O ritual Musgrave

Arthur Conan Doyle

O ritual Musgrave

Título original: The Musgrave Ritual
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Maio de 1893 e com 6 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Musgrave Ritual publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume III,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.

Uma anomalia que muitas vezes me chocou na personalidade de meu amigo Sherlock Holmes era que, muito embora seus métodos de pensamento fossem os mais esmerados e lógicos da humanidade, e embora afetasse também certo pedantismo sóbrio no trajar, apesar disso, nos hábitos pessoais era um dos homens menos asseados que já arrastaram um companheiro de quarto ao desespero. Não que eu próprio seja convencional nesse aspecto. A azáfama no Afeganistão levou ao cúmulo minha natural disposição para a boêmia, e tornou-me mais relaxado do que fica bem a um médico. Mas comigo há um limite, e quando encontro uma pessoa que guarda os charutos no balde de carvão, o tabaco, nos chinelos persas, e correspondência por responder, espetada com um canivete bem no centro da prateleira da lareira, então começo a dar-me ares de virtuoso. Sempre afirmei também que o uso da pistola devia ser exclusivamente um passatempo ao ar livre; e quando Holmes, num de seus humores esquisitos, se sentava numa poltrona, com o gatilho e cem cartuchos de Boxer, e começava a adornar a parede oposta com um patriótico V. R. [1] feito a buracos de balas, eu sentia que nem a atmosfera nem a aparência de nossa sala melhoravam com isso.

Nossos alojamentos estavam sempre cheios de ingredientes químicos e relíquias de crimes, que tinham a capacidade de perambular pêlos lugares mais impróprios e reapareciam na manteigueira, ou em qualquer outro lugar ainda menos desejável. Mas seus papéis eram minha grande cruz. Tinha horror de destruir documentos, especialmente os que se relacionavam com seus casos passados. E só uma vez em cada um ou dois anos mostrava energia para rotulá-los e arrumá-los. Como já mencionei algures nestas memórias incoerentes, a explosão de energia apaixonada na execução de façanhas notáveis, às quais seu nome estava associado, era seguida por reações de letargia, durante as quais se deixava ficar com seu violino e seus livros, sem se mexer, a não ser do sofá para a mesa. Assim, mês após mês, seus papéis se acumulavam, até que cada canto da sala ficava coberto de maços de manuscritos que de modo nenhum podiam ser queimados, e só o dono podia jogá-los fora.

Uma noite de inverno, quando estávamos sentados junto do fogo, aventurei-me a sugerir-lhe que, quando acabasse de colar os extratos de sua agenda, empregasse as duas horas seguintes para tornar nossa sala um pouco mais habitável. Não pôde negar a justeza de meu pedido, de modo que, com uma cara muito triste, saiu da sala, voltando logo depois arrastando uma caixa de zinco. Colocou-a no meio do assoalho e, acocorando-se num tamborete em frente dela, destapou-a. Reparei que já era a terceira de sua coleção, cheia de maços de papéis, atados com fita vermelha em pacotes separados.

— Há aqui bastantes casos, Watson — disse ele, olhando para mim com expressão maliciosa. — Creio que, se você soubesse tudo o que esta caixa contém, me pediria que tirasse alguns, em vez de guardar os outros.

— São as notas de seus principais trabalhos, então? — perguntei. — Desejei muitas vezes ter a relação desses casos.

— Sim, meu caro; foram investigados muitos anos antes de meu biógrafo aparecer para me glorificar. — E levantou pacote após pacote, num gesto de carícia quase terna. — Watson, nem todos eles foram êxitos, sabe. Mas há aqui problemas muito curiosos. Aqui está a lista dos assassínios de Tarleton, e o caso de Vamberry, o comerciante de vinho, a aventura da velha russa, o caso singular da muleta de alumínio, bem como uma narrativa completa sobre aquele Ricoletti com o pé virado para dentro e sua abominável esposa. E aqui… ah! este é realmente muito especial.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Mergulhou o braço no fundo da caixa e retirou um pequeno estojo de madeira, com tampa corrediça, como aqueles em que se guardam os brinquedos das crianças. De dentro extraiu um pedaço de papel enrugado, uma velha chave de bronze, uma pequena estaca de madeira cravada numa bola de barbante e três discos de metal velhos e enferrujados.

— Bem, meu amigo, o que faria você desta bugiganga? — perguntou ele, sorrindo de minha expressão.

— É uma coisa curiosa!

— Muito curiosa, e a história que está ligada a ela o chocará ainda mais.

— Então estas relíquias têm uma história?

— Tanto que são história.

— Que quer dizer com isso?

Sherlock Holmes olhou-as uma por uma, e espalhou-as na borda da mesa. Depois, sentou-se de novo na cadeira, examinando-as com um brilho de satisfação nos olhos.

— Isto — disse ele — é tudo o que restou para me lembrar do episódio do ritual Musgrave.

Eu o ouvira mencionar o caso mais de uma vez, embora nunca tivesse conhecido os pormenores.

— Gostaria imenso — disse eu — que me contasse o que se passou.

— E deixar a desordem como está? — exclamou maliciosamente. — Afinal, seu gosto pelo asseio não sofrerá muito, Watson. Mas ficaria contente se você acrescentasse este caso a seus anais, porque há nele pontos que o tornam totalmente único nos registros de crimes deste ou, como creio, de qualquer outro país. Uma coleção dos meus insignificantes feitos certamente ficaria incompleta se não contivesse a narrativa deste singularíssimo caso.

“Deve lembrar-se de que o caso do Gloria Scott, e minha conversa com o infortunado homem cujo destino lhe contei, foi o primeiro a encaminhar-me para a profissão que se transformou no trabalho de minha vida. Agora que meu nome se tornou amplamente conhecido, sou geralmente considerado, tanto pelo público como pela força oficial, a corte final de apelação nos casos duvidosos. Até quando me conheceu pela primeira vez, por ocasião do caso que registrou em Um estudo em vermelho, eu já estabelecera uma considerável clientela, embora não muito lucrativa. No entanto, não sabe como foi difícil a princípio, e como me custou esperar antes de ser bem sucedido.

“Quando vim pela primeira vez a Londres, tinha meus aposentos na Montague Street, exatamente na esquina do Museu Britânico, e ocupava minhas inúmeras horas de lazer no estudo de todos os ramos da ciência que pudessem tornar-me mais eficiente. Constantemente me apareciam casos, devido principalmente à indicação de meus velhos colegas de estudo, porque, durante meus últimos anos na universidade, falavam muito a meu respeito e sobre os métodos que eu empregava. O terceiro desses casos foi o do ritual Musgrave. E foi devido ao interesse suscitado por essa singular cadeia de acontecimentos e às grandes questões que entraram em jogo, que dirigi meus primeiros passos para a posição que hoje desfruto.

“Reginald Musgrave e eu freqüentáramos o mesmo curso na universidade, e mantive com ele uma amizade superficial. Não era geralmente popular entre os não-graduados, embora sempre me parecesse que sua atitude orgulhosa era, de fato, uma tentativa para encobrir sua extrema desconfiança natural. Na aparência, era um homem de tipo excessivamente aristocrático, magro, de nariz nobre e olhos grandes, maneiras lânguidas, embora corteses. Era na verdade o descendente de uma das famílias mais antigas do reino, embora viesse de um irmão mais novo que se separara dos Musgraves do norte, no século XVI, e se estabelecera no oeste de Sussex, onde o solar de Hurlstone é talvez o edifício habitado mais antigo do condado. Qualquer coisa do lugar onde nascera me pareceu retratada no homem, e nunca olhei para seu rosto pálido e vivo, ou para a posição de sua cabeça, sem associá-lo aos arcos cinzentos, às janelas de fasquias e a todos os restos veneráveis do domínio feudal. Conversávamos bastantes vezes, e recordo que mais de uma vez ele expressou interesse por meus métodos de observação e dedução.

“Ia para quatro anos que nada sabia dele, até que uma manhã entrou em minha sala da Montague Street. Estava pouco mudado, trajava-se como jovem da alta sociedade — ele fora sempre um bocado pelintra — e mantinha a mesma maneira calma e suave que anteriormente o distinguira.

“— Como vão as coisas, Musgrave? — perguntei, depois de cordialmente apertarmos as mãos.

“— Provavelmente ouviu falar da morte de meu pobre pai — respondeu. — Foi-me arrebatado, há dois anos. Desde então tenho tido, é claro, as propriedades de Hurlstone para dirigir, e também, como membro de meu distrito, levo uma vida muito ocupada; mas fui informado, Holmes, de que você está pondo em prática aqueles poderes com que nos costumava assombrar.

“— Sim — disse eu —, resolvi viver de expedientes.

“— Fico contente de ouvi-lo dizer isso, porque neste momento seu conselho me seria excessivamente valioso. Têm se passado em Hurlstone coisas muito estranhas, e a polícia não foi capaz de esclarecer o assunto. É realmente um caso extraordinário e inexplicável.

“Deve imaginar com que ansiedade o ouvia, Watson. A verdadeira oportunidade pela qual suspirara durante todos aqueles meses de inação parecia agora a meu alcance. No mais íntimo do coração, julgava poder triunfar onde outros haviam fracassado, e agora tinha ocasião de me pôr à prova.

“— Por favor, dê-me os pormenores — exclamei.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Reginald Musgrave sentou-se à minha frente e acendeu um cigarro que lhe passei.

“— Você sabe que, embora celibatário, tenho de manter um número de criados considerável em Hurlstone, que é um casarão muito vasto, que exige muito trabalho. E conservo-o também porque nos meses de caça ao faisão temos habitualmente uma festa em casa, e nessa altura não pode haver falta de pessoal. Há constantemente oito criadas, a cozinheira, o mordomo, dois lacaios e um menino. A chácara e os estábulos têm pessoal separado, evidentemente.

“Desses criados, aquele que esteve por mais tempo a nosso serviço foi Brunton, o mordomo. Era um jovem professor desempregado quando pela primeira vez foi contratado por meu pai. Mas era homem de grande energia e caráter, e logo se tornou inteiramente indispensável em casa. Tinha boa estatura, era bonito, com uma esplêndida fronte e, embora houvesse quase vinte anos que estava conosco, não podia ter mais de quarenta. Com suas vantagens pessoais e os extraordinários dons que possuía, pois sabia falar diversas línguas e tocar quase todos os instrumentos musicais, era espantoso que se contentasse por tanto tempo com tal posição. Suponho que convinha bem a seu comodismo e que lhe faltava energia para qualquer mudança. O mordomo de Hurlstone é sempre a coisa mais lembrada por todos os que nos visitam.

“Mas esse modelo tem um defeito. É um bocado dom juan, e deve imaginar que, para um homem como ele, não é um papel difícil de representar num pacato distrito do interior. Quando era casado, tudo ia muito bem. Acontece, porém, que ficou viúvo, e nossa luta com ele não tem fim. Alguns meses atrás tínhamos a esperança de que tudo se normalizasse de novo, pois ele contratou casamento com Rachel Howells, nossa segunda caseira. Mas desfez o noivado com ela e agarrou-se a Janet Tregeilis, filha do chefe dos guarda-caças. Rachel, que é muito boa moça, mas de excitável temperamento galês, sofreu um agudo ataque de febre cerebral. Passou a andar pela casa — como fez até ontem — como uma sombra, sem semelhança com o que fora. Foi nosso primeiro drama em Hurlstone, mas o seguinte atirou-o para segundo plano, e foi prenunciado pela desgraça e demissão do mordomo Brunton.

“Foi assim que aconteceu. Já lhe disse que o homem é inteligente. E essa mesma inteligência foi a causa de sua ruína. Parece que o levou a uma curiosidade insaciável, sobre coisas que não lhe diziam respeito. Eu não tinha a menor ideia do ponto a que esta o levaria, até que o mais insignificante incidente me abriu os olhos.

“Eu disse que é um casarão enorme. Certa noite da semana passada, na quinta-feira, para ser exato, descobri que não podia dormir por ter tomado imprudentemente uma xícara de café preto após o jantar. Depois de lutar contra a insônia até as duas da manhã, senti que era inteiramente inútil, de modo que me levantei e acendi a vela, com o intuito de continuar o romance que estava lendo. Entretanto, deixara o livro na sala de bilhar. Vesti meu roupão e saí para ir buscá-lo.

“Para chegar ao salão de bilhar, tinha de descer um lance de escadas e atravessar a parte da frente do corredor, que vai dar à biblioteca e à sala de armas. Pode imaginar minha surpresa quando, ao olhar para o fundo do corredor, vi o brilho de uma luz que vinha da porta aberta da biblioteca. Apaguei minha vela e fechei a porta que dá para o quarto. Naturalmente, minha primeira idéia foi que se tratava de ladrões. Os corredores de Hurlstone têm paredes decoradas com muitos troféus de velhas armas. De um desses retirei um machado de guerra e então, deixando minha vela, desci na ponta dos pés o corredor e espreitei pela porta aberta.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Brunton, o mordomo, estava na biblioteca. Achava-se sentado numa cadeira de repouso, completamente vestido, com uma tira de papel, que parecia um mapa, nos joelhos, e a fronte mergulhada na mão, em profunda meditação. Fiquei mudo de espanto, observando-o da escuridão. Uma pequena vela na borda da mesa derramava uma luz fraca, mas suficiente para mostrar que estava totalmente vestido. De repente, quando eu olhava, ele se levantou da cadeira, e, dirigindo-se a uma secretária ao lado, abriu-a e puxou uma das gavetas. Desta sacou um papel e, voltando a seu assento, inclinou-se perto da vela na borda da mesa e começou a estudá-lo com muita atenção. Minha indignação pela calma com que examinava documentos de nossa família venceu-me, de modo que dei um passo em frente, e Brunton, olhando para cima, viu-me de pé no limiar da porta. Pôs-se de pé rapidamente, com o rosto lívido de medo, e enfiou no peito o papel, semelhante a um mapa, que estivera estudando.

“— Então — disse eu —, é assim que paga a confiança que temos depositado no senhor? Pode deixar seu lugar amanhã.

“Curvou-se, com a aparência de um homem que está inteiramente esmagado, e saiu sem uma palavra. A vela ficou ainda na mesa, e assim consegui ver o papel que Brunton tirara da secretária. Para minha surpresa, não tinha qualquer importância. Era simplesmente uma cópia das perguntas e respostas da velha observância chamada “ritual Musgrave”. É uma espécie de cerimônia peculiar de nossa família, que cada Musgrave, por séculos, tem repetido quando chega à maioridade. . . uma coisa de interesse privado, e talvez de pouca importância até para o arqueólogo, assim como nossos brasões e armas, sem nenhum outro uso prático.

“— Voltaremos ao papel depois — disse eu.

“— Se acha realmente necessário — respondeu Musgrave, com certa hesitação. Então, continuando a narrativa, abri a secretária servindo-me da chave que Brunton deixara, e estava quase voltando para o quarto quando descobri que o mordomo regressara e estava de pé diante de mim.

“— Sr. Musgrave — exclamou ele numa voz rouca de emoção —, não posso tolerar a desgraça. Fui sempre orgulhoso, mais do que permite minha condição, e a desgraça me mataria. Meu sangue cairá sobre sua cabeça… cairá, na verdade… se me lançar no desespero. Se não pode me conservar depois do que se passou, então, pelo amor de Deus, deixe-me pedir-lhe a demissão e sair dentro de um mês, como se fosse de minha livre vontade. Poderei enfrentar isso, sr. Musgrave, mas não ser despedido diante de toda a gente que conheço tão bem.

“— Não merece muita consideração, Brunton — respondi. — Sua conduta foi muito infame. Todavia, está há muito tempo na família, e não desejo tornar pública sua desgraça. No entanto, um mês é muito. Demita-se dentro de uma semana, e dê a razão que quiser para sua demissão.

“— Somente uma semana, senhor? — gritou com voz desesperada. — Uma quinzena, diga pelo menos uma quinzena.

“— Uma semana — repeti —, e pode julgar-se tratado com muita indulgência.

“Ele arrastou-se para fora, cabisbaixo, como um homem angustiado, enquanto eu apagava a luz e voltava ao quarto.

“Durante dois dias Brunton foi muito aplicado no desempenho de seus deveres. Não fiz nenhuma alusão ao que se passara, e esperei, com certa curiosidade, para ver como iria ocultar sua desgraça. Na terceira manhã, ele não apareceu como de costume, depois da refeição matinal, para receber minhas instruções para o dia. Quando deixei a sala de jantar, aconteceu-me encontrar Rachel, a criada. Já lhe disse que ela se restabelecera havia pouco tempo de uma doença, e parecia tão pálida e lívida que a censurei por andar trabalhando.

“— Você devia estar na cama — disse-lhe. — Volte às suas obrigações quando estiver mais forte.

“Ela olhou para mim com uma expressão tão estranha que comecei a suspeitar que seu cérebro estivesse afetado.

“— Estou bastante forte, sr. Musgrave — disse ela.

“— Veremos o que diz o médico — respondi. — Você agora vai deixar de trabalhar, e quando descer diga que quero ver Brunton.

“— O mordomo foi-se embora — respondeu.

“— Foi? Para onde?

“— Foi-se embora. Ninguém o viu. Não está no quarto. Oh, sim, foi-se, foi-se! — Caiu contra a parede com acessos de riso, enquanto eu, horrorizado com aquele repentino ataque histérico, toquei a campainha para pedir auxílio. A moça foi reconduzida a seu quarto gritando e soluçando, enquanto eu fazia inquérito a respeito de Brunton. Não restava dúvida de que desaparecera. Sua cama não fora usada, não fora visto desde a noite anterior, quando se retirou para seus aposentos, e, todavia, era difícil saber como podia ter deixado a casa com todas as portas e janelas encontradas fechadas de manhã. Suas roupas, relógio e dinheiro estavam no quarto — mas o traje preto, que costumava usar, desaparecera. Os chinelos também faltavam, mas não as botas. Aonde poderia o mordomo ter ido durante a noite, e o que lhe poderia ter acontecido?

“É claro que revistamos a casa toda, mas não existia nenhum vestígio do homem. E, como disse, há o labirinto de uma casa antiga, especialmente a ala primitiva, que está agora praticamente desabitada. Mas foi examinado quarto por quarto até o sótão, sem se encontrar sinal do desaparecido. Era incrível que fugisse deixando toda a bagagem, mas onde estava ele? Chamei a polícia local, mas sem resultado. A chuva caíra durante a noite anterior, e examinamos o jardim e os caminhos em redor da casa, mas em vão. O assunto estava nesse estado quando um novo acontecimento afastou inteiramente nossa atenção do mistério original.

“Durante dois dias, Rachel permaneceu doente. Algumas vezes com delírio, outras, com histerismo. Arranjou-se uma enfermeira para passar a noite com ela. Na terceira noite depois do desaparecimento de Brunton, a enfermeira, julgando que a doente estivesse repousando, adormeceu na poltrona. Quando acordou de manhã cedo, viu o leito vazio, a janela aberta, e nenhum sinal da moça. Fui imediatamente acordado e, com os dois lacaios, saí à procura da jovem. Não foi difícil saber a direção que tomara, porque, partindo-se de sob a janela, podíamos seguir-lhe as pisadas facilmente através do bosque até a beira da lagoa, onde desapareciam, rente ao caminho encascalhado que segue em direção aos campos. A lagoa tem dois metros e meio de profundidade, e imagine o que sentimos quando vimos que o rasto da pobre demente terminava ali.

“Fomos buscar os ganchos, e imediatamente nos pusemos a trabalhar para encontrar seus restos; mas nada descobrimos. Por outro lado, trouxemos à superfície um objeto da mais inesperada espécie. Era um saco de linho, contendo uma grande quantidade de metal antigo, enferrujado e descolorido, e diversos pedaços de seixos ou vidros opacos e sem cor. Esse estranho achado foi tudo o que pudemos retirar da lagoa, e, embora ontem fizéssemos todas as pesquisas e investigações possíveis, não sabemos coisa alguma do destino de Rachel Howells nem de Richard Brunton. A polícia do condado já não sabe mais o que fazer, e eu venho ter com você como último recurso.’

“Pode imaginar, Watson, com que ansiedade ouvi essa extraordinária seqüência de acontecimentos, e como me esforcei para juntá-los e descobrir uma linha comum que os explicasse.

“O mordomo fora-se. A criada, também. Ela amava o mordomo, mas depois tivera motivos para odiá-lo. Rachel era de sangue galês, furioso e apaixonado. Ficara terrivelmente excitada logo após o desaparecimento dele. Atirou ao lago um saco que continha algumas coisas curiosas. Foram esses todos os fatores que tive de levar em consideração, e todavia nenhum deles atingia perfeitamente o âmago do assunto. Qual seria o ponto de partida dessa cadeia de acontecimentos? Aí é que estava o nó do problema.

“— Preciso ver, Musgrave — disse eu —, aquele papel que seu mordomo julgava valer a pena consultar, até mesmo sob o risco de perder o emprego.

“— É uma coisa muito absurda, esse nosso ritual — respondeu ele. — Todavia, tem o encanto da antigüidade para desculpá-lo. Tenho aqui uma cópia das perguntas e respostas, se quiser dar um vista de olhos.

“E passou-me este mesmo papel que aqui tenho, Watson, e é este o estranho catecismo a que cada Musgrave tinha de se submeter quando chegasse à maioridade.

“Vou citar as perguntas e respostas, tais como estão registradas:

“— De quem era?

— De quem morreu.

— Quem a terá?

— Quem vier.

— Qual era o mês?

— O sexto desde o primeiro.

— Onde estava o sol?

— Lá no carvalho.

— Onde estava a sombra?

— Debaixo do olmo.

— Como se andava?

— Norte dez e dez, leste cinco e cinco, sul dois e dois, oeste um e um, e então embaixo.

— O que daremos por ela?

— Tudo o que é nosso.

— Por que devemos dar-lhe?

— Por causa da confiança.’

“— O original não tem data, mas tem a ortografia dos meados do século XVII — observou Musgrave. — Receio, todavia, que seja de pouco valor para você resolver este problema.

“— Pelo menos — respondi —, ele nos apresenta outro mistério, e mais interessante que o primeiro. Pode ser que a solução de um seja a solução do outro. Há de me desculpar, Musgrave, se disser que seu mordomo parece ter sido um homem muito inteligente, e deve ter tido uma intuição mais lúcida que dez gerações de seus amos.

“— Não o compreendo — disse Musgrave. — O papel parece-me sem a menor importância prática.

“— Mas a mim parece-me imensamente prático, e penso que Brunton tinha a mesma opinião. Provavelmente vira-o antes daquela noite em que você o apanhou.

“— É muito possível. Não tínhamos o menor cuidado em escondê-lo.

“— Ele simplesmente queria, segundo creio, avivar a memória nessa última ocasião. Tinha, como entendo, uma espécie de mapa ou carta que estava comparando com o manuscrito, e que meteu no bolso quando você apareceu?

“— Exatamente. Mas que relação poderia ter com este costume antigo da família, e o que significa esta embrulhada?

“— Não me parece muito difícil descobri-lo — respondi. — Com sua permissão, tomaremos o primeiro trem para Sussex e estudaremos um pouco mais o caso no próprio local.

“Nessa mesma tarde, estivemos ambos em Hurlstone. Possivelmente você já viu retratos e leu descrições dos famosos edifícios antigos. Portanto, limitar-me-ei a dizer que é uma construção em forma de L, sendo o braço mais comprido a parte mais moderna, e o mais curto, o núcleo antigo de onde o outro partiu.

“Embaixo, sobre a pesada porta com verga, no centro dessa parte antiga está esculpida a data 1607, mas os peritos concordam em que as obras de madeira e de pedra são realmente muito mais antigas. As paredes bem grossas e as janelas estreitas dessa parte da casa tinham impelido a família para o edifício da ala nova, e a velha servia então de armazém e de adega, quando era preciso. Um esplêndido parque com um bonito bosque antigo rodeava a casa, e o lago, a que o meu cliente fizera referência, ficava perto da alameda, a cerca de cento e oitenta metros do edifício.

“Eu já estava firmemente convencido de que não havia três mistérios isolados, mas um só, e que, se pudesse ler corretamente o ritual Musgrave, teria na mão o indício que me levaria à verdade, tanto no que se referia ao mordomo Brunton como à criada Rachel Howells. A esse, então, dediquei todas as minhas energias. Por que estaria ansioso esse criado por decifrar aquela velha fórmula? Evidentemente, porque via alguma coisa nela que escapou a todas as gerações dos cavalheiros do condado, e de que ele esperava vantagem pessoal. O que era, então, e como lhe afetou o destino?

“Era-me perfeitamente claro na leitura do ritual que as medidas deviam referir-se a algum lugar a que aludia o resto do documento, e que, se pudesse descobri-lo, estaria no caminho certo para conhecer o segredo que os antigos Musgraves tinham julgado necessário perpetuar de maneira tão curiosa. Havia duas balizas para começar, um carvalho e um olmo. Quanto ao carvalho, não podia haver nenhuma dificuldade. Bem em frente da casa, do lado esquerdo da estrada, permanecia um patriarca entre os carvalhos, uma das árvores mais esplêndidas que já vi.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“— Estaria aqui quando o ritual foi escrito? — perguntei quando passamos por ela.

“— Estava aqui quando da conquista normanda, com certeza — respondeu ele. — Tem uma circunferência de sete metros.

“Eu já determinara um dos meus pontos fixos.

“— Você tem algum olmo velho? — perguntei.

“— Havia um muito antigo lá adiante, mas foi queimado por um raio há dez anos atrás e cortamos seu tronco.

“— Sabe onde estava?

“— Oh, sim.

“— Não havia outros olmos?

“— Nenhum antigo, mas uma quantidade de faias.

“— Gostaria de ver onde aquele cresceu.

“Tínhamos vindo num carro de duas rodas, e nele fomos imediatamente, sem entrarmos em casa, a uma rocha solitária no bosque onde o olmo estava. Era quase meio caminho entre o carvalho e a casa. Minha investigação parecia progredir.

“— Suponho que é impossível saber qual a altura do olmo? — perguntei.

“— Posso dá-la imediatamente. Era de dezenove metros e meio.

“— Como veio a saber? — perguntei com surpresa.

“— Quando meu velho preceptor costumava dar-me exercícios de trigonometria, tomava sempre medidas de altura como exemplo. Em rapaz, lidei com todas as árvores e edifícios da propriedade.

“Isto era um golpe inesperado de sorte. Meus dados vinham mais rapidamente do que eu podia razoavelmente esperar.

“— Diga-me — perguntei —, seu mordomo fez-lhe alguma vez semelhante pergunta?

“Reginald Musgrave olhou para mim com espanto.

“— Agora que você fala nisso — respondeu —, recordo que me perguntou a altura da árvore alguns meses antes, devido a uma pequena discussão com o homem da cavalariça.

“Foi uma excelente notícia, Watson, porque me mostrou que estava no caminho certo. Olhei para o sol. Começava a cair, e calculei que em menos de uma hora cairia justamente em cima dos galhos mais altos do velho carvalho. Uma condição mencionada no ritual se cumpriria então. E a sombra do olmo devia significar o extremo mais adiante da sombra, do contrário o tronco teria sido escolhido como baliza. Deveria descobrir então onde cairia a extremidade distante da sombra quando o sol incidisse exatamente no carvalho.”

— O que deve ter sido difícil, Holmes, pois o olmo já não estava lá.

— Eu pelo menos sabia que, se Brunton pudera fazê-lo, eu também o poderia. Fui com Musgrave a seu escritório e preparei este bastão, ao qual atei este comprido cordel, fazendo um nó a cada metro. Então tomei dois comprimentos de uma vara de pescar, o que deu justamente um metro e oitenta, e voltei com meu cliente ao local onde o olmo existira. O sol estava roçando exatamente a copa do carvalho. Amarrei a vara numa extremidade, marquei a direção da sombra, medindo-a em seguida. Era de dois metros e setenta de comprimento. O cálculo era agora muito simples. Se uma vara de um metro e oitenta projeta uma sombra de dois metros e setenta, uma árvore de dezenove metros e meio projetaria uma sombra de vinte e nove metros, e a linha de uma seria por certo a linha da outra. Medi-lhe a distância, o que me levou quase à parede da casa, e finquei uma estaca no lugar. Deve imaginar minha exultação, Watson, quando a cerca de cinco centímetros de minha estaca vi uma depressão cónica no chão. Descobri que era a marca que Brunton fizera quando de suas medidas, e que portanto eu estava em sua pista.

“Desse ponto de partida continuei a andar, tomando primeiro os pontos cardeais com uma bússola de bolso. Dez passos de trinta centímetros cada um levaram-me ao paralelo da parede da casa, e marquei de novo o lugar com uma estaca. Então contei cuidadosamente cinco passos para leste, e dois para o sul. E cheguei ao limiar da porta antiga. Um passo para oeste significava agora que eu tinha de descer a passagem de uma laje, o lugar indicado pelo ritual.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Nunca senti semelhante arrepio de desapontamento, Watson. Por um momento pareceu-me que devia haver um engano radical em meus cálculos. O sol brilhava em cheio sobre o soalho da passagem; pude ver que as pedras com que era pavimentado, cinzentas e gastas pelas pisadas, estavam firmemente unidas por cimento, e certamente há muitíssimos anos não eram removidas. Brunton não trabalhara ali. Bati no chão, mas por toda parte soava o mesmo ruído, e não havia nenhum sinal de fenda ou greta. Mas, por felicidade, Musgrave, que estava tão excitado como eu, tirou seu manuscrito para comparar meus cálculos.

“— É embaixo! — gritou. — Você omitiu o ‘embaixo’.

“— Supunha que isso significasse que tínhamos de cavar, mas percebo que estava errado. Há uma adega embaixo, então? — indaguei.

“— Sim, e tão antiga como a casa. Aqui embaixo, por esta porta.

“Descemos uma escada de pedra em espiral, e meu companheiro, riscando um fósforo, acendeu um grande lampião que estava em cima de uma barrica ao canto. Ficou logo evidente que tínhamos chegado ao verdadeiro lugar, e que não tínhamos sido as únicas pessoas a visitá-lo recentemente.

“Fora usado para depósito de madeira, mas a lenha que estivera espalhada no chão estava agora empilhada ao lado, de modo a deixar um espaço claro no meio. Nesse espaço jazia uma laje enorme e pesada, com um anel de ferro enferrujado ao centro, no qual um capuz de pastor estava arrumado.

“— Por Júpiter! — gritou Musgrave. — É o cachecol de Brunton. Eu o vi com ele, posso jurar. O que estaria o bandido fazendo aqui?

“Por minha sugestão, foram chamados dois policiais do condado para presenciarem a cena, e então esforcei-me por levantar a pedra, puxando-a pelo cachecol. Apenas podia mexê-la de leve, e foi com o auxílio de um dos policiais que consegui finalmente colocá-la de lado. Um buraco escuro escancarou-se debaixo dela, pelo qual todos olhamos para dentro, enquanto Musgrave, ajoelhado ao lado, atiçou o lampião.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Uma pequena câmara de cerca de dois metros e dez de profundidade e um metro e vinte de diâmetro se escancarava diante de nós. De lado estava uma caixa de madeira chata guarnecida de zinco, cuja tampa era trancada na parte de cima com esta chave curiosa, de tipo antigo, projetando-se da fechadura. Estava guarnecida na parte de fora por uma espessa camada de ferro, e a umidade e os carunchos tinham comido toda a madeira, de modo que uma cultura de fungos vivos ia crescendo do lado de dentro. Diversos discos de metal, moedas aparentemente antigas, tais como as que seguro aqui, estavam espalhadas por todo o fundo da caixa, mas ela não continha mais nada.

“Nessa altura, não pensamos mais na velha caixa, porque nossos olhos se cravaram no que estava ao lado dela. Era a figura de um homem vestido de preto, acocorado sobre as nádegas, com a fronte mergulhada na beira da caixa e os braços estendidos abraçando-lhe ambos os lados. Essa postura tinha-lhe trazido ao rosto todo o sangue estagnado, e ninguém poderia reconhecer aquela fisionomia disforme, de cor de fígado. Mas a estatura, a roupa e os cabelos eram suficientes para mostrar a meu cliente, quando o corpo foi levantado, que era na verdade seu mordomo desaparecido. Morrera havia alguns dias, mas não apresentava nenhum ferimento ou contusão no corpo que mostrasse como encontrara seu terrível fim. Quando foi removido da adega, estávamos perante um novo problema, quase tão impressionante como aquele com que tínhamos iniciado.

“Confesso, Watson, que até eu estava desapontado com minha investigação. Imaginara resolver o assunto assim que encontrasse o lugar referido no ritual; mas agora estava ali, aparentemente longe de saber o que a família escondera com semelhantes precauções. É verdade que havia descoberto o destino de Brunton, mas não esclarecera como lhe sobreviera esse destino, e qual a parte desempenhada no assunto pela mulher que desaparecera. Sentei-me num barril ao canto e pensei em todo o caso com muito cuidado.

“Você conhece meus métodos em tais circunstâncias, Watson. Coloquei-me no lugar do homem. E, depois de avaliar sua inteligência, tentei imaginar como eu teria agido em circunstâncias semelhantes. Nesse caso, a tarefa foi simplificada pela inteligência de Brunton, que era de primeira classe, de modo que era desnecessário fazer qualquer concessão de equação pessoal, como dizem os astrônomos. Ele sabia que alguma coisa de valor estava escondida. Marcara o lugar. Sabia que a pedra que a cobria era muito pesada para que um homem, sem auxílio, a removesse. O que faria então? Podia procurar auxílio de fora se tivesse alguém em quem pudesse confiar, mas teria que tirar as trancas das portas, com um considerável risco de ser descoberto. Era melhor, se pudesse, encontrar auxílio dentro de casa. No entanto, a quem poderia solicitá-lo? Àquela jovem que lhe fora devotada. O homem dificilmente admite ter perdido o amor de uma mulher, por pior que a tenha tratado. Tentaria com pequenas provas de atenção fazer as pazes com a jovem Howells e então a usaria como cúmplice. À noite, desceriam juntos à adega, e a força de ambos seria suficiente para levantar a pedra. De forma que pude seguir-lhe os passos todos como se realmente os tivesse acompanhado.

“Mas para duas pessoas só, das quais uma era mulher, devia ser uma tarefa difícil levantar a pedra. Um corpulento policial de Sussex e eu não a achamos assim tão fácil. Levantei-me e examinei cuidadosamente as diferentes achas de lenha que estavam espalhadas no chão. Encontrei rapidamente o que procurava. Um pedaço, com cerca de noventa centímetros de comprimento, estava todo denteado na extremidade, e achatado de um lado, como se tivesse sido comprimido por um peso considerável. Era evidente que, quando levantaram a pedra, lançaram o pau na fenda, até que por fim, quando a abertura se tornara suficientemente grande para se passar por ela, mantiveram-na aberta por meio de uma tora colocada ao comprido, que podia muito bem ficar cheia de dentes na parte inferior, desde que todo o peso da pedra fizesse pressão para baixo na borda da outra laje. Até ali, eu estava em terra firme.

“E depois, como deveria proceder para reconstituir aquele drama da meia-noite? É claro que só uma pessoa podia entrar no buraco: Brunton. A moça devia esperar em cima. Brunton destrancou então a caixa, mandou para cima seu conteúdo, — visto que não foi achado —, e então o que aconteceu?

“Que ardente fogo de vingança não teria repentinamente explodido em chamas na alma daquela apaixonada celta quando viu o homem que lhe fizera mal — talvez a tivesse prejudicado mais do que nos é possível suspeitar — em seu poder? Seria por um acaso que o pau escorregou e a pedra fechou Brunton no que veio a ser seu sepulcro? Ela seria apenas culpada do silêncio quanto à sua sorte? Ou teria um golpe repentino de sua mão retirado o suporte, deixando a pedra deslizar para seu lugar?

“Seja o que for, parece-me ver aquela figura de mulher, agarrada ao tesouro achado, voando pela escada em caracol com os ouvidos a zumbir devido aos gritos ensurdecedores que deixava para trás e ao tamborilar de mãos frenéticas contra a laje de pedra, que abafava a vida do amante infiel.

“Eis o segredo do rosto pálido, dos nervos descontrolados, das risadas histéricas na manhã seguinte. Mas o que haveria na caixa? E o que fez ela disso? Naturalmente, era o metal velho e as pedras que meu cliente retirara da lagoa. Atirou-os para lá na primeira oportunidade para remover o último vestígio de seu crime.

“Durante vinte minutos fiquei sentado, imóvel, pensando no assunto. Musgrave estava com o rosto muito pálido, agitando a lanterna e olhando para o fundo da adega.

“— São moedas de Carlos I — disse ele, retirando algumas que haviam ficado na caixa. — Bem vê que estávamos certos quanto à data do ritual.

“— Podemos encontrar qualquer coisa mais de Carlos I — disse eu, quando o significado provável das duas primeiras perguntas do ritual me irrompeu de repente: — Deixe-me ver o conteúdo do saco que pescou na lagoa.

“Subimos a seu escritório e ele espalhou os restos diante de mim. Ao olhá-los, compreendi que poderiam ser considerados de pouca importância, pois o metal estava quase preto e as pedras, sem brilho. Esfreguei uma delas em minha manga, e brilhou imediatamente como uma centelha na concha de minha mão. O metal tinha a forma de um anel duplo, mas fora muito retorcido, alterando-se assim sua forma original.

“— Você deve recordar-se — disse eu — que os partidários do rei mantiveram-se na Inglaterra mesmo depois da morte do rei, e, quando por fim fugiram, deixaram provavelmente muitas de suas preciosas posses sepultadas com a intenção de vir buscá-las em épocas mais pacíficas.

“— Meu antepassado, Sir Ralph Musgrave, era um cavalheiro e o braço direito de Carlos II — disse meu amigo.

“— Ah, muito bem — respondi. — Suponho que agora temos realmente o último elo de que precisávamos. Devo felicitá-lo por entrar na posse, ainda que de maneira muito trágica, de uma relíquia de grande valor intrínseco, mas ainda de maior importância como curiosidade histórica.

“— Qual é então? — perguntou com espanto.

“— Nada menos que a antiga coroa dos reis de Inglaterra.

“— A coroa!

“— Precisamente. Considere o que diz o ritual. Como reza? ‘De quem era?’ ‘De quem morreu.’ Foi depois da execução de Carlos I. ‘Então de quem será?’ ‘De quem vier.’ Trata-se de Carlos II, cujo advento já era previsto.

Creio que não pode haver dúvida de que este diadema arruinado e já sem forma coroou um dia a fronte dos reais Stuarts.

“— E como veio parar aqui? Como ficou escondido?

“— Oh, esta é uma pergunta que levará algum tempo a responder. — Então, expliquei toda a longa cadeia de hipóteses e provas que construíra. O crepúsculo findava e a lua brilhava intensamente antes de eu concluir minha narrativa.

“— E por que Carlos II não conseguiu reaver sua coroa quando regressou? — perguntou Musgrave, colocando a relíquia no saco.

“— Ah! Este é o ponto que possivelmente não poderemos nunca esclarecer. É provável que o Musgrave detentor do segredo tivesse morrido no intervalo, e deixasse por descuido este regulamento ao descendente sem lhe explicar o significado. Desde essa época até hoje, tem sido transmitido de pai para filho, até que chegou ao alcance de um homem que lhe desvendou o segredo e morreu na aventura.

“Esta é a história do ritual Musgrave, Watson. Eles têm agora a coroa em Hurlstone — embora tivessem encontrado certa dificuldade legal e devessem pagar uma soma considerável antes que lhes fosse permitido conservá-la. Estou certo de que, se mencionar meu nome, eles terão o maior prazer em mostrá-la a você. Da mulher nada mais se soube, e é provável que houvesse deixado a Inglaterra, levando a recordação de seu crime para o além-mar.”

[1] Iniciais de Victoria Regina, aludindo-se à rainha Vitória. (N. do T.)

1894
Memórias de Sherlock Holmes

1. Estrela de Prata § 2. A caixa de papelão
3. A face amarela § 4. O escriturário da corretagem
5. A tragédia do “Gloria Scott” § 6. O ritual Musgrave
7. O enigma de Reigate § 8. O corcunda
9. O paciente internado § 10. O intérprete grego
11. O tratado naval § 12. O problema final

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock