Charles Augustus Milverton

Arthur Conan Doyle

Charles Augustus Milverton

Título original:  Charles Augustus Milverton
Publicado pela primeira vez na Collier’s Weekly
em Março de 1904, com 6 ilustrações de Frederic Dorr Steele
e na Strand Magazine, em Abril de 1904,
com 7 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de Charles Augustus Milverton publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

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Capa da Collier’s, com ilustração de Frederic Dorr Steele (Cortesia: The Arthur Conan Doyle Encyclopedia)

Faz anos que aconteceram os fatos que vou narrar, mas, mesmo assim, é com certo constrangimento que os evoco. Durante muito tempo teria sido impossível torná-los públicos, mesmo discretamente, mas agora a principal personagem está fora do alcance da justiça humana, e, com a devida reserva, a história poderá ser relatada sem prejuízo de quem quer que seja. Foi uma experiência única na vida de Sherlock Holmes e na minha. O leitor me perdoará por ocultar datas ou quaisquer outros fatos que possam levá-lo a reconhecer pessoas ou lugares.

Holmes e eu tínhamos saído para nosso passeio habitual, voltando mais ou menos às seis horas, numa tarde fria. Quando meu amigo acendeu a luz, vimos um cartão sobre a mesa. Holmes olhou-o e depois, num gesto de repulsa, atirou-o ao chão. Apanhei-o e li:

Charles Augustus Milverton

Appledore Towers
Hampstead

agente

— Quem é ele? — perguntei.

— O maior canalha de Londres — respondeu Holmes, sentando-se e esticando as pernas diante do fogo. — Há alguma coisa escrita no verso do cartão?

Virei o cartão e li:

— “Estarei aí às seis e meia — C. A. M.”

— Hum!… — resmungou Holmes. — Deve estar chegando. Você não tem uma sensação de nojo, Watson, quando vê as serpentes no Jardim Zoológico, aqueles animais viscosos, furtivos, venenosos, de olhos assassinos e cabeças chatas e repulsivas? Pois bem, é essa a impressão que me causa Milverton. Já lidei com cinquenta assassinos em minha carreira, mas o pior deles jamais me causou a sensação de repulsa que esse sujeito me inspira. Apesar de tudo, não posso deixar de negociar com ele, e, para ser franco, Milverton vem aqui a meu pedido.

— Mas quem é ele?

— Vou contar-lhe, Watson. É o rei dos chantagistas. Deus ajude o homem e, principalmente, a mulher cujo segredo caia nas mãos daquele homem! Com rosto sorridente e coração de pedra, ele os sugará, até deixá-los completamente exangues. O homem é um gênio, à sua moda, e teria alcançado sucesso num negócio menos sórdido. Seu método é o seguinte: faz com que se saiba que pagará um preço muito alto por cartas que comprometam pessoas de dinheiro e posição. A mercadoria lhe é entregue não somente por criadas e lacaios desleais, como também por malandros que conseguiram conquistar a afeição de mulheres que confiam neles. Ele nada tem de mesquinho, quando paga. Sei que deu setecentas libras a um lacaio por um bilhete de duas linhas, e o resultado foi a ruína de uma família nobre. Tudo o que existe no mercado, nesse gênero, vai parar nas mãos de Milverton, e há nesta cidade centenas de pessoas que empalidecem ao ouvir seu nome. Ninguém sabe onde sua espada cairá, pois, sendo muito rico e astuto, não age precipitadamente. Às vezes guarda um bilhete durante anos, à espera do momento oportuno para ameaçar a vítima. Eu lhe disse, Watson, que ele é o maior canalha de Londres. O bandoleiro que mata o comparsa no calor de uma briga não pode ser comparado a esse miserável Milverton, que, com método e sem pressa, tortura a alma e dilacera os nervos das criaturas, para aumentar sua já considerável fortuna.

Eu nunca ouvira meu amigo falar com semelhante excitação.

— Mas esse homem não está ao alcance da lei? — perguntei.

— Tecnicamente, sim, mas não na prática. De que adiantaria a uma mulher, por exemplo, fazer com que ele fosse passar uns meses na cadeia, se isso causasse sua própria ruína? As vítimas de Milverton não ousam reagir. Se algum dia ele tentasse chantagear uma pessoa inocente, aí sim nós poderíamos agarrá-lo. Mas o sujeito é esperto como o diabo. Não, não; temos de encontrar outros meios de lutar contra ele.

— Mas por que ele vem aqui?

— Porque uma ilustre cliente me confiou seu triste caso. Trata-se de Lady Eva Brackwell, a mais linda debutante do ano passado. Deve casar-se, daqui a quinze dias, com o conde de Dovercourt. Aquele bandido tem em seu poder algumas cartas levianas — levianas, apenas, Watson, nada mais — que foram escritas a um nobre sem fortuna, do interior. As cartas bastariam para fazer com que o noivado fosse desfeito. Milverton mandará as cartas para o conde, a não ser que lhe paguem uma grande quantia. Recebi uma procuração para tratar com ele e tentar o melhor entendimento possível.

Nesse momento, ouvimos um ruído de patas de cavalo do lado de fora. Olhando pela janela, vi uma imponente carruagem, puxada por dois soberbos animais. Um lacaio abriu a porta e avistei um homem baixo, gordo, de casaco de astracã. Dali a segundos, ele entrava na sala.

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(Sidney Paget, 1904)

Milverton era um homem de cinqüenta anos, com uma cabeça grande, ar de intelectual, rosto barbeado, um sorriso gélido perpetuamente nos lábios e dois perspicazes olhos cinzentos, que brilhavam por trás de óculos de aros dourados. Havia nele um ar benevolente, prejudicado apenas pela hipocrisia do sorriso fixo e pelo brilho duro dos olhos inquietos e penetrantes. Sua voz era macia e suave. Avançou para nós, estendendo a mão gorda, dizendo lamentar não nos ter encontrado quando de sua primeira visita.

Holmes ignorou a mão estendida e olhou-o com expressão gélida. O sorriso de Milverton alargou-se. Encolheu os ombros, tirou o sobretudo, dobrou-o com ar deliberado sobre as costas da cadeira e sentou-se.

Com um gesto em minha direção, disse:

— Este cavalheiro… será discreto?… Não haverá problema?

— O dr. Watson é meu amigo e sócio — declarou Holmes.

— Muito bem, sr. Holmes. Falei apenas no interesse de sua cliente. O assunto é tão delicado…

— O dr. Watson está a par da situação.

— Então podemos tratar do negócio. O senhor diz que representa Lady Eva. Ela deu-lhe poderes para aceitar minhas condições?

— Quais são elas?

— Sete mil libras.

— E a alternativa?

— Caro senhor, é-me penoso discuti-la. Mas, se o dinheiro não me for entregue até o dia 14, certamente não haverá casamento no dia 18.

O sorriso do homem pareceu-me mais complacente do que nunca. Holmes refletiu durante alguns segundos.

— Parece-me que o senhor está muito seguro de si — disse finalmente. — Conheço, já se sabe, os termos das cartas. Minha cliente fará, sem a menor dúvida, o que eu lhe recomendar. Vou aconselhá-la a contar tudo ao noivo e apelar para sua generosidade.

Milverton deu uma risadinha irônica:

— Vê-se que não conhece o conde — disse ele.

Pela expressão de Holmes percebi que o conhecia.

— Que mal há naquelas cartas? — perguntou o meu amigo.

— São expressivas, muito expressivas — respondeu Milverton. — A jovem era uma correspondente encantadora, mas posso garantir-lhe que o conde de Dovercourt não apreciaria tal qualidade. Enfim, já que sua opinião é outra, vamos deixar as coisas como estão. Se o senhor achar que Lady Eva não ficará prejudicada, caso as cartas sejam entregues ao conde, então seria tolice pagar por elas uma tão elevada quantia.

O homem ergueu-se e apanhou o sobretudo de astracã.

Holmes estava pálido de cólera e humilhação.

— Espere um pouco — disse ele. — Não tenha pressa. Claro que faríamos tudo para evitar um escândalo, tratando-se de assunto tão delicado.

Milverton tornou a sentar-se.

— Tinha a certeza de que compreenderia a situação — disse ele.

— Ao mesmo tempo, Lady Eva não é rica — continuou Holmes. — Posso garantir-lhe que duas mil libras abririam um rombo em seus recursos, mas a soma que o senhor indicou está completamente fora de discussão. Peço-lhe, portanto, que modere suas exigências e devolva as cartas ao preço que estipulei, o mais alto que poderá obter.

O sorriso de Milverton alargou-se, e os olhos assumiram um brilho divertido.

— Sei que me diz a verdade, quanto aos recursos da nobre dama — disse ele. — Ao mesmo tempo, o senhor deve compreender que o casamento de uma jovem é ocasião propícia para parentes e amigos fazerem um esforço em sua honra. Pode ser que hesitem na escolha de um presente. Mas posso garantir-lhe que aquele maço de cartas daria mais prazer à noiva do que todos os candelabros e manteigueiras de Londres.

— É impossível — declarou Holmes.

— Ora, ora — disse Milverton, tirando do bolso uma carteira. — Não posso deixar de achar que as mulheres agem mal, recusando-se a fazer um esforço. Veja isto aqui!

Milverton mostrou um envelope onde havia um brasão, e continuou:

— Isto pertence… pois bem, não acho justo dizer o nome até amanhã de manhã. A esta hora, já estará nas mãos do marido. E tudo porque uma ilustre dama não encontrou a miserável quantia que poderia obter numa hora, trocando seus brilhantes verdadeiros por falsos. É pena. Lembra-se do súbito rompimento do noivado da ilustre srta. Miles com o coronel Dorking? Apenas dois dias antes do casamento, saiu um parágrafo no Morning Post anunciando esse rompimento. E por quê? Parece incrível, mas a absurda soma de mil e duzentas libras teria resolvido o assunto. E aqui está o senhor, um homem sensato, regateando, quando o futuro e a honra de sua cliente estão em jogo. O senhor surpreende-me, sr. Holmes.

— O que digo é verdade — declarou Holmes. — O dinheiro não pode ser arranjado. Certamente é preferível aceitar a substancial quantia que lhe ofereço a arruinar a vida dessa mulher, o que nenhum proveito lhe traria.

— Engana-se nesse ponto, sr. Holmes. Um escândalo me traria, indiretamente, grandes vantagens. Tenho oito ou dez casos em andamento. Se os interessados ficarem sabendo que não poupei Lady Eva, procurarão, sem dúvida, mostrar-se mais razoáveis. Compreende meu ponto de vista?

Holmes levantou-se de um salto.

— Ponha-se atrás dele, Watson. Não o deixe sair daqui! Agora, senhor, vamos ver o conteúdo dessa carteira.

Ágil como um rato, Milverton escorregara para um canto da sala, e estava de costas para a parede.

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(Sidney Paget, 1904)

— Sr. Holmes, sr. Holmes! — disse, abrindo o casaco e mostrando o cano de um revólver, que se projetava de um bolso interno. — Estava à espera de que fizesse algo original. Já tentaram isso tantas vezes, e com que vantagem?… Asseguro-lhe que estou armado até os dentes e pronto a usar minha arma, pois sei que a lei estaria do meu lado. Além disso, está completamente enganado se pensa que eu iria trazer a carta. Nunca faria tal loucura. Agora, senhores, tenho mais uma ou duas entrevistas hoje à noite, e é uma longa viagem até Hampstead.

O homem adiantou-se, apanhou o sobretudo, segurou o revólver e virou-se para a porta. Peguei uma cadeira, mas Holmes sacudiu a cabeça e larguei-a de novo. Com uma curvatura, um sorriso e um brilho no olhar, Milverton saiu da sala. Momentos depois, ouvimos o ruído da carruagem que se afastava.

Holmes ficou imóvel perto do fogo, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, o queixo sobre o peito, os olhos fixos nas cinzas. Por meia hora permaneceu imóvel e em silêncio. Depois, com o gesto de quem toma uma resolução, levantou-se de um salto e dirigiu-se para o quarto. Dali a pouco, vi sair dali um operário de ar insolente, barbicha e andar bamboleante, que acendeu o cachimbo de barro antes de sair para a rua.

— Não sei a que horas voltarei, Watson — disse ele, desaparecendo no meio da noite.

Compreendi que declarara guerra contra Charles Augustus Milverton, embora pouco soubesse do estranho rumo que tomariam os acontecimentos.

Durante alguns dias, Holmes entrava e saía a qualquer hora vestido daquela forma; mas, excetuando-se a informação de que passava o tempo em Hampstead, eu nada sabia de seus movimentos. Finalmente, numa noite tempestuosa, voltou de sua última expedição. Depois de tirar o disfarce, sentou-se diante do fogo e riu, à sua maneira silenciosa, para dentro.

— Não me julga um galante, não é verdade, Watson?

— Não, claro que não!

— Creio que gostará de saber que estou noivo…

— Caro amigo! Parabéns….

— … da empregada de Milverton.

— Deus do céu, Holmes!

— Eu queria informações, Watson.

— Mas não terá ido longe demais?

— Era necessário. Sou um encanador, dirijo um negócio próspero, e meu nome é Scott. Tenho saído com ela todas as noites, e temos conversado muito. Santo Deus, aquelas conversas! Em todo caso, consegui o que queria. Conheço a casa de Milverton como a palma de minha mão.

— Mas e a moça, Holmes?

Meu amigo encolheu os ombros.

— Não há remédio, Watson. Temos de lutar com as armas à nossa disposição, quando está em jogo um assunto tão importante. Mas folgo em dizer-lhe que tenho um temível rival que, sem a menor dúvida, me substituirá assim que eu virar as costas. Que linda noite!…

— Gosta deste tempo?

— Serve para meus desígnios, Watson. Pretendo invadir a casa de Milverton hoje à noite.

Senti um frio na espinha ao ouvir tais palavras, pronunciadas lentamente e em tom de firme resolução. Assim como um relâmpago, à noite, mostra de relance todos os pormenores de uma paisagem, num segundo vi as conseqüências de tal aventura — prisão, a honrada carreira de meu amigo arruinada para sempre, e Holmes à mercê do detestável Milverton.

— Pelo amor de Deus, Holmes, pense no que vai fazer! — exclamei.

— Caro amigo, já pensei bastante. Não sou precipitado, e não teria tomado uma resolução tão enérgica e perigosa se houvesse alternativa. Vejamos as coisas com clareza e sangue-frio. Você há de reconhecer que o ato é moralmente justificável, embora tecnicamente criminoso. Invadir a casa de Milverton não é pior do que roubar-lhe a carteira… e, nisso, você estava disposto a ajudar-me.

Durante segundos, pesei o argumento.

— Sim, moralmente justificável, contanto que nosso objetivo seja subtrair unicamente objetos que se pretenda usar para fins ilegais.

— Exatamente. Já que é moralmente justificável, tenho apenas de considerar o risco pessoal. Não há dúvida de que um cavalheiro não deve pensar nisso, quando uma dama precisa desesperadamente de auxílio, não é verdade?

— Você ficará em posição muito incômoda.

— Bem, isso faz parte do risco. Não há outra maneira de conseguir as cartas. A pobre jovem não tem o dinheiro, e não pode abrir-se com ninguém da família. Amanhã é o último dia para o pagamento e, a não ser que recuperemos as cartas hoje à noite, aquele miserável cumprirá sua ameaça e fará a infelicidade de Lady Eva. Cá entre nós, Watson, é um duelo entre Milverton e este seu amigo. Como você viu, o chantagista teve vantagem no primeiro encontro, mas minha reputação e meu amor-próprio estão envolvidos na luta.

— Bem, não gosto nada disso, mas, se tem de ser, paciência. A que horas vamos?

— Você não vai — disse Holmes.

— Então você também não vai — declarei. — Dou-lhe minha palavra de honra (e jamais a quebrei, durante toda a vida) que tomarei um carro até a polícia e lá o denunciarei, a não ser que queira levar-me em sua aventura noturna.

— Você em nada poderá ajudar-me — disse Holmes.

— Como sabe? Ninguém pode prever o que vai acontecer. De qualquer maneira, minha resolução está tomada. Há outras pessoas, além de você, que têm amor-próprio e reputação.

Holmes parecera aborrecido, mas seu rosto desanuviou-se, e bateu no meu ombro.

— Bem, bem, caro amigo, vá lá, então. Compartilhamos do mesmo quarto durante anos, e seria interessante se acabássemos compartilhando a mesma cela. Sabe, Watson, confesso que sempre achei que eu poderia ser um criminoso muito eficiente! É esta a oportunidade de minha vida, nesse setor.

Holmes tirou uma pequena pasta de couro de uma gaveta, abriu-a e exibiu uma porção de instrumentos reluzentes.

— Aqui está um estojo de arrombamento, de primeira classe, com as mais modernas ferramentas. Aqui está também minha lanterna. Tudo em ordem. Tem um par de sapatos que não façam barulho?

— Tenho tênis.

— Ótimo. E máscara?

— Posso fazer uma, com seda preta.

— Vejo que tem vocação para a coisa. Muito bem: as máscaras ficam por sua conta. Faremos uma refeição fria antes de partir. São nove e trinta. Às onze iremos até a Church Row. É uma caminhada de um quarto de hora de lá até Appiedore Towers. Estaremos trabalhando antes da meia-noite. Milverton tem um sono muito pesado, e vai para a cama pontualmente às dez e meia. Com sorte, estaremos de volta às duas horas, com as cartas de Lady Eva no bolso.

Holmes e eu nos vestimos de maneira a parecermos dois cavalheiros regressando do teatro. Na Oxford Street, apanhamos um carro e demos um endereço em Hampstead. Ali pagamos o carro e, de sobretudo abotoado, pois fazia muito frio e soprava um vento cortante, caminhamos ao longo da margem do Heath.

— É um negócio que precisa ser tratado com delicadeza — disse Holmes. — Os documentos estão num cofre, no escritório do homem, e o escritório é uma antecâmara de seu quarto de dormir. Por outro lado, como todos esses homenzinhos que se tratam bem, ele tem um sono muito pesado. Agatha, minha noiva, diz que já é motivo de troça, entre os empregados, o fato de ser impossível acordar o patrão. Ele tem um secretário muito delicado, que não arreda pé do escritório durante o dia. É por isso que vamos à noite. Há também um cão terrível, que ronda por ali a noite toda. Encontrei-me com Agatha muito tarde, nestas duas últimas noites, e ela prende o animal para me dar liberdade. A casa é aquela, grande, no meio de um parque. Vamos atravessar o portão. Agora, à direita, por entre os loureiros. Creio que chegou o momento de pormos as máscaras. Veja, não há uma réstia de luz em nenhuma das janelas. Tudo corre às mil maravilhas.

Com as máscaras de seda preta, que nos transformaram em dois temíveis bandidos, dirigimo-nos para a casa silenciosa. Uma espécie de varanda se estendia de um dos lados da casa e para ela davam duas portas e várias janelas.

— É logo ali o quarto dele — murmurou Holmes. — Esta porta dá para o escritório. Seria melhor entrarmos por aqui, mas está trancada e faríamos muito barulho. Venha. Há uma estufa que dá para o salão.

A estufa estava fechada, mas Holmes cortou um quadrado de vidro da porta, enfiou a mão pelo buraco e deu a volta à chave, lá dentro. Momentos depois, fechou a porta atrás de nós e, com isso, transformou-nos em infratores da lei. Sentimos o ar quente da estufa e o cheiro das plantas exóticas. Holmes segurou minha mão, no escuro, e conduziu-me rapidamente por entre as plantas que nos roçavam o rosto. Meu amigo tinha o extraordinário dom, cuidadosamente cultivado, de enxergar no escuro. Ainda segurando minha mão, abriu uma porta, e tive a impressão de entrar num quarto grande, onde haviam fumado um charuto há pouco. Ele procurou orientar-se em meio à mobília, abriu outra porta e fechou-a. Estendendo a mão, percebi que havia vários casacos pendurados na parede, e compreendi que estávamos num corredor. Caminhamos por ele, e Holmes abriu de mansinho uma porta à direita. Alguma coisa passou por nós, e meu coração parou, mas quase deixei escapar uma risada ao concluir que fora apenas um gato. Nesse aposento a lareira estava acesa, e senti de novo o cheiro forte de tabaco. Holmes entrou nas pontas dos pés, esperou que eu o seguisse e fechou de mansinho a porta. Estávamos no escritório de Milverton. Uma cortina pesada, na outra extremidade, indicava a entrada do quarto.

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(Sidney Paget, 1904)

O fogo, forte, iluminava o aposento. Perto da porta, vi o brilho de um comutador, mas era desnecessário acender a luz, mesmo havendo algum perigo. De um lado da lareira, havia uma cortina pesada, que vedava a janela saliente que tínhamos visto de fora. Do outro lado, uma porta que se comunicava com a varanda. No centro havia uma escrivaninha, com cadeira giratória de cabedal vermelho. Do outro lado, uma estante, encimada por um busto de Atena. A um canto, entre a estante e a parede, vimos um alto cofre verde, em cujas maçanetas de bronze se refletia a luz da lareira. Holmes atravessou a sala e examinou o cofre. Foi depois até a porta do quarto e, a cabeça de lado, ficou atentamente à escuta. Nenhum som veio de lá. Nesse meio tempo, ocorreu-me que seria de bom alvitre preparar nossa retirada pela porta externa, de modo que fui examiná-la. Vi, com espanto, que não estava trancada nem fechada à chave. Bati de leve no braço de Holmes e ele olhou naquela direção. Teve um sobressalto, mostrando-se tão surpreendido como eu.

— Não gosto nada disso — murmurou ao meu ouvido.

— Não entendo. De qualquer maneira, não temos tempo a perder.

— Quer que eu faça alguma coisa?

— Sim, fique perto da porta. Se ouvir alguém chegar, tranque-a, e poderemos sair por onde entramos. Se vierem pelo outro lado, poderemos sair pela porta, se nossa missão estiver cumprida, ou esconder-nos atrás das cortinas da janela. Está bem?

Concordei com a cabeça e fiquei perto da porta. Passado o primeiro receio, senti um prazer maior do que jamais sentira quando éramos os defensores da lei, em vez de infratores. O alto fim de nossa missão, a certeza de que era desinteressada e cavalheiresca, o caráter vil de nosso adversário, tudo isso se acrescentava ao interesse desportivo da aventura. Em vez de me sentir culpado, alegrei-me, exultando com o perigo. Cheio de admiração, vi Holmes abrir a pasta de ferramentas e escolher uma delas, com calma, com a perícia do cirurgião que vai fazer uma operação delicada. Eu conhecia sua habilidade em abrir cofres, e imaginei o prazer que sentia ao defrontar-se com aquele monstro verde e dourado que encerrava, em sua goela voraz, a reputação de numerosas damas. Dobrando os punhos do casaco (ele tirara o sobretudo), Holmes dispôs a seu lado as ferramentas. Fiquei junto à porta central, vigiando com o olhar as outras duas, pronto a agir numa emergência, embora meus planos fossem vagos quanto à minha atuação, caso fôssemos interrompidos. Durante meia hora, Holmes trabalhou com empenho, largando uma ferramenta e apanhando outra, manejando todas elas com a força e a delicadeza de um perito. Finalmente ouvi um dique, a porta verde abriu-se e divisei dentro do cofre vários maços de papéis, cada um amarrado, lacrado e marcado com uma inscrição. Holmes pegou um deles, mas era difícil ler, à luz da lareira, de modo que tirou do bolso sua lanterninha, pois seria perigoso acender a luz com Milverton no quarto contíguo. De repente, vi-o parar e ficar à escuta. Imediatamente fechou o cofre, apanhou as ferramentas e o sobretudo e escondeu-se atrás das cortinas, fazendo-me sinal para que o imitasse.

Somente quando me reuni a ele notei o som que haviam captado seus sentidos aguçados. Havia um ruído qualquer na casa. Uma porta bateu ao longe. Depois, houve um murmúrio confuso, que se definiu em passos que se aproximavam, soando no corredor. A porta abriu-se. Ouvimos o ruído do comutador. A porta fechou-se novamente, e sentimos um cheiro forte de charuto. Depois, passos que iam e vinham, iam e vinham, perto de nós. Finalmente, o ruído de uma cadeira. Os passos cessaram. Depois, um estalido de fechadura e um ranger de papéis. Até então, eu não ousara espreitar, mas nesse momento entreabri muito de leve as cortinas. Pela pressão do ombro de Holmes contra o meu, percebi que também ele estava observando. Bem em frente, quase a nosso alcance, estavam as costas largas de Milverton. Claro que tínhamos calculado mal seus movimentos, ele não tinha estado no quarto, e sim sentado em alguma sala do outro lado da casa, cujas janelas não tínhamos visto. Ele estava reclinado na cadeira vermelha, de pernas estendidas, um charuto longo e negro projetando-se do canto da boca. Usava uma jaqueta caseira, de gola de veludo. Tinha na mão um documento e lia-o com displicência, enquanto fumava. A maneira como se comportava e sua atitude tranquila indicavam que não tinha pressa em se retirar.

Senti a mão de Holmes apertar a minha, animando-me, como que a garantir-me que poderia dominar a situação e estava calmo. Eu não sabia se ele percebera que a porta do cofre estava mal fechada, e que a qualquer momento Milverton poderia aperceber-se disso. Em meu íntimo, resolvera que, se por um enrijecimento em suas feições eu percebesse que Milverton vira o cofre aberto, cobri-lo-ia com o sobretudo, prendendo-o e deixando o resto por conta de Holmes. Mas Milverton não ergueu os olhos. Estava languidamente interessado nos papéis que lia, página após página, como quem acompanha os argumentos de um advogado.

Pensei que, quando acabasse de ler e fumar o charuto, iria para o quarto, mas antes que tal se desse houve um incidente que alterou o rumo de nossos pensamentos.

Várias vezes Milverton olhara para o relógio, e uma vez chegou a levantar-se, com gesto impaciente. Jamais me ocorrera a idéia de que tivesse marcado entrevista com alguém, em hora tão imprópria, até ouvir um leve ruído na varanda. Milverton largou os papéis e ficou rígido. Ouviu-se um novo ruído. Logo em seguida, um bater leve à porta. O homem levantou-se e foi abri-la.

— Muito bem — disse ele. — Está com meia hora de atraso.

Então era essa a explicação da vigília de Milverton e da porta que não fora trancada. Ouvi o farfalhar de um vestido de mulher. Eu fechara a cortina entreaberta, quando Milverton se virou para nosso lado, mas então aventurei-me a espreitar de novo. Ele voltou a sentar-se, de charuto na boca, numa atitude insolente. Diante dele, bem iluminada pela luz elétrica, estava uma mulher alta, magra, morena, com um véu sobre o rosto e uma capa nos ombros, à altura do queixo. Respirava ofegantemente, parecendo presa de grande emoção.

— Muito bem — disse Milverton. — Fez-me perder horas de descanso, minha cara. Espero que me prove que valeu a pena. Não pôde vir mais cedo, hein?

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(Sidney Paget, 1904)

A mulher sacudiu a cabeça.

— Bem, se não pôde, paciência. Se a condessa for uma patroa rigorosa, você terá oportunidade de se vingar dela. Ora, ora, menina, por que está tremendo tanto? Domine-se. Vamos ao que interessa.

O homem tirou um bilhete da gaveta da escrivaninha e continuou:

— Diz que tem cinco cartas comprometedoras da condessa d’Albert. Quer vendê-las? Quero comprá-las. Até aqui, muito bem. Basta combinarmos o preço. Claro que preciso examinar as cartas. Se forem realmente bons espécimes… Santo Deus, é você?

A mulher erguera o véu sem uma palavra, e deixara cair a capa atirada sobre o ombro. Era uma mulher bonita, morena, de traços definidos, nariz curvo e lábios finos, onde havia um sorriso perigoso.

— Sim, sou eu, a mulher cuja vida você desgraçou.

Milverton riu, mas havia medo em seu riso.

— Você foi tão teimosa — disse ele. — Por que me levou àquele extremo? Garanto-lhe que não faria mal a uma mosca propositadamente, mas cada homem tem seu negócio, e o que eu poderia fazer? Exigi um preço a seu alcance. Você não quis pagar.

— E então, mandou as cartas para meu marido, e ele… o homem mais nobre que jamais existiu, de quem eu não era digna nem mesmo de engraxar os sapatos… ficou desesperado e morreu. Você se lembra da última noite, quando passei por essa porta e lhe pedi piedade, e você riu, riu em minha cara, como está tentando fazer agora? Mas seu coração covarde não pode impedir seus lábios de tremerem. Sim, nunca pensou que tornaria a ver-me, mas aquela noite ensinou-me como poderia encontrá-lo frente a frente, e a sós. Então, Charles Milverton, o que tem a dizer?

— Não pense que me assusta — disse ele, levantando-se. — Basta que eu erga a voz para que acorram meus empregados e você seja presa. Mas vou dar um desconto à sua cólera. Saia imediatamente, e nada mais será dito.

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(Sidney Paget, 1904)

A mulher continuava com o mesmo sorriso ameaçador.

— Não arruinará outras vidas como fez com a minha. Não torturará corações como torturou o meu. Livrarei o mundo de um ser venenoso. Tome, seu canalha, tome, tome! Ela apontara um revolverzinho e atirava agora no peito de Milverton, a uma distância de apenas sessenta centímetros. Ele recuou, depois caiu sobre a escrivaninha, tossindo e agarrando-se aos documentos. Ergueu-se, cambaleando, levou outro tiro e caiu ao chão.

— Você me liquidou — disse, e ficou imóvel.

A mulher olhou-o atentamente; depois calcou-lhe o rosto com o salto do sapato. Olhou de novo, mas não houve som, ou movimento. Ouvi um rumor brusco quando o ar noturno entrou na sala aquecida, e percebi que a vingadora havia partido.

Nenhuma interferência nossa teria salvo o homem de seu destino, mas, ao ver a mulher disparar tiro após tiro sobre Milverton, eu teria pulado se Holmes não me segurasse pelo braço. Compreendi o que queria dizer aquela pressão firme: que o assunto não nos dizia respeito; que a justiça apanhara um miserável; que tínhamos um dever a cumprir, e dele não nos podíamos esquecer.

Mal a mulher saíra da sala, Holmes deixou o esconderijo a passos rápidos e silenciosos. Dirigiu-se para a porta e fechou-a à chave. No mesmo instante, ouvimos vozes e som de passos apressados. Os tiros tinham acordado a criadagem. Perfeitamente calmo, Holmes foi até o cofre, pegou uma braçada de documentos e atirou-os ao fogo. Fez isso várias vezes, até o cofre ficar vazio. Alguém virou a maçaneta e começou a bater na porta. Holmes olhou rapidamente à volta. A carta que fora a mensageira da morte para Milverton estava sobre a escrivaninha, toda manchada de sangue. Holmes lançou-a no meio das outras. Em seguida, tirou a chave da porta exterior e fechou-a por fora depois que a atravessamos.

— Por aqui, Watson — disse ele. — Podemos galgar o muro do jardim.

Nunca pensei que um alarme se espalhasse tão depressa. Olhando para trás, vimos a imensa casa toda iluminada. A porta da frente estava aberta, e vinham vultos correndo pela alameda. O jardim estava cheio de gente. Um criado gritou quando saímos da varanda, e veio em nosso encalço. Holmes parecia conhecer perfeitamente o terreno, orientando-se sem dificuldade no meio das arvorezinhas, seguido por mim e, a pouca distância, por nosso perseguidor. Chegamos a um muro de um metro e oitenta de altura, mas Holmes pulou para o topo e passou para o outro lado. Quando tentei fazer o mesmo, senti a mão do criado agarrar-me o tornozelo, mas livrei-me dela com um pontapé e pulei. Caí de cara nuns arbustos, mas Holmes ajudou-me imediatamente a erguer-me, e juntos corremos pela vastidão de Hampstead Heath. Tínhamos corrido mais de três quilômetros, pêlos meus cálculos, quando Holmes parou e ficou à escuta. Silêncio absoluto atrás de nós. Tínhamo-nos livrado dos perseguidores, e estávamos salvos.

Terminada nossa refeição da manhã, estávamos fumando, no dia seguinte a essa memorável aventura, quando o inspetor Lestrade, da Scotland Yard, entrou em nossa sala, solene e sisudo.

— Bom dia, sr. Holmes — disse ele. — Bom dia… Será que estão muito ocupados no momento?

— Não para o senhor — disse Holmes.

— Achei que, se não tivesse nada de especial a fazer, talvez quisesse ajudar-me no caso mais extraordinário de minha carreira, ocorrido ontem, em Hampstead.

— Ora, ora — exclamou Holmes —, o que houve?

— Assassinato… o mais dramático e o mais estranho. Sei como o senhor se interessa por essas coisas, e ficaria agradecido se quisesse acompanhar-me ao local para me dar sua valiosa opinião. Não é um crime comum. Há tempo que estamos de olho nesse Milverton, cá entre nós, um canalha. Sabe-se que vivia de chantagem. Seus documentos foram todos queimados pêlos assassinos. Não desapareceu nenhum objeto de valor, e é provável que os criminosos sejam homens de posição, cujo único objetivo tenha sido evitar um escândalo.

— Criminosos? — disse Holmes. — No plural?

— Sim, eram dois. Quase foram presos em flagrante. Temos suas pegadas, e a descrição deles; é quase certo que os apanharemos. O primeiro foi muito ágil, mas o segundo quase foi apanhado pelo jardineiro e escapou com dificuldade. Era um homem de estatura mediana, forte, queixo quadrado, pescoço grosso, bigode e máscara sobre os olhos.

— Um tanto vago — observou Holmes. — Olhe, podia ser a descrição de Watson!

— É verdade — concordou Lestrade, com ar divertido. — Podia ser.

— Bem, infelizmente creio que não estou em condições de auxiliá-lo, Lestrade — disse Holmes. — O fato é que conheci esse tal Milverton e considerava-o um dos mais perigosos homens de Londres. Sei que certos crimes não podem ser alcançados pela lei, e, nesse caso, justifica-se a vingança privada. Não adianta insistir; estou resolvido. Minha simpatia está do lado dos criminosos, não da vítima, e não aceito o caso.

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(Sidney Paget, 1904)

Holmes não dissera uma palavra sobre a tragédia que tínhamos presenciado, mas notei que toda a manhã ficou pensativo, dando-me a impressão, a julgar pelo ar vago, de que procurava recordar qualquer coisa. Estávamos no meio do almoço quando de repente ele se pôs de pé.

— Com os diabos, Watson, lembrei-me! — exclamou.

— Apanhe seu chapéu! Venha comigo!

Corremos pela Baker Street e a Oxford Street, até chegar ao Regent Circus. À esquerda, havia uma vitrina com fotografias das celebridades do momento. O olhar de Holmes fixou-se numa delas. Vi o retrato de uma senhora imponente, em traje de gala, com uma tiara de diamantes na cabeça. Olhei para o nariz levemente curvo, para as sobrancelhas bem-feitas, a boca firme e o queixo decidido. Fiquei sem respiração quando li o nome nobre e honrado do grande aristocrata de quem ela fora esposa. Meus olhos encontraram os de Holmes, e ele pôs o dedo nos lábios quando nos viramos para regressar a casa.

1905
A volta de Sherlock Holmes

1. A casa vazia § 2. O construtor de Norwood
3. Os dançarinos § 4. A ciclista solitária
5. A escola do priorado § 6. Pedro Negro
7. Charles Augustus Milverton § 8. Os seis bustos de Napoleão
9. Os três estudantes § 10. O pincenê dourado
11. O atleta desaparecido § 12. Abbey Grange § 13. A segunda mancha

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock