Curiosidades sobre Sherlock Holmes

Arthur Conan Doyle

Curiosidades sobre Sherlock Holmes

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz o capítulo XI
da autobiografia de Conan Doyle, Memórias e aventuras,
publicada pela editora Marco Zero.

Convém interromper minha narrativa e contar algo que talvez interesse ao meus leitores, a respeito do meu personagem mais famoso.

A impressão de que Holmes representava uma pessoa real, de carne e osso, pode ter sido intensificada por sua freqüente presença nos palcos. Depois de retirar minha montagem de Rodney Stone num teatro que eu havia alugado por seis meses, decidi agir com audácia e energia, já que teatro vazio é sinônimo de desastre. Quando vi o rumo que as coisas iam tomando, tranquei-me a sete chaves e me dediquei de corpo e alma a criar uma peça sensacional sobre Holmes. Escrevi-a em uma semana, dando-lhe o título de O anel mosqueado – o mesmo do conto. Não creio exagerar ao dizer que, quinze dias depois de a primeira peça encerrar sua temporada, uma companhia já ensaiava comigo a segunda, escrita nesse intervalo. Foi um êxito considerável. Lyn Harding, no papel do semi-epilético e absolutamente espantoso doutor Grimesby Rylott, estava irretocável, e Saintsbury, como Sherlock Holmes, também estava ótimo. Antes do fim da temporada eu havia recuperado tudo o que havia perdido com a outra peça e era dono de um patrimônio de algum valor. A peça entrou para o repertório básico e até hoje percorre o país. No papel-título tínhamos uma linda jibóia, que era a menina de meus olhos, de forma que vocês podem imaginar a minha revolta quando um crítico fechou sua resenha com as desdenhosas palavras “o conflito dramático é desencadeado pela aparição de uma serpente nitidamente artificial”. Tive vontade de oferecer-lhe uma boa quantia para se deitar na cama com ela. Tivemos diversas cobras, em diversos momentos, mas não eram atrizes natas, e tendiam ou a se dependurar de um buraco na parede, como puxadores de cortina inanimados, ou a se enfiar pelo buraco para acertar contas com o carpinteiro, que lhes beliscava a cauda para animá-las. Acabamos recorrendo a cobras artificiais, e todos, inclusive o carpinteiro de palco, concordaram que foi bem melhor.

Essa foi a segunda peça sobre Sherlock Holmes. Eu devia ter falado da primeira, produzida muito antes – na verdade, na época da guerra da África. Foi escrita e maravilhosamente interpretada por William Gillette, o célebre americano. Por ter-se utilizado de meus personagens e, em certa medida, dos meus enredos, ele me ofereceu, como seria natural, uma participação no empreendimento, que teve bastante sucesso. “Posso casar o Holmes?”, perguntava um telegrama que recebi dele durante a elaboração da peça. “Pode casá-lo, assassiná-lo, fazer com ele o que bem entender” foi a minha insensível réplica. Fiquei encantado com a peça, com e interpretação e com o resultado pecuniário. Creio que qualquer homem com uma gota de sangue de artista nas veias concordará que esse último fator, ainda que muito bem-vindo quando ocorre, é sempre a última de nossas preocupações.

Sir James Barrie prestou sua homenagem a Sherlock Holmes numa hilariante paródia. Na verdade, foi um alegre gesto de resignação, após o fracasso que sofremos com uma ópera cômica, cujo libreto ele se dispusera a escrever. Nisso colaborei com ele, mas, apesar de nosso esforço conjunto, a peça não deu certo. diante do que, Barrie imediatamente enviou-me uma paródia de Holmes, escrita na folha de rosto de um de seus livros. Era assim:

AS AVENTURAS DOS DOIS COLABORADORES

Ao pôr um fim às aventuras de meu amigo Sherlock Holmes, talvez convenha assinalar que, como vocês agora saberão, representou o encerramento de sua carreira singular, ele nunca consentiu em participar de nenhuma trama ligada a pessoas que ganham a vida escrevendo. “Não tenho preconceitos quanto às pessoas com as quais convivo por motivos profissionais”, costumava dizer. “Mas traço o meu limite quanto aos literatos.”

Estávamos certa noite no nosso apartamento da Baker Street. Se bem me recordo, eu estava à mesa de centro, escrevendo A aventura do homem sem a perna de cortiça (que tanto intrigou a Royal Society e demais entidades científicas da Europa), enquanto Holmes se distraía treinando sua pontaria com o revólver. Era seu costume, nas noites de verão, fazer disparos em torno da minha cabeça, que apenas me roçavam as faces e acabavam por traçar minha silhueta na parede oposta. Prova de sua perícia é que muitos desses desenhos à pistola são tidos como retratos admiravelmente fiéis.

Por mero acaso, olhei pela janela e, vendo dois cavalheiros que desciam rapidamente pela Baker Street, perguntei-lhe quem seriam. Ele imediatamente acendeu o cachimbo e, enroscando-se na poltrona como um oito, respondeu:

“São autores que escreveram juntos uma ópera cômica, e a peça não foi um trunfo.”

Pasmo, dei um pulo da poltrona até o teto, e ele então se explicou melhor.

“Meu caro Watson, é evidente que são membros de alguma profissão vulgar. Isso até você deveria perceber apenas vendo-lhes a cara. Os papeizinhos azuis que atiram longe, com raiva, são notícias da Durrant. É obvio que trazem centenas deles nos bolsos (veja só como estão estufados). E, se sua leitura fosse agradável, eles não as estariam amassando sob os pés.”

Mais uma vez pulei até o teto (que está cheio de mossas).

“Incrível!”, exclamei. “Mas quem sabe não são escritores normais?”

“Não”, disse Holmes, “pois um escritor normal só é notícia uma vez por semana. Só os criminosos, os dramaturgos e os outros são notícias centenas de vezes.”

“Nesse caso, talvez sejam atores.”

“Não. Se fossem atores teriam chegado de cabriolé.”

“Mais alguma coisa que possa me dizer sobre eles?”

“Muita coisa. Pela lama nos sapatos do mais alto, vejo que ele é de South Norwood. o outro, evidentemente, é um autor escocês.”

“Como pode afirmar isso?”

“Ele traz no bolso um livro (que eu vejo claramente) intitulado Auld Licht não-sei-das-quantas. Será que alguém que não fosse o próprio autor andaria por aí carregando um livro com um título desses?”

Tive que admitir que era pouco provável.

Era evidente, àquela altura, que os dois homens (se assim podemos chamá-los) procuravam a nossa casa. Já disse (muitas vezes) que meu amigo Holmes raramente demonstra qualquer tipo de emoção. Agora, porém, estava lívido de paixão. Pouco a pouco, esse deu lugar a uma estranha expressão de triunfo.

“Watson”, disse-me ele, “aquele sujeito alto há anos vem colhendo os louros pelos meus feitos mais notáveis, mas agora eu o peguei… Até que enfim!”

Lá fui eu de novo para o teto e, quando, desci, os estranhos já estavam na sala.

“Estou vendo senhores”, disse o sr. Sherlock Holmes, “que se encontram às voltas com uma novidade extraordinária.”

Espantado, nosso visitante mais apresentável perguntou-lhe como sabia aquilo, enquanto o grandalhão se limitava a franzir o cenho.

“O senhor se esquece de que usa um anel no dedo indicador”, retrucou Holmes calmamente.

Eu já ia pular até o teto, quando o brutamontes se intrometeu.

“Essas baboseiras são boas para o público, Holmes”, disse ele. “Comigo, porém, pode deixá-las de lado. E, Watson, se você subir de novo até o teto, eu o faço ficar por lá.”

Nesse momento, observei um estranho fenômeno. Meu amigo Sherlock Holmes encolheu. Foi diminuindo de tamanho diante dos meus olhos. Já saudoso, contemplei o teto…mas não me atrevi.”

 “Vamos cortar as primeiras quatro páginas”, disse o homem alto, “e ir direto ao assunto. Quero saber por que…”

“Permita-me”, disse o sr. Holmes com um vestígio de sua antiga coragem. “Os senhores querem saber por que o público não vai assistir à sua ópera?”

“Exatamente”, disse o outro com ironia. “Como o senhor pode deduzir pelo botão da minha camisa. E como só há um meio de descobrir o porquê disso, insisto que venham assistir a uma récita integral da peça.”

Aquilo foi para mim um momento de ansiedade. Senti um calafrio, pois sabia que se Holmes fosse, eu teria que acompanhá-lo. Mas meu amigo tinha um coração de ouro.

“Nunca”, exclamou com fúria. “Faço qualquer coisa pelo senhor, menos isso.”

“Depende disso a continuação de sua existência”, ameaçou o brutamontes.

“Prefiro me diluir no ar”, retrucou Holmes, altivamente ocupando outra cadeira. “Mas posso dizer por que motivo o público não compareceu à sua peça, sem para isso ter que assisti-la.”

“Por quê?”

“Porque prefere não comparecer”, disse Holmes calmamente.

Um silêncio de morte seguiu-se àquela extraordinária observação. Por um instante, os dois intrusos fitaram com espanto o homem que tão assombrosamente desvendou-lhes o mistério. Depois, puxando das facas…

Holmes foi diminuindo, diminuindo, até não sobrar nada dele a não ser um anel de fumaça, que lentamente subiu até o teto.

As últimas palavras de um grande homem são com freqüência dignas de registro. Eis as últimas palavras de Holmes: “Idiota, idiota! Durante anos eu o sustentei na opulência.

Com minha ajuda, você sempre andou de tílburi, veículo inédito para um escritor. De hoje em diante, você andará de ônibus!”

O grandalhão desabou sobre a poltrona, estarrecido.

O outro escritor não moveu um dedo.

Para A. Conan Doyle
do seu amigo
J. M. Barrie

Essa paródia, a melhor entre muitas, pode servir de exemplo não só do fino humor de seu autor, como também de sua coragem despreocupada, pois foi escrita imediatamente após nosso fiasco conjunto que, naquele momento, era uma lembrança amarga para os dois. Na verdade, não há nada mais triste do que um fracasso teatral, pois percebemos o quanto ele afeta as muitas pessoas que nos deram o seu apoio. Felizmente, posso dizer que aquela foi a única vez que o experimentei e tenho certeza de que Barrie diria o mesmo.

Antes de abandonar o tema das muitas encarnações de Holmes, devo dizer que todas elas, bem como as suas ilustrações, são muito diferentes da minha concepção original do personagem. Imaginei-o muito alto – “mais de um metro de oitenta, mas tão exageradamente magro que parecia muito mais alto”, lemos em Um estudo em vermelho. Da forma como eu o concebi, possuía um rosto comprido como facão e um nariz grande e aquilino, ladeado por olhos pequenos e juntos. Assim o imaginei. Entretanto, o pobre Sidney Paget que, antes de sua morte prematura fez todas as ilustrações originais, tinha um irmão mais novo, cujo nome, creio, era Walter, e que lhe serviu de modelo. O bem-apessoado Walter tomou o lugar do meu Sherlock, mais enérgico porém mais feio; e talvez, do ponto de vista das minhas leitoras, tenha sido melhor assim. O palco tem acompanhado o padrão das ilustrações.

O cinema era evidentemente desconhecido quando as histórias foram publicadas e, quando finalmente se falou em direitos autorais, e uma companhia francesa me ofereceu por eles uma modesta quantia, aquilo me pareceu uma mina de ouro e aceitei de muito bom grado. Mais tarde, tive que comprá-lo de volta por uma quantia exatamente dez vezes maior do que a que havia recebido, de forma que o negócio foi desastroso. Agora, porém, que a Stoll Company rodou os filmes, com Eille Norwood no papel de Holmes, vejo que valeu a pena gastar tanto para se chegar a tão excelente resultado. De lá para cá, Norwood representou o papel no palco, conquistando a aprovação do público londrino. ele tem aquela qualidade rara – que só podemos descrever como glamour – e que nos leva a prestar absoluta atenção no ator, mesmo quando ele não faz nada. tem um olhar capaz de gerar expectativa e, além disso, um inigualável talento para a caracterização. Meu único senão quanto aos filmes é que neles são mostrados telefones, automóveis e outros confortos jamais sonhados pelo vitoriano Holmes.

Com freqüência me é perguntado se, antes de escrever uma história de Holmes, eu já sabia como terminaria. É claro que sabia. É impossível traçarmos um rumo se não sabemos o nosso destino. O primeiro passo é formular a idéia. Tendo desenvolvido a idéia central, a tarefa seguinte é escondê-la e dar ênfase a tudo aquilo que permite uma outra explicação. Holmes, entretanto, é capaz de perceber as falácias das alternativas e assim, de forma mais ou menos dramática, chegar à verdadeira solução, passando por etapas que ele sabe descrever e justificar. Demonstra os seus poderes através daquilo que os sul-americanos hoje chamam de “sherlockholmitos”, ou seja, pequenas e astuciosas deduções que, embora não raro, nada tenham a ver com o assunto em pauta, dão ao leitor uma forte impressão de poder. O mesmo efeito é obtido através de suas alusões displicentes a outros casos. Só Deus sabe quantos títulos citei como quem não quer nada, e quantos leitores me suplicaram que lhes saciasse a curiosidade quanto a Rigoletto e sua abominável mulher, A aventura do capitão cansado ou A curiosa experiência da família Patterson na ilha de Uffa. Uma ou duas vezes, como em A aventura da segunda mancha (The Adventure of the Second Stain) – que no meu entender é uma das minhas histórias mais bem urdidas -, usei o título anos antes de criar a história correspondente.

Algumas perguntas, ligadas a histórias específicas, são feitas de tempos em tempos, em todas as partes do globo. Em A aventura do mosteiro (The Adventure of the Priory School), Holmes observa, com típica indiferença que, examinado a marca deixada por uma roda de bicicleta na turfa úmida, seria capaz de dizer o rumo tomado por ela. Recebi tantos protestos quanto a essa questão, num tom que ia da piedade à fúria, que peguei a minha bicicleta e fui tirar a prova. eu havia imaginado que a forma como a marca da roda traseira encobre a marca da roda dianteira – desde que o veículo não avançasse em linha perfeitamente reta – podia indicar a direção. Descobri que meus correspondentes estavam certos e eu errado pois as marcas são iguais, não importa a direção em que giram as rodas. Por outro lado, a verdadeira solução era muito mais simples, pois, num terreno turfoso e ondulante, as rodas deixam uma impressão muito mais profunda na subida, e muito mais superficial na descida, de maneira que Holmes, no fim das contas, tinha razão no que afirmava.

Vez por outra, passei em terreno perigoso, assumindo riscos suscitados pelo meu desconhecimento da atmosfera certa. Nunca fui um adepto do turfe, por exemplo, e no entanto atrevi-me a escrever Raio de prata (Silver Blaze), cujo mistério se baseia nas regras do adestramento e da corrida. A história é boa e Holmes talvez esteja no esplendor de sua forma, mas minha ignorância clama aos céus. Sobre essa história, li num jornal esportivo uma crítica excelente e muito prejudicial, feita por um “verdadeiro” entendido, e na qual esse explicava com precisão as punições que todos os envolvidos teriam sofrido, caso tivessem mesmo agido como eu contava. Metade estaria na cadeia e a outra metade para sempre banida do turfe. Entretanto, nunca fui de me preocupar muito com detalhes – e às vezes é preciso astúcia. Certa vez, um editor alarmado escreveu-me o seguinte: “Não existe uma segunda cerca naquela ponto da pista”. “Pois invento uma”, respondi-lhe. Por outro lado, há ocasiões em que a precisão é essencial.

Não quer ser ingrato com Holmes, que tem sido um bom amigo em vários sentido. Se às vezes tendo a me cansar dele, é porque sua personalidade não admite uma definição clara. Ele é uma máquina de calcular e qualquer coisa que se acrescente a isso apenas enfraquece o efeito final. Sendo assim, a variedade das histórias tem que depender do romance e da carpintaria compacta dos enredos. Também deve defender Watson que, no correr dos sete volumes, não evidencia o menor lampejo de senso de humor, nem faz uma única pilhéria. Para criar um personagem sólido, temos que sacrificar tudo à consistência e guardar em mente a crítica que Goldsmith fez a Johnson, no sentido de que esse “era capaz de fazer um peixinho falar como uma baleia”.

Creio que só fui perceber a que ponto Holmes se tornara uma pessoa de carne e osso para os meus leitores mais ingênuos quando me contaram a simpaticíssima história de uma excursão de colegiais franceses, os quais ao lhes ser perguntado que coisa mais queria conhecer em Londres, responderam unanimemente que queriam conhecer a casa do sr. Holmes na Baker Street. Muita gente já me perguntou qual das casas é, mas esse é um detalhe que por motivos óbvios não pretendo esclarecer.

Há anedotas de Sherlock holmes – apócrifas, nem é preciso dizer – que circulam na imprensa e ressurgem a intervalos regulares, como cometas.

Uma delas é a história do cocheiro que, segundo contam, teria me levado até um hotel de Paris. “Dr. Doyle”, exclamou ele, a me olhar fixamente. “Pela sua aparência, percebo que esteve em Constantinopla recentemente. Tenho razões para crer que foi a Buda, e vejo indícios de que andou não muito longe de Milão.” “Maravilhoso. Cinco francos pelo segredo de sua descoberta.”. “Li as etiquetas coladas na sua mala”, gabou-se o astucioso cocheiro.

Outra, também indefectível, é a mulher que teria consultado Sherlock. “Estou absolutamente perplexa, senhor. Em uma semana perdi uma buzina de carro, uma escova, uma caixa de bolas de golfe, um dicionário e uma calçadeira de botas. Como explica isso?” “Nada mais simples, minha senhora”, disse Sherlock. “Seu vizinho evidentemente é proprietário de uma cabra.”

Uma terceira anedota conta como Sherlock entrou no céu e, por força de seus poderes de observação, foi logo cumprimentando Adão – mas a graça talvez seja anatômica demais para que nela nos detenhamos.

Suponho que todo escritor recebe muitas cartas curiosas. Eu, sem dúvida, já recebi. Muitas vieram da Rússia. Quando escritas no vernáculo, eu tinha que aceitá-las tal como me eram lidas; mas as redigidas em inglês constam entre as mais interessantes de minha coleção.

Havia uma jovem que iniciava todas as suas missivas com “Meu Bom Senhor”. Uma outra mostrou uma boa dose de astúcia por trás da singeleza. Escrevendo desde Varsóvia, dizia ter passado dois anos acamada, que meus romances tinham sido seu único consolo etc. etc. Sensibilizado diante de tão lisonjeira afirmativa, providenciei imediatamente um pacote de livros autografados para a coleção da bela enferma. Por sorte, porém, nesse mesmo dia encontrei-me com um colega escritor, a quem relatei a comovente ocorrência. Com um sorriso cínico, ele puxou do bolso uma carta idêntica. Há dois anos ela tinha os seus romances como único consolo etc. etc. Não sei para quantos mais aquela senhora havia escrito; mas, se sua correspondência abrangia vários países, como imagino, deve ter-lhe valido uma biblioteca bastante interessante.

A jovem russa que costumava se dirigir a mim como “Meu Bom Senhor” encontrou um paralelo ainda mais estranho em casa, que se adequa ao título deste capítulo. Pouco depois de ser sagrado cavalheiro, recebi de um comerciante uma fatura absolutamente correta e em todos os detalhes convincente, só que emitida em nome de Sir Sherlock Holmes. Considero-me tão capaz de aceitar uma pilhéria quanto qualquer outra pessoa, mas aquela tirada humorística me pareceu descabida. Protestei veementemente.

Em resposta à minha carta, veio ter ao meu hotel um vendedor muito contrito que, mesmo se manifestando aborrecido com o incidente, repetia insistentemente: “Posso assegurar-lhe, meu senhor, que foi de boa fé.”

“Como assim de boa fé?”, perguntei.

“Bem senhor”, retrucou ele. “Meus colegas na loja me disseram que o senhor havia sido sagrado cavalheiro; que, quando alguém é sagrado cavalheiro, muda de nome; e que o senhor havia adotado esse aí.”

Não é preciso dizer que minha irritação desapareceu, e ri tão gostosamente quanto provavelmente seus amigos faziam, na virada da esquina.

Alguns dos problemas com que me defrontei foram muito semelhantes a alguns que havia inventado para ilustrar o raciocínio do sr. Holmes. Talvez valha a pena mencionar um deles, no qual o método daquele cavalheiro foi copiado com estrondoso sucesso. O caso foi o seguinte: um senhor havia desaparecido. Tinha retirado um saldo bancário de 40 libras, que se sabia estavam com ele. Temia-se que houvesse sido assassinado por causa do dinheiro. Fora visto pela última vez dando entrada num grande hotel londrino, depois de ter chegado de campo naquele dia. A noite, fora assistir a um espetáculo do music-hall, do qual saíra apor volta das dez horas. Regressando ao hotel, despira o traje de noite que, no dia seguinte foi encontrado no seu quarto, e desaparecera completamente. Ninguém o havia visto sair do hotel, mas o ocupante do quarto contíguo afirmou ter ouvido seus movimentos durante a noite. Uma semana se passara quando fui consultado, sem que a polícia tivesse descoberto nada. Onde estaria o homem?

Esse era o conjunto de fatos que me foi comunicado pelos seus parentes do interior. Esforçando-me para ver o problema com os olhos do sr. Holmes, respondi-lhes, por correio, que o cavalheiro certamente se encontrava em Glasgow ou Edimburgo. Mais tarde ficou provado que ele de fato havia ido para Edimburgo, embora na semana recém transcorrida tivesse se deslocado para outra parte da Escócia.

Eu devia deixar o assunto por aí pois, como o dr. Watson várias vezes demonstrou, explicar a solução estraga o mistério. A essa altura, o leitor poderá deixar o livro de lado e descobrir a simplicidade de tudo, desvendando ele próprio o problema, pois tem à mão os mesmos dados de que eu dispunha. Entretanto, em benefício daqueles que não tem nenhum pendor para tais charadas, tentarei indicar os elos que formavam a corrente. A única vantagem que eu tinha era a de conhecer bem a rotina dos hotéis londrinos – embora me pareça que ela não é muito diferente da de qualquer hotel, em qualquer lugar.

O primeiro passo foi examinar os fatos e separar o certo do conjectural. Tudo era certo, menos a declaração da pessoa que teria ouvido o desaparecido naquela noite. Num hotel grande, como diferenciar um som de outro? Aquele detalhe podia ser descartado, caso entrasse em contradição com as conclusões gerais.

A primeira dedução clara era a de que o homem desaparecera intencionalmente. Por que outro motivo sacaria o seu dinheiro? Tinha saído do hotel à noite. Mas em todo hotel existe um porteiro da noite e, depois que as portas se fecham, é impossível sair sem o seu conhecimento. As portas se fecham após a volta dos espectadores de teatro…à meia-noite, digamos. Portanto, o homem havia deixado o hotel antes da meia-noite. voltara do music-hall às dez, mudar de roupa e partira com sua mala. Ninguém o vira fazer isso. Por inferência, ele o havia feito no momento em que o saguão estava cheio de hóspedes que voltavam, ou seja, entre as onze e meia. Depois dessa hora, mesmo com as portas ainda abertas, são poucos os que entram e saem, de forma que ele certamente teria sido visto carregando a mala.

Tendo chegado até aí sobre uma base sólida, agora nos perguntamos por que um homem cuja intenção é esconder-se sairia à rua àquela hora. Se queria se esconder em Londres, não tinha por que ir par um hotel. Era evidente que pretendia pegar um trem, que o levaria para longe. mas um homem que desembarca de um trem numa estação de província, à noite, corre o risco de chamar a atenção, e ele certamente sabia que tão logo o alarme fosse dado, e sua descrição divulgada, algum guarda ou carregador se lembraria dele. Seu objetivo, portanto, era uma cidade grande, um final de linha onde todos os passageiros desembarcassem e ele pudesse desaparecer na multidão. consultando os horários, verificamos que os grandes expressos escoceses som destino a Edimburgo e Glasgow partem mais ou menos à meia-noite, e assim descobrimos o nossa destino. quanto ao traje de noite do sujeito, o fato de tê-lo abandonado provava que pretendia adotar uma rotina de vida isenta de amenidade sociais. Essa dedução também se mostrou correta.

Se menciono esse caso, é para mostrar que as linhas gerais de raciocínio advogadas por Holmes têm sua aplicação prática na vida. Noutro caso, no qual uma moça ficara noiva de um jovem estrangeiro que desapareceu subitamente, fui capaz de demonstrar-lhe, por processo de dedução, para onde ele havia ido e quão indigno era de seu afeto.

Por outro lado, esses métodos semi científicos são por vezes pesados e lentos em comparação com os resultados obtidos por alguém que possua senso prático e capacidade de improvisação. Para que não fique parecendo que estou puxando a sardinha para o meu lado e do sr. Holmes, permitam-me dizer que, por ocasião de um furto numa pousada de aldeia, a um passo de minha casa, o guarda local chegou ao culpado sem apelar para qualquer teoria, enquanto eu nada concluía, a não ser que se tratava de um canhoto que calçava bota com travas.

Os efeitos pitorescos ou dramáticos que fazem invocar o nome ficcional do sr. Holmes são evidentemente de grande ajuda para se chegar a uma conclusão. Difícil mesmo são aqueles casos que não oferecem nenhum ponto de apoio. Soube de um que ocorreu na América e que decerto teria representado um problema dificílimo. Um senhor de vida impoluta saiu para passear com a família, numa tarde de domingo, quando de repente percebeu que se esquecera de alguma coisa. Voltou à sua casa, cuja porta estava ainda aberta, deixando a família a esperá-lo do lado de fora. Nunca mais foi visto e de lá para cá não surgiu nenhum indício sobre o que lhe aconteceu. Esse foi certamente um dos casos verdadeiros mais estranhos que já ouvi contar.

Outro caso singularíssimo foi diretamente observado por mim. Chegou às minhas mãos através de um eminente editor londrino. Esse cavalheiro tinha a seu serviço um chefe de departamento que aqui chamaremos de Musgrave. Era um homem trabalhador, sem qualquer traço de personalidade mais notável. O sr. Musgrave morreu e, passados alguns anos de sua morte, chegou uma carta endereçada a ele, aos cuidados de seus empregadores. Trazia o carimbo de um ponto turístico no oeste do Canadá, a anotação “Registrado” do lado de fora do envelope e a palavra “Confidencial” num dos cantos.

A editora naturalmente abriu o envelope, pois não dispunha de qualquer informação sobre os parentes do falecido. No seu interior, havia duas folhas de papel em branco. A carta, devo acrescentar, era registrada. Sem entender nada daquilo o editor enviou-a a mim e eu submeti as folhas em branco a todos os testes químicos e técnicos possíveis, sem qualquer resultado. Além do fato de que a caligrafia parecia feminina, nada resta a acrescentar a esse relato. O caso era, e continua sendo, um mistério insolúvel. Como é que o missivista podia ter algum segredo e comunicar ao sr. Musgrave e, no entanto, não saber que ele estava morto há vários anos? É muito difícil de entender, o mesmo valendo para o motivo que levaria alguém a mandar com tanto cuidado, por correio registrado, uma quantas folhas em branco. Posso acrescentar que não confiei as folhas aos meus próprios testes químicos, e sim procurei os melhores peritos, sem obter nenhum resultado. Como caso, foi um fracasso – e um fracasso angustiante.

O sr. Sherlock Holmes sempre foi alvo fácil para os pândegos incorrigíveis, e tenho compilados inúmeros casos, de variado grau de engenhosidade, bem como cartas marcadas, avisos misteriosos, mensagens cifradas e outros comunicados misteriosos. É incrível o trabalho que algumas pessoas se dão, com o único intuito de enganar. Numa dessas ocasiões, quando eu entrava no salão para participar de um torneio de bilhar amador, o atendente me entregou um pequeno embrulho que havia sido deixado para mim. Ao abri-lo, encontrei um pedaço de giz comum, de cor verde, igual aos que se usam para jogar bilhar. Divertido com o incidente, guardei o giz no bolso do colete e usei-o durante a partida. Depois, continuei a usá-lo, até que um dia, meses mais tarde, ao esfregar a ponta do taco, a superfície do giz cedeu e descobri que ele era oco. Do orifício assim exposto puxei uma tira de papel com as palavras: “De Arsène Lupin para Sherlock Holmes.”

Imaginem a mentalidade do pândego que teve tanto trabalho para chegar a esse resultado!

Um dos mistérios endereçados ao sr. Holmes foi um tanto ou quanto de natureza mediúnica, estando portanto acima da minha capacidade. Os fatos descritos eram dos mais notáveis, embora eu não tenha provas de que fossem verdadeiros, a não ser o tom sincero de senhora que me escreveu, fornecendo nome e endereço. Essa pessoa, que chamaremos de sra. Seagrave, havia ganho um pitoresco anel de segunda mão, de ouro fosco, em forma de serpente. Toda noite, tirava-o do dedo. Uma noite, adormeceu em ele posto e teve um sonho aterrador no qual lhe parecia que tentava desvencilhar-se de uma criatura feroz, que lhe cravava os dente no braço. Ao despertar, continuou a sentir dores no braço e, no dia seguinte, sua pele mostrava a marca de duas fileiras de dentes, sendo que faltava um na arcada inferior. As marcas eram hematomas azulados, sem rompimento epidérmico.

Dizia a missivista: “Não sei o que me levou a crer que o anel tinha algo a ver com aquilo, mas tomei-lhe de antipatia por ele e deixei de usá-lo durante alguns meses, até que um dia, por ocasião de uma visita, coloquei-o de novo.” Para encurtar a história, a mesma coisa tornou a acontecer, e a senhora atirou o anel na parte mais quente do forno doméstico, resolvendo o problema de uma vez por todas. Essa curiosa história, que acredito ser verdadeira, pode não ser tão sobrenatural quanto parece. É sabido que, em certas pessoas, um forte choque emocional de fato produz efeitos físicos. Sendo assim, um pesadelo muito vívido pode muito bem provocar a marca de uma mordida. Tais casos são bem documentados nos anais médicos. O segundo incidente, é claro, derivaria de sugestão inconsciente do primeiro. Não obstante, foi um probleminha bastante interessante, não importa se psíquico ou material.

Naturalmente, tesouros escondidos fazem parte dos problemas submetidos ao sr. Holmes. Um caso autêntico veio acompanhado do diagrama reproduzido abaixo. Refere-se a um navio mercante que naufragou no litoral sul-africano, no ano de 1782. Fosse eu um homem mais novo, ficaria muito tentado a investigar o assunto pessoalmente.

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O barco continha um tesouro admirável, do qual faziam parte, ao que se dizia, as antigas jóias reais de Delhi. Supõe-se que tenham sido enterradas perto da praia e que esse mapa é o registro do lugar certo. Naquele tempo, cada navio mercante que fazia a rota da Índia possuía um código semafórico próprio e, por conjectura, os três sinais à esquerda seriam a representação de um semáforo de três braços. Talvez algum registro do seu significado pudesse ainda ser encontrado nos velhos anais da India Office. O círculo à direita fornece os pontos da bússola. O semicírculo maior pode ser a extremidade curva de um recife ou rochedo. Os caracteres no alto são indicações de como se chegar ao X que indica o tesouro. É possível que a posição indicada seja 186 pés a partir do 4 acima do semicírculo. O local do naufrágio fica numa região inóspita do país, mas não me surpreenderei se mais cedo ou mais tarde alguém se dedicar seriamente a desvendar o mistério – aliás, no momento presente (1923), existe uma pequena empresa trabalhando nesse sentido.

Devo agora me desculpar pelas digressões deste capítulo, e retornar a seqüência cronológica de minha carreira.

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Transcrição: Mundo Sherlock
Bibliografia:DOYLE, Conan. Memórias e Aventuras. São Paulo: Marco Zero, 1993.

5 respostas para Curiosidades sobre Sherlock Holmes

  1. Ruth Ellen disse:

    Sherlock Holmes é o melhor romance policial de todos os tempos.Pena que o Arthur Conan Doyle não escreveu mais…

  2. Jefry Roger disse:

    Seus outros romances são excelentes tambem. Fica uma sugestão ao site, disponibilizar links para os demais romances com o Dr Chalenger.

    • mundosherlock disse:

      Olá Jefry, obrigado pela visita, comentário e sugestão!

      Estamos avaliando essa possibilidade. Em algum momento, ela se concretizará!

    • Thiago disse:

      Concordo com o jefry. Sempre gostei de sherlock holmes e só agora fui ler os livros do autor original. Nessa semana já li em menos de 4 dias dois livros. Um foi em audiobook pelo youtube(uestudo em vermelho) e o signo dos quatro eu acabei de ler hoje mesmo por este site. E olha que comecei ontem…
      Então ADM, por favor, poste mesmo mais conteúdos sobre sherlock, e quem sabe, até mesmo livros feito por outros autores que os fãs considerem aceitável, como a CASA DE SEDA. Obrigado por proporcionar este espaço literário de uma obra que, mesmo se passando mais de 100 anos, é bem melhor do que muita atual.

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