O vale do terror – Primeira parte, Capítulo 4

Arthur Conan DoyleO vale do terror

Primeira parte: A tragédia de Birlstone

Título original: The Valley of Fear
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1914-15.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Valley of Fear publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Lígia Junqueiro.

Capítulo quarto: Trevas

Às três horas da madrugada, o chefe de polícia de Sussex, atendendo ao chamado urgente do sargento Wilson, de Birlstone, chegou da sede numa carruagem leve, cujo animal vinha esfalfado da carreira. Remetera o comunicado à Scotland Yard pelo trem das cinco e quarenta, e ao meio-dia encontrava-se na estação para nos receber. White Mason era uma pessoa de aspecto calmo e agradável. Trajava um elegante terno esporte, tinha o rosto corado e bem-escanhoado, compleição robusta, pernas fortes e arqueadas, calçava polainas e parecia-se com um pequeno fazendeiro, um couteiro aposentado ou qualquer outra coisa, menos com um perfeito exemplar de investigador de província.

— Um completo quebra-cabeça, sr. MacDonald — repetia incessantemente. — Os jornalistas hão de afluir aqui como moscas, quando tiverem conhecimento disto. Espero que possamos terminar nosso trabalho antes que eles comecem a meter o nariz e a estragar todas as pistas. Que eu me lembre, nunca aconteceu coisa igual. Há certos pontos que parecem ter sido feitos sob medida, sr. Holmes, se não me engano. E para o senhor também há qualquer coisa, dr. Watson, pois antes de terminarmos os médicos terão algo a dizer. Reservamos-lhes um quarto no Westville Arms. Não há outra hospedaria aqui; sei, contudo, que é limpa e boa. Este homem levará suas bagagens. Por aqui, meus senhores, façam o favor.

Era muito diligente e jovial o chefe de polícia de Sussex. Dentro de dez minutos tínhamos arranjado alojamentos e, ao fim de outros dez, estávamos sentados no átrio da estalagem, ouvindo uma rápida exposição dos acontecimentos relatados no capítulo anterior. MacDonald tomava uma ou outra nota ocasional, enquanto Holmes parecia absorto, com aquele ar de admiração reverente e surpresa com que o botânico observa uma flor rara e preciosa.

— Fantástico! — exclamou, quando a narrativa terminou. — Verdadeiramente extraordinário! Creio ser difícil lembrar-me de outro caso cujas condições fossem mais singulares.

— Tinha certeza de que ia dizer isso, sr. Holmes — afirmou White Mason com grande satisfação. — Acompanhamos o progresso aqui em Sussex! Agora já o pus a par da situação até o momento em que o caso me foi entregue pelo sargento Wilson, entre três e quatro horas da madrugada. Palavra que fiz a minha velha égua correr! Todavia, não tinha necessidade de me apressar tanto, pois não havia nada a fazer que fosse urgente. O sargento Wilson já tinha recolhido todos os dados. Li-os, verifiquei-os e estudei-os, adicionando alguns mais, por minha conta.

— E quais são eles? — perguntou Holmes, ansioso.

— Bem, a princípio examinei o martelo, com a ajuda do dr. Wood. Não encontramos nele sinais de violência. Tinha a esperança de que, na hipótese de o sr. Douglas ter se defendido com o martelo, talvez tivesse atingido o criminoso antes de deixá-lo cair no tapete. Mas não encontramos nele a menor mancha de sangue.

— Isso, é claro, não prova absolutamente nada — observou o inspetor MacDonald. — Quantos delitos não foram praticados com um martelo, sem que este apresentasse vestígio algum!

— Perfeitamente. Não prova que não tenha sido usado, Contudo, podia haver sinais, que nos teriam sido úteis. De fato, não encontramos nada. Examinei em seguida a espingarda. Os cartuchos eram de chumbo grosso e, como o sargento Wilson assinalou, os dois gatilhos tinham sido unidos por um arame, de modo que as duas cargas fossem disparadas simultaneamente, quando se puxasse o de trás. Quem fez isso estava resolvido a evitar o risco de errar o uivo. A arma serrada não tinha mais que sessenta centímetros de comprimento e podia ser transportada por baixo do casaco. Não trazia o nome completo do fabricante; apenas se liam as letras PEN na peça que ligava os dois canos, tendo ficado o restante do nome na parte serrada.

— Um P grande, com um floreado em cima, e o E e o N menores? — inquiriu Holmes.

— Justamente.

— Pennsylvania Small Arm Company… fábrica americana de armas, muito conhecida — concluiu Holmes.

White Mason olhou pasmado para o meu amigo, como o médico do interior olha para o especialista da Harley Street, o qual, com uma simples palavra, pode resolver as dificuldades que o deixem perplexo.

— Essa informação é preciosíssima, sr. Holmes. Não há dúvida, o senhor tem razão. É espantoso! O senhor sabe de cor os nomes de todos os fabricantes de armas do mundo?

Holmes desviou o assunto com um aceno de mão.

— Certamente é uma espingarda americana — continuou White Mason. — Creio ter lido que a espingarda serrada é uma arma muito usada em certas partes da América. Pondo de lado o nome inscrito no cano, a idéia já havia me ocorrido. Torna-se portanto, de qualquer modo, evidente que o homem que penetrou na casa para matar o sr.. Douglas é americano.

MacDonald abanou a cabeça.

— Homem, positivamente, você está indo longe demais— disse. — Ainda não temos prova alguma de que qualquer estranho tenha entrado na casa.

— A janela aberta, a mancha de sangue no peitoril, o cartão incompreensível, as pegadas no canto da sala, a espingarda…

— Tudo isso pode ter sido preparado. O sr. Douglas era americano, ou viveu muito tempo na América, bem como o sr. Barker. Não temos necessidade de ir buscar um americano lá fora para justificar a presença de artigos americanos.

— Ames, o mordomo…

— A propósito! Ele é pessoa de confiança?

— Dez anos a serviço de Sir Charles Chandos… honestidade absoluta. Trabalhava para Douglas desde que ele veio morar na herdade, há cinco anos. Garantiu jamais ter visto em casa uma espingarda dessa espécie.

— A arma devia estar escondida. Por essa razão foram serrados os canos. Caberia em qualquer caixa. Como pode ele jurar que não havia tal arma em casa?

— Bem, de qualquer modo, ele afirma nunca tê-la visto.

MacDonald abanou a cabeça de escocês obstinado.

— Ainda não estou convencido de que alguém tenha penetrado na casa — disse. — Peço-lhe que reflita — o sotaque traía cada vez mais a sua origem de Aberdeen, à medida que o argumento o absorvia —, estou lhe pedindo para refletir no que implica a sua suposição de que esta arma foi trazida para a casa e de que todos estes atos espantosos foram praticados por uma pessoa de fora. Oh!, homem, isso é inconcebível! É simples questão de bom senso. Peço a sua opinião, sr. Holmes, sobre o que já sabemos.

— Pois bem, exponha o seu raciocínio, Mãe — pediu Holmes, assumindo o ar austero de juiz imparcial.

— O homem não é um ladrão, supondo ainda que ele exista. O caso do anel e do cartão indicam crime premeditado por qualquer razão particular. Muito bem. Eis um indivíduo que entra à socapa numa casa com o intuito deliberado de cometer um assassínio. Ele sabe, se é que sabe alguma coisa, que terá dificuldades em arranjar um modo de escapar, pois a casa está cercada de água. Que espécie de irmã escolheria ele? O senhor responderia: a mais silenciosa do mundo. Dessa maneira, podia ter esperança de, terminado o trabalho, safar-se rapidamente. Isso é compreensível. Mas pode entrar na cabeça de alguém que ele saia dos seus cuidados para trazer consigo a arma mais ruidosa que pode encontrar, sabendo muito bem que ela atrairia todos os moradores da casa ao local, tão prontamente quanto pudessem correr, e com todas as probabilidades de ser visto antes de atravessar o fosso? Pode-se acreditar nisso, sr. Holmes?

— Muito bem; o seu raciocínio é convincente — replicou o meu amigo, com ar pensativo. — Claro que precisa ser bem justificado. Permite-me que lhe pergunte, sr. White Mason, se examinou logo a outra margem do fosso para ver se havia sinais de que o homem o tivesse escalado ao sair da água?

— Não havia sinal algum, sr. Holmes. Mas, como a borda do fosso é de pedra, pouco se podia esperar.

— Nenhum rasto ou vestígio?

— Absolutamente nenhum.

— Ah! Faz alguma objeção a que nos dirijamos imediatamente para a herdade, sr. White Mason? É possível que exista qualquer minúcia que possa se tornar sugestiva.

— Era o que eu ia propor, sr. Holmes, mas achei melhor pô-lo a par de todos os acontecimentos antes de partir. Espero que, se alguma coisa lhe suscitar…

White Mason olhou para o detetive amador com ar indeciso.

— Já trabalhei com o sr. Holmes em outras ocasiões — afirmou o inspetor MacDonald. — Ele segue as regras do jogo.

— Pelo menos, sigo as regras de acordo com a minha idéia pessoal do jogo— acrescentou Holmes, sorrindo. — Quando participo de um caso, faço-o com o intuito de auxiliar a causa da justiça e o trabalho da polícia. Se alguma vez me afastei das autoridades oficiais, foi porque elas se apartaram primeiro de mim. Não tenho o menor desejo de me salientar à sua custa. Ao mesmo tempo, sr. White Mason, reclamo o direito de trabalhar a meu modo e de dar a conhecer os meus resultados quando bem entender… resultado completo e não por partes.

— Fique certo de que nos sentimos honrados com a sua presença e de que lhe comunicaremos tudo quanto soubermos — assegurou White Mason cordialmente. — Venha, dr. Watson; e, quando a ocasião se apresentar, todos nós contamos merecer um lugar no seu livro.

Atravessamos a estranha mas aprazível rua da vila, adornada por um renque de olmeiros de ambos os lados. Pouco além, deparamos com dois pilares de pedra, denegridos pelo tempo e cobertos de musgo, em cujo topo se divisava uma figura informe, que fora, outrora, a insígnia de Capus de Birlstone: um leão rampante. Após uma curta caminhada ao longo da sinuosa vereda, orlada de relva e sombreada de carvalhos, como só se encontra na parte rural da Inglaterra, e ao fim de uma curva muito fechada, vimos o edifício extenso e baixo, em estilo jacobita, de tijolos vermelhos, escurecidos pela intempérie, ladeado por um jardim de teixos aparados, como era moda na época da sua construção. À medida que nos aproximávamos da casa, avistamos a ponte levadiça de madeira e. o lindo e amplo fosso, que parecia, na sua calma luminosidade, uma camada de mercúrio brilhando ao sol de inverno. Três séculos se haviam escoado lentamente sobre o solar, séculos de nascimentos e regressos ao lar, de danças campestres e de reuniões para a caça à raposa. Parecia estranho que agora, na sua velhice, tão tenebroso episódio viesse macular as suas veneráveis paredes. Não havia que negar, por outro lado, que aquelas extravagantes cumeeiras pontiagudas e aqueles singulares torreões suspensos formavam um cenário adequado a terríveis e trágicos desígnios. Ao olhar para as janelas reentrantes e para a extensa fachada enegrecida e batida pelo tempo, reconheci que não poderia haver cena mais apropriada para tal tragédia.

— Ali está a janela — disse White Mason —, logo à direita da ponte levadiça. Está aberta exatamente como foi encontrada ontem à noite.

— Parece-me demasiado estreita para a passagem de um homem.

— Certamente não era um homem gordo. Não necessitamos das suas deduções, sr. Holmes, para compreendermos isso. Mas, tanto eu como o senhor, com algum esforço, poderíamos passar por ela.

Holmes aproximou-se da margem do fosso pára examiná-la mais de perto. Depois observou a borda de pedra do valado e a faixa de relva que o ladeava.

— Já investiguei tudo com muito cuidado, sr. Holmes – adiantou White Mason. — Não há nada aí; nada que permita supor que alguém o tenha transposto. Além do mais, por que havia ele de deixar algum sinal?

— Exatamente. Não vejo motivo. A água é sempre assim turva?

— Geralmente é mais ou menos dessa cor, O regato leva muita lama.

— Qual é a sua profundidade?

— Cerca de sessenta centímetros junto às bordas e um metro no centro.

— Desse modo, podemos abandonar qualquer idéia de o homem ter morrido afogado ao atravessá-lo…

— Certamente; nem uma criança se afogaria nele.

Galgamos a ponte e fomos admitidos na casa por um indivíduo estranho, anguloso e enrugado: o mordomo Ames. O pobre velho estava pálido e trêmulo de comoção. O sargento da polícia, homem alto, cerimonioso e melancólico, ainda fazia guarda à sala fatídica. O médico já se havia retirado.

— Alguma novidade, sargento Wilson?— perguntou White Mason.

— Não, senhor. Nenhuma.

— Então pode ir para casa. Já trabalhou bastante; se precisarmos, mandaremos chamá-lo. É melhor o mordomo esperar lá fora. Diga-lhe que avise o sr. Cecil Barker, a sra. Douglas e a governanta de que talvez tenhamos necessidade de lhes falar dentro de alguns instantes. Agora, senhores, permitam-me que lhes dê a conhecer a opinião que a princípio formei e, assim, habilite cada um a formar o seu próprio juízo.

Senti-me impressionado com aquele profissional do interior. Possuía um seguro domínio dos fatos e um raciocínio frio e lúcido, que o haviam de pôr em destaque na profissão. Holmes escutava-o atentamente, sem dar sinais da impaciência que freqüentemente lhe produzia o expoente da autoridade oficial.

—Trata-se de suicídio ou crime? Creio ser essa, senhores, a nossa primeira pergunta. Se foi suicídio, temos de admitir que esse homem tenha principiado por tirar a aliança e ocultá-la; que depois se dirigiu para aqui, vestido com o seu roupão, deixou marcas de lama num canto, atrás da cortina, para fazer crer que alguém estava à espera, abriu a janela, derramou sangue no…

— É evidente que podemos abandonar essa idéia — atalhou MacDonald.

— Assim penso. O suicídio está posto de lado. Nesse caso, foi cometido um crime. O que nos resta determinar é se ele foi cometido por uma pessoa de fora ou de dentro da casa.

— Muito bem; ouçamos o que tem a dizer a esse respeito.

— Há enormes dificuldades em ambos os casos; entretanto, uma ou outra coisa deve ter sucedido. Suponhamos primeiramente que certa pessoa… ou pessoas… de dentro da casa cometeu o crime. Essa pessoa… ou pessoas… apanhou o homem aqui embaixo num momento em que tudo se encontrava em silêncio, apesar de ninguém estar dormindo. O assassinato foi então praticado com a arma mais esquisita e barulhenta do mundo, de modo que todos soubessem o que havia acontecido… arma essa cuja presença na casa nunca fora notada. Não parece ser um início muito verossímil, não acham?

— Perfeitamente.

— Pois bem; todos estão de acordo em que, depois de ser dado o alarme, passou-se apenas um minuto, no máximo, antes de todos os moradores da casa… não somente o sr. Cecil Barker, não obstante ele afirmar ter sido o primeiro, mas Ames e todos os outros… se encontrarem no local. Os senhores querem convencer-me de que nesse curtíssimo espaço de tempo o culpado conseguiu deixar os sinais de pés no canto, abrir a janela, manchar o peitoril de sangue, tirar a aliança do dedo do morto e tudo o mais? É humanamente impossível!

— Você falou com muita clareza — disse Holmes. — Sinto-me propenso a concordar com a sua opinião.

— Nesse caso, somos forçados a voltar à teoria dê que ele foi perpetrado por alguém vindo de fora. Temos ainda alguns obstáculos difíceis de transpor; todavia, de qualquer forma, deixam de ser impossibilidades. O homem penetrou na casa entre as quatro e meia e as seis horas… ou seja, no intervalo entre o crepúsculo e o momento em que a ponte foi levantada. Tinham vindo algumas visitas, e a porta estava aberta; nada, portanto, para lhe embargar os passos. Talvez fosse um ladrão comum ou alguém que tivesse contas a ajustar com o sr. Douglas. O fato de este ter passado a maior parte da vida na América e esta arma parecer de fabricação americana faz aceitar a segunda alternativa como a mais provável. Ele entrou nessa sala porque foi a primeira que se lhe deparou, e escondeu-se atrás da cortina. Aí permaneceu até depois das onze da noite, ocasião em que Douglas entrou na sala. Seguiu-se uma breve discussão, se houve de fato discussão, pois a sra. Douglas assegura que o marido a deixara poucos minutos antes de cia ouvir o disparo.

— A vela confirma isso — comentou Holmes.

— Perfeitamente. A vela, que era nova, não ardeu mais que um centímetro. Ele devia tê-la colocado sobre a mesa antes de ser atacado, porquanto, de outro modo, ela teria caído com ele ao chão. Isso prova que foi assaltado ao entrar na sala. Quando o sr. Barker chegou, o lampião estava aceso e a vela, apagada.

— Tudo isso é bastante claro.

— Muito bem; podemos reconstituir o crime baseados nessa suposição. O sr. Douglas entra na sala e coloca a vela em cima da mesa. Surge um homem de trás da cortina, empunhando essa arma. Reclama a aliança… só Deus sabe por quê, mas deve ter sido assim. O sr. Douglas atende o pedido. Depois, a sangue-frio ou no decorrer de uma luta… é possível que Douglas tivesse se apoderado do martelo encontrado no tapete… descarrega a espingarda cm Douglas, matando-o dessa maneira horrorosa. Deixa cair a arma e também este estranho cartão, “V. V. 341”, seja qual for a sua significação, e, fugindo pela janela, atravessa o fosso no instante exato em que o sr. Cecil Barker descobre o crime. Que tal, sr. Holmes?

— Muito interessante, apenas um tanto inconvincente.

— Homem, isso seria positivamente absurdo se qualquer outra suposição não fosse ainda pior — exclamou MacDonald. — Alguém matou Douglas, e, quem quer que tenha sido, eu poderia perfeitamente provar-lhe que ele devia tê-lo feito de qualquer outra forma. Que pretendia ele ao arriscar-se assim a ficar com a saída cortada? E ao usar uma arma de fogo, quando o silêncio era a sua única probabilidade de escapar? Vamos, sr. Holmes, ao senhor compete dar-nos uma explicação, desde que julga inconvincente a teoria de White Mason.

Holmes conservara-se sentado durante o longo debate, observando tudo com grande atenção, sem perder a menor palavra do que fora dito, dirigindo o olhar penetrante para todos os lados e traindo, com a testa enrugada, o exame minucioso a que submetia tudo em redor.

— Gostaria de ter mais alguns dados, antes de chegar a formular uma teoria, Mac — retrucou ele, ajoelhando-se ao lado do cadáver. — Deus meu! Estes ferimentos são realmente espantosos. Podemos mandar entrar o mordomo por um instante?

Este não demorou a aparecer.

— Ames, disseram-me que você viu, por diversas vezes, esta marca de fogo deveras estranha, um triângulo dentro de um círculo, no antebraço do sr. Douglas.

— Em várias ocasiões, senhor.

— Nunca ouviu nenhuma hipótese quanto ao seu significado?

— Não, senhor.

— Deve ter causado muitas dores quando lhe foi imposta. É indiscutível que se trata de uma queimadura. Noto agora, Ames, um pedacinho de emplastro no queixo do sr. Douglas. Reparou nisso antes, enquanto ele estava vivo?

— Sim, senhor. Cortou-se ao fazer a barba ontem de manha.

— Soube, alguma vez, que ele se tenha ferido ao barbear-se em qualquer outra ocasião?

— Há muito tempo que estou aqui e nunca soube disso.

— É sugestivo! — exclamou Holmes. — Pode ser, naturalmente, mera coincidência, mas também pode indicar certo nervosismo, que, por sua vez, prova que tinha razão para estar atemorizado. Observou algo de estranho na sua atitude, ontem?

— Achei-o um tanto irritado e inquieto, senhor.

— Ah! O ataque talvez não tivesse sido de todo inesperado. Parece que fazemos alguns progressos, não acham? Você provavelmente há de querer fazer perguntas, não, Mac?

— Não, sr. Holmes; isso está em muito melhores mãos.

— Muito bem; passemos, pois, a este cartão, “V. V. 341”. É de papelão ordinário. Há algum deste tipo, na casa?

— Creio que não,

Holmes encaminhou-se para a escrivaninha e derramou um pouco de tinta, de cada um dos tinteiros, no mata-borrão.

— Não foi escrito nesta sala — disse. — Esta tinta é preta e a que foi usada, um tanto purpúrea. Foi escrito com uma pena grossa e estas são finas. Não; foi escrito em qualquer outro lugar, sou capaz de afirmar. Tem alguma idéia do que ele quer dizer, Ames?

— Não, senhor; nenhuma.

— Que pensa disso, Mac?

— Tenho a impressão de que se trata de alguma sociedade secreta, talvez a mesma que lhe fez o sinal no ante-braço.

— É a minha opinião, também — concordou White Mason.

— Podemos adotá-la como hipótese e verificar até onde podemos fazer desaparecer as dificuldades que se nos antepõem à solução deste problema. Um agente dessa sociedade consegue introduzir-se na casa, espera pelo sr. Douglas, quase lhe arranca a cabeça com um tiro e foge pelo (osso, após deixar um cartão junto do cadáver, o qual, mencionado nos jornais, avisaria os outros membros de que a vingança estava consumada. Até aí está tudo muito bem. Mas por que se utilizou ele de uma espingarda?

— Precisamente.

— E qual a razão do desaparecimento da aliança?

— É isso o que eu pergunto.

— E por que não foi efetuada prisão alguma? Já passa das duas horas. Estou certo de que, desde o romper da madrugada, todos os policiais, num raio de setenta quilômetros, encontram-se à procura de um desconhecido com as calças encharcadas.

— Perfeitamente, sr. Holmes.

— Pois bem; a menos que ele tivesse se metido numa toca nas cercanias ou possuísse uma muda de roupa, não podia deixar de ser apanhado. E, no entanto, até agora não foi capturado.

Holmes dirigira-se à janela e pusera-se a examinar, com uma lente, a mancha de sangue sobre o peitoril.

— Trata-se, inegavelmente, do sinal de uma sola de sapato. É de proporções respeitáveis e, diria eu, de um pé chato, que pisa para fora. Curioso, porque, tanto quanto se podem descobrir quaisquer pegadas neste canto sujo de lama, dir-se-ia tratar-se de marcas de solas mais bem-conformadas. Todavia, elas são, na verdade, muito indistintas. Que é isto debaixo desta mesinha?

— São os halteres com que o sr. Douglas praticava ginástica — respondeu Ames.

— Os halteres… Vejo apenas um. Onde está o outro?

— Não sei, sr. Holmes. Talvez houvesse apenas um. Há meses que não os vejo.

— Um haltere apenas!… — dizia Holmes, gravemente, quando foi interrompido na sua observação por súbita pancada na porta. Um homem alto, queimado do sol, de fisionomia inteligente, rigorosamente escanhoado, surgiu no umbral e fixou-nos com ar resoluto. Não me foi difícil adivinhar que se tratava de Cecil Barker, de quem já ouvira falar. Seus olhos autoritários fitaram rapidamente cada um de nós, com ar interrogativo.

— Desculpem-me interromper-lhes a conferência — disse ele —, mas precisam saber da última novidade.

— Prenderam alguém?

— A sorte não chega a tanto. Foi encontrada, porém, a bicicleta dele. O homem abandonou-a, na fuga. Venham vê-la. Está a cerca de cem metros da porta de entrada.

Deparamos com três ou quatro criados e alguns curiosos no passeio, examinando uma bicicleta que havia sido retirada de uma touceira de pinheiros, onde fora ocultada. Era uma Rudge Whirtworth, muito usada, suja de lama, como se tivesse feito uma longa jornada. Possuía bolsa de ferramentas, que continha uma chave de parafusos e uma lata de óleo; nada, todavia, que indicasse o dono.

— Seria de grande auxílio para a polícia — comentou o inspetor — se estas coisas fossem numeradas e registradas. Devemos, no entanto, dar-nos por muito felizes com o que encontramos. Se não pudermos descobrir para onde ele foi, ao menos é provável que saibamos de onde veio. Mas por que cargas-d’água resolveu o sujeito abandoná-la? E como… diabos o levem!… conseguiu ele fugir sem ela? Parece que não encontramos o menor raio de luz neste caso, sr. Holmes.

— Não? — retrucou o meu amigo, com ar pensativo. — Quem sabe?

Primeira Parte
A Tregédia de Birlstone

Capítulo 1 – O aviso § Capítulo 2 – Sherlock Holmes discorre
Capítulo 3 – A Tragédia de Birlstone § Capítulo 4 – Trevas
Capítulo 5 – As personagens do drama § Capítulo 6 – Um réstia de luz
Capítulo 7 – A solução

Segunda Parte
Os Vingadores

Capítulo 1 – O homem § Capítulo 2 – O grão-mestre
Capítulo 3 – Loja 341, Vermissa § Capítulo 4 – O vale do terror
Capítulo 5 – A hora mais negra § Capítulo 6 – Perigo
Capítulo 7 – Birdy Edwards na ratoeira

Epílogo

Ilustrações: Frank Wiles, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock