o mais estúpido dos policiais compreenderia tratar-se de um grosseiro estratagema, em virtude de a bicicleta ser a primeira coisa de que o fugitivo necessitava para se pôr a salvo?

— Não consigo encontrar explicações para isso.

— Entretanto, é pouco provável que haja uma combinação de acontecimentos para o qual o engenho humano não possa encontrar explicação. Simplesmente como exercício mental, sem pretender que seja exata, deixe-me indicar uma teoria provável. Admito tratar-se de pura imaginação, mas bem sabemos quantas vezes á imaginação é a mãe da verdade!

“Imaginemos, portanto, que na vida desse Douglas existisse de fato um segredo culposo, verdadeiramente infamante. Isso induz ao seu assassinato por um suposto vingador… alguém estranho à casa. Esse vingador, por motivos para os quais, confesso, não consegui ainda achar significação, apoderou-se da aliança do morto. A idéia da vingança, presumivelmente, podia datar da época do primeiro matrimônio de Douglas, e a aliança poderia ter sido subtraída por qualquer causa com ele relacionada. Antes que o tal vingador se afastasse, Barker e a sra. Douglas entraram na sala. O criminoso devia tê-los convencido de que qualquer tentativa de prendê-lo apenas serviria para a divulgação de um escândalo odioso. Os dois, influenciados pelo temor, preferiram deixá-lo fugir. Provavelmente, com esse propósito, arriaram a ponte levadiça. O homem tratou de pôr-se em fuga e, por qualquer motivo, achou mais seguro fazê-lo a pé do que de bicicleta. Abandonou, por conseguinte, o veículo onde ninguém pudesse descobri-lo, até ele se encontrar em lugar seguro. Até aqui, estamos dentro dos limites das probabilidades, não lhe parece?”

— Sem dúvida, é possível — concordei, com certa reserva.

— Devemos nos lembrar, Watson, de que, seja como .for, estamos diante de um fato verdadeiramente extraordinário, mas, para continuar a nossa hipotética descrição do caso, o par… não necessariamente um par culpado, percebeu, após a partida do assassino, que se colocara numa posição que podia trazer dificuldades para ambos, pois, além de ser difícil provar que não tinham cometido o delito, tudo fazia crer serem dele coniventes. Assim, precipitadamente e de maneira algo atabalhoada, afrontaram a situação. Barker marcou o peitoril da janela com a impressão de seu chinelo sujo de sangue, a fim de fazer supor que o fugitivo escapara por ali. Evidentemente, foram eles as duas pessoas que ouviram o ruído do disparo e, desse modo, deram o alarme exatamente como deviam ter feito, apenas uma boa meia hora depois de verificado o acontecimento.

— E como se propõe a provar tudo isso?

— No caso de se tratar de um estranho, ele pode ser descoberto e capturado. Essa seria a mais eficaz de todas as provas, mas, não sendo assim… bom, os recursos da ciência estão longe de ter-se esgotado. Creio que me seria muito útil passar uma noite sozinho naquele gabinete.

— Uma noite, sozinho!

— Estou disposto a ir imediatamente para lá. Combinei tudo com o precioso Ames, que, diga-se de passagem, não tem absolutamente nenhuma simpatia por Barker. Pretendo sentar-me naquela sala e ver se a sua atmosfera pode me trazer inspiração. Sou crente fervoroso do genius loci [1]. Pode rir, caro Watson. Ri melhor quem ri por último. A propósito, trouxe aquele seu grande guarda-chuva, não é verdade?

— Tenho-o comigo.

— Pode emprestá-lo a mim?

— Certamente… mas é uma arma desprezível! Se houver perigo…

— Oh! Não tenho medo, meu caro Watson; nesse caso, pedirei o seu auxílio sem demora. Contudo, ficarei com o guarda-chuva. Agora, estou apenas à espera de que os nossos colegas voltem de Tunbridge Wells, onde se encontram à procura do possível proprietário da bicicleta.

Era quase noite quando o inspetor MacDonald e White Mason regressaram da sua expedição. Vinham exultantes, com notícias de grandes progressos nas nossas investigações.

— Caramba! Admito ter tido as minhas dúvidas quanto à existência de uma pessoa estranha neste caso — disse MacDonald —, mas agora estão completamente desvanecidas. Identificamos a bicicleta e temos uma descrição do nosso homem, o que é um grande passo à frente.

— Isso me parece ser o princípio do fim — começou Holmes; — e congratulo-me com ambos de todo o coração.

— Pois bem! Partimos do fato de o sr. Douglas parecer agitado desde o dia anterior, quando estivera em Tunbridge Wells. Foi, pois, em Tunbridge Wells que ele teve a sensação do perigo. Era evidente, portanto, que, se alguém tivesse vindo de bicicleta, não podia ser senão de Tunbridge Wells. Levamos a bicicleta conosco e a mostramos a diversos hoteleiros. Foi identificada pelo gerente do Eagle Commercial como pertencente a um certo sr. Hargrave, que tinha ocupado um quarto ali dois dias antes. Essa bicicleta e uma maleta de mão constituíam toda a sua bagagem. Registrara-se como procedente de Londres, sem dar, porém, o endereço. A maleta era de fabricação londrina e o seu conteúdo, de procedência britânica, mas o homem era, iniludivelmente, americano.

— Muito bem — disse Holmes alegremente —, vocês realizaram sem dúvida um ótimo trabalho, ao passo que eu me deixei ficar aqui articulando teorias com o meu amigo. Isso é uma lição de senso prático, caro Mac.

— É isso mesmo, sr. Holmes — anuiu o inspetor, satisfeito.

— Tal fato, porém, pode se enquadrar perfeitamente na sua hipótese — observei.

— Pode e não pode. Mas ouçamos o resto, Mãe. Não encontraram nada que pudesse estabelecer a identidade desse homem?

— Encontramos tão pouco que acreditamos que ele procurou eliminar todos os indícios que levassem à sua identificação. Não havia documentos ou cartas, nem marca nenhuma nas suas roupas. Encontramos também um mapa turístico da região. Deixou o hotel de bicicleta ontem, após a refeição matinal, e ninguém mais soube dele, até o momento em que iniciamos as indagações.

— É isso o que me deixa perplexo, sr. Holmes — observou White Mason. — Se esse sujeito não desejava criar publicidade em torno da sua pessoa, seria lógico pensar que tivesse voltado ao hotel e ali permanecesse como qualquer turista anônimo. No entanto, agindo como o fez, devia imaginar que o gerente do hotel o denunciaria à polícia e que seu desaparecimento seria associado ao crime.

— Era o que se poderia supor. Todavia, pelo menos até este momento, sua sensatez se justifica, pois ainda não foi preso. Mas ouçamos sua descrição… como é o seu tipo?

MacDonald consultou o caderno de anotações.

— Aqui estão os dados que pudemos obter. Parece-me que ninguém deu atenção especial à sua pessoa; não obstante, o porteiro, o recepcionista e. a criada de quarto são unânimes em afirmar que se trata de um homem alto, de cerca de um metro e oitenta, de mais ou menos cinqüenta anos de idade, cabelo e bigode grisalhos, nariz aquilino e fisionomia por todos descrita como sombria e antipática.

— Ora, excetuando a expressão, poderia ser quase a descrição do próprio Douglas — observou Holmes. — Ele tem pouco mais de cinqüenta anos, cabelo e bigode grisalhos e mais ou menos a mesma altura. Não souberam mais nada?

— Vestia um terno de jaquetão cinzento e trazia um sobretudo curto, amarelo, e boné.

— E a espingarda?

— Tem menos de sessenta centímetros de comprimento. Poderia caber perfeitamente na maleta, ou ele podia trazê-la escondida debaixo do sobretudo.

— E, na sua opinião, que importância terá tudo isso na solução do caso em geral?

— Bem, sr. Holmes — respondeu MacDonald —, quando tivermos capturado o nosso homem… e pode estar certo de que telegrafei a todos os postos policiais do país, dando-lhes a sua descrição, cinco minutos depois de obtê-la, estaremos mais aptos a julgar. Não obstante, ainda assim, creio que já nos adiantamos bastante. Sabemos que um americano, que se apresentava com o nome de Hargrave, chegou a Tunbridge Wells há dois dias, de bicicleta e maleta. Nesta .última encontrava-se uma espingarda de cano curto; veio, portanto, com o propósito deliberado de matar. Ontem de manhã, dirigiu-se até aqui de bicicleta, com a arma dissimulada no interior do sobretudo. Ninguém o viu chegar, segundo soubemos, mas ele não necessitava atravessar a vila para atingir os portões do parque, e além disso há sempre muitos ciclistas na estrada. Provavelmente, escondeu logo a bicicleta na moita de arbustos, onde foi encontrada, e ali se ocultou também, sem perder de vista a casa, à espera de que Douglas saísse. A espingarda é uma arma de uso estranho dentro de casa; naturalmente, ele pretendia usá-la do lado de fora, e, nesse caso, ela oferecia vantagens indiscutíveis, pois com ela não seria possível errar o alvo, e, por outro lado, o ruído de tiros é tão comum nestas zonas de caça, que ninguém lhe teria dado grande atenção.

— Tudo isso é muito claro! — afirmou Holmes.

— O sr. Douglas, entretanto, não apareceu. Que fez, então, o nosso homem? Abandonou a bicicleta e aproximou-se da casa, à noitinha. Deparou com a ponte arriada e não vislumbrou pessoa alguma nas vizinhanças. Aproveitou a ocasião propícia, sem dúvida com uma desculpa engatilhada para o caso de encontrar alguém, fato • que, aliás, não se deu. Insinuou-se na primeira sala que achou e escondeu-se atrás da cortina. De seu esconderijo, pôde ver a ponte levantada e percebeu que a fuga só lhe seria possível através do fosso. Esperou até as onze e quinze, ocasião em que o sr. Douglas, no seu habitual giro noturno pela casa, entrou na sala. Descarregou nele a arma e apressou-se a fugir como havia previsto. Sabia que a bicicleta seria descrita pelo pessoal do hotel e estabeleceria um indício contra ele; por esse motivo, abandonou-a e tomou, por algum outro meio, a direção de Londres ou de algum refúgio por ele já preparado. Que tal acha essa teoria, sr. Holmes?

— Até aqui, Mac, muito boa e muito clara. É esse o fim da sua história. A minha conclusão-é que o crime foi cometido meia hora antes da declarada pelas testemunhas; que a sra. Douglas e o sr. Barker engendraram uma história a fim de ocultar alguma coisa; que ajudaram o assassino a fugir, ou, pelo menos, entraram na sala antes de ele fugir, e que foram autores da prova da sua retirada através da janela, quando, com toda a probabilidade, eles próprios baixaram a ponte levadiça para permitir que ele se pusesse em retirada. Essa é a minha interpretação da primeira parte da história.

Os dois policiais abanaram a cabeça.

— Ora, sr. Holmes, se isso é verdade, não fazemos mais que emergir de um mistério para submergir em outro — observou o inspetor londrino.

— E, de certo modo, este segundo mistério é pior do que o primeiro — acrescentou “White Mason. — A sra. Douglas jamais esteve na América. Que ligação podia ter com um assassino americano, a ponto de este a obrigar a protegê-lo?

— Concordo em que a minha teoria dá margem a objeções — disse Holmes. — Estou decidido a fazer, esta noite, uma pequena investigação pessoal, e é provável que ela possa contribuir de algum modo para a causa comum.

— Podemos ajudá-lo, sr. Holmes?

— Não, não! Necessito de pouca coisa: a escuridão e o guarda-chuva do dr. Watson. E de Ames, o fiel Ames; acredito que ele me prestará auxílio. Todo o curso dos meus pensamentos me conduz invariavelmente à mesma pergunta básica: como é possível a um atleta desenvolver a sua própria força com um instrumento tão inadequado como um único haltere?

Era noite alta quando Holmes regressou de sua excursão solitária. Dormíamos num quarto de duas camas, o melhor que a pequena estalagem do interior nos pudera oferecer. Eu já dormia e despertei parcialmente com a sua entrada.

— Então, Holmes — murmurei —, descobriu alguma coisa?

Ele se aproximou de mim em silêncio, com a vela na mão; depois, sua figura magra e alta inclinou-se sobre o meu corpo deitado.

— Escute, Watson — sussurrou-me —, você teria medo de dormir no mesmo quarto com um visionário, um homem que sofresse das faculdades mentais, um idiota, cuja mente tivesse perdido toda a energia?

— Claro que não — respondi, aturdido.

— Ah! Estou com sorte — concluiu.

E durante toda a noite não me foi possível arrancar-lhe mais nada.

[1] Gênio doméstico, divindade do lar. (N. da T.)

Primeira Parte
A Tregédia de Birlstone

Capítulo 1 – O aviso § Capítulo 2 – Sherlock Holmes discorre
Capítulo 3 – A Tragédia de Birlstone § Capítulo 4 – Trevas
Capítulo 5 – As personagens do drama § Capítulo 6 – Um réstia de luz
Capítulo 7 – A solução

Segunda Parte
Os Vingadores

Capítulo 1 – O homem § Capítulo 2 – O grão-mestre
Capítulo 3 – Loja 341, Vermissa § Capítulo 4 – O vale do terror
Capítulo 5 – A hora mais negra § Capítulo 6 – Perigo
Capítulo 7 – Birdy Edwards na ratoeira

Epílogo

Ilustrações: Frank Wiles, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock