O cão dos Baskervilles – Capítulo 3

Arthur Conan Doyle

O cão dos Baskervilles
Capítulo terceiro

Título original: The Hound of the Baskervilles
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1901-02.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Hound of the Baskervilles publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume IV,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Lígia Junqueiro.

Capítulo terceiro: O problema

Confesso que, ao ouvir aquelas palavras, um calafrio me percorreu o corpo. Havia uma vibração na voz do médico que indicava que ele estava profundamente emocionado com o que nos contara. Holmes inclinou-se para a frente, excitado. Os seus olhos tinham o brilho duro e seco que neles surgia quando estava profundamente interessado.

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— O senhor viu isso?

— Tão claramente como o vejo agora.

— E não disse nada?

— Que adiantava?

— Como é que ninguém mais notou?

— As marcas estavam a vinte pés do corpo e ninguém lhes deu atenção. Não creio que eu também tivesse ligado ao fato, se não conhecesse a lenda.

— Há muitos cães pastores na charneca?

— Sem dúvida, mas aquele não era um cão pastor.

— O senhor disse que era muito grande? Enorme.

— Mas não se aproximou do corpo?

— Não.

— Como estava a noite?

— Úmida e fria.

— Mas não chovia?

— Não.

— Como é essa alameda?

— Há duas fileiras de velhos teixos que formam urna sebe de quatro metros de altura, alta e impenetrável. O caminho, ao centro, tem quase três metros de largura.

— Há alguma coisa entre as shes e o caminho?

— Sim, há, de cada lado, uma faixa de relva de mais ou menos dois metros de largura.

— Pelo que ouvi, há um portão nessa sebe?

— Sim, um portão de vime, que dá para o campo.

— Há outra entrada?

— Não, não há.

— De modo que quem quiser entrar na Alameda de Teixos tem de vir da casa ou passar pelo portão?

— Há uma saída pela estufa, no fim da alameda.

— Sir Charles chegara até lá?

— Não; estava ainda a cinquenta metros dali.

— Diga-me agora, dr. Mortimer (e isto é importante): as marcas estavam na areia ou na relva?

— Nenhuma marca era visível na relva.

— As marcas estavam no mesmo lado do portão que dá para o campo?

— Sim, estavam.

— Isso me interessa muito. Outra coisa: o portão estava fechado?

— Fechado com cadeado.

— Que altura tem?

— Mais ou menos um metro e trinta.

— Então, qualquer pessoa poderia pular por cima dele.

— Poderia.

— E que marcas viu perto do portão?

— Nenhuma marca especial.

— Deus do céu! Ninguém examinou?

— Sim, eu próprio examinei.

— E não encontrou nada?

— Era tudo muito confuso. Evidentemente, Sir Charles estivera ali parado durante cinco ou dez minutos.

— Como sabe disso?

— Porque a cinza do cigarro dele caíra duas vezes no chão.

— Bravo! Aqui ternos um colega, e dos bons, Watson. Mas as marcas?

— Ele deixou marcas na areia, mas não vi outras. Sherlock Holmes bateu com a mão no joelho, Com um gesto impaciente.

— Se ao menos eu tivesse estado lá! — exclamou. — Não há dúvida de que é um caso extraordinário, que apresenta imensas oportunidades ao perito. Aquela página de areia, onde eu poderia ter lido tanta coisa, foi manchada pela chuva e deformada pelos tamancos de camponeses curiosos. Oh, dr. Mortimer, dr. Mortimer, e pensar que não me chamou! O senhor tem realmente contas a prestar.

— Não poderia chamá-lo, Sr. Holmes, sem revelar ao mundo esses fatos, e já lhe expus as razões para a minha mineira de agir. Além disso…

— Por que hesita?

— Existe um reino onde o mais astuto e o mais experiente dos detetives é impotente.

— O senhor quer dizer que se trata de algo de sobrenatural?

— Não disse isso.

— Não disse, mas evidentemente é o que pensa.

— Depois da tragédia, Sr. Holmes, tenho ouvido falar de vários incidentes, que mal podem ser considerados naturais.

— Por exemplo?

— Soube que, antes do acontecimento, várias pessoas viram na charneca uma criatura cuja descrição corresponde à do demônio de Baskerville e que não pode ser nenhum animal conhecido da ciência. Estão todos de acordo em que se trata de um ser enorme, luminoso, assustador e espectral. Interroguei aqueles homens, um aldeão inteligente, um ferreiro e um fazendeiro da charneca, e todos contam a mesma história a respeito da terrível aparição, que corresponde exatamente ao cão fantasma da lenda. Posso lhe garantir que há uma onda de terror no distrito, e que bem corajoso pode ser considerado o homem que atravessar o campo à noite.

— E o senhor, cientista experiente, acredita que seja algo de sobrenatural?

— Não sei o que pensar.

Holmes encolheu os ombros.

— Até hoje, as minhas investigações limitaram-se a este mundo — disse ele. — De maneira modesta, tenho combatido o mal, mas talvez seja ambição excessiva desafiar o pai do mal. Apesar disso, o senhor tem de admitir que a pegada é material.

— O primeiro cão foi suficientemente material para rasgar a garganta de um homem e, ao mesmo tempo, bastante diabólico.

— Vejo que o senhor passou para o campo dos sobre-naturalistas. Mas agora, dr. Mortimer, diga-me uma coisa. Se o senhor tem essas ideias, por que veio consultar-me? Diz que é inútil investigar a morte de Sir Charles, e, ao mesmo tempo, deseja que eu o faça.

— Não disse que desejava que o senhor a investigasse.

— Então, de que maneira lhe posso ser útil?

— Aconselhando-me sobre o que devo fazer com Sir Henry Baskerville, que chega hoje à Estação Waterloo.

— O dr. Mortimer consultou o relógio — exatamente dentro de uma hora e quinze.

— É ele o herdeiro?

— Sim. Após a morte de Sir Charles, procuramos o rapaz e descobrimos que vivia numa fazenda no Canadá. Pelas notícias que nos chegaram, é ótima pessoa. Falo agora não como médico e sim como inventariante de Sir Charles.

— Não há outro pretendente, creio eu.

— Nenhum. O único outro parente de que ouvimos falar é Rodger Baskerville, o mais novo dos três irmãos, sendo Sir Charles o mais velho. O segundo, que morreu jovem, é o pai do atual herdeiro, Henry. O terceiro, Rodger, era a ovelha negra da família. Tinha as características dos antigos Baskervilles e era, pelo que apurei, o retrato do velho Hugo. Como era perigoso para ele continuar na Inglaterra, fugiu para a América Central, onde morreu de febre amarela, em 1876. Henry é o último dos Baskervilles. Dentro de uma hora e cinco minutos, vou encontrá-lo na Estação Waterloo. Recebi um telegrama, avisando que ele chegaria a Southampton hoje de manhã. Agora, sr. Holmes, que me aconselha?

— Por que ele não há de ir para a mansão dos seus antepassados?

— É o que parece lógico, não é? Apesar disso, note que todos os Baskervilles que vão para lá encontram morte trágica. Tenho certeza de que, se Sir Charles tivesse podido falar comigo antes de morrer, teria me prevenido para não levar o último da sua estirpe, e herdeiro de uma grande fortuna, para aquele lugar fatídico. E, no entanto, não se pode negar que a prosperidade daquela pobre região depende da sua presença. A benéfica obra de Sir Charles cairá por terra, se não houver um morador em Baskerville. Receei, no entanto, deixar-me influenciar pelo meu interesse no assunto, e por isso vim pedir-lhe conselho.

Holmes refletiu durante alguns segundos.

— Falando claramente, na sua opinião há um agente diabólico que faz com que Dartmoor seja uma residência insegura para um Baskerville, não é?

— Pelo menos, aventuro-me a dizer que há indícios de que assim seja.

— Exatamente. Mas, se a sua teoria sobrenatural está correta, não há dúvida de que o tal agente poderia causar dano ao rapaz, tanto em Londres como em Devonshire.

— Não se pode conceber um demônio que só tenha poder local.

— O senhor trata do assunto com uma petulância, Sr. Holmes, que certamente não usaria se tivesse tido contato direto com essas coisas. Na sua opinião, ao que me parece, o rapaz estará tão seguro em Devonshire como em Londres. Ele chega dentro de cinquenta minutos. Que me aconselha?

— Aconselho-o a tomar um carro, chamar o seu cão, que está arranhando a minha porta, e dirigir-se para Waterloo, ao encontro de Sir Henry.

— E então?…

— E então não lhe deve dizer nada, até eu ter tomado uma resolução.

— Quanto tempo levará para tomar essa resolução?

— Vinte e quatro horas. Gostaria que amanhã às dez horas o senhor tivesse a gentileza de vir procurar-me aqui, e seria vantajoso para os meus planos futuros que Sir Henry Baskerville o acompanhasse.

— Plenamente de acordo, sr. Holmes.

O dr. Mortimer tomou nota no punho da camisa e saiu apressadamente, com aquele seu jeito estranho, furtivo e distraído. Holmes deteve-o, no alto da escada.

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— Mais uma pergunta, dr. Mortimer. O senhor disse que, antes da morte de Sir Charles, várias pessoas viram a aparição na charneca?

— Três pessoas a viram.

— Alguma a viu depois?

— Não, que eu saiba.

— Obrigado. Até amanhã.

Holmes voltou ao seu lugar com aquela expressão calma, de íntima satisfação, de quem tem diante de si tarefa a seu gosto.

— Vai sair, Watson?

— Sim, a não ser que possa lhe ser útil.

— Não, caro amigo, é na hora de agir que preciso do seu auxílio. Mas isso é esplêndido, é único, sob vários aspectos. Quando passar por Bradley’s, quer fazer o favor de pedir que me mandem uma libra do mais forte tabaco que tiverem? Obrigado. Seria preferível que você não voltasse antes da noite. Terei então muito prazer em comparar as nossas impressões sobre o interessantíssimo problema que nos foi apresentado na manhã de hoje.

Eu sabia que o meu amigo necessitava de solidão e sossego, nessas horas de intensa concentração mental em que pesava todos os indícios, construía teorias alternativas, comparava uma com a outra e decidia quais os pontos essenciais e quais os sem importância. Portanto, passei o dia no clube e não voltei à Baker Street a não ser à noite. Eram nove horas quando de novo me vi na sala de Holmes.

A minha primeira impressão, quando entrei, foi de que a casa pegara fogo, pois a sala estava cheia de fumaça que semiocultava o candeeiro que estava sobre a mesa. Verifiquei que os meus receios não tinham fundamento, pois a fumaça era de tabaco forte, que me fez tossir. Através da névoa, distingui vagamente Holmes, de roupão, encolhido numa poltrona, com um cachimbo negro na boca. Vários rolos de papel estavam espalhados à sua volta.

— Constipou-se, Watson?

— Não, é esta atmosfera envenenada que me faz tossir.

— Realmente está pesada; agora que você me chamou atenção é que dei por isso.

— Pesada? Intolerável!

— Pois então abra a janela. Vejo que passou o dia no clube.

— Caro Holmes!

— Acertei?

— Sem dúvida, mas… ?

Ele riu da minha expressão atônita.

— Há em você um delicioso frescor, Watson, que faz com que seja um prazer exercitar, à sua custa, os pequeninos dons que possuo. Um cavalheiro sai de casa num dia chuvoso e nublado. Volta, à noite, com o chapéu e os sapatos ainda reluzentes. Esteve, portanto, dentro de casa todo o dia. Não é homem que tenha amigos íntimos. Onde, então, poderá ter estado? Não é óbvio?

— Sem dúvida, é óbvio.

— O mundo está cheio de coisas óbvias, que ninguém observa. Onde pensa que estive?

— Em casa, também.

— Pelo contrário, estive em Devonshire.

— Em espírito?

— Exatamente. O meu corpo ficou aqui nesta poltrona e, infelizmente, consumiu na minha ausência dois grandes bules de café e urna incrível quantidade de tabaco. Depois que você saiu, mandei buscar o mapa da região onde fica a charneca, e o meu espírito por ali pairou o dia todo. E sem modéstia que afirmo que não me perdi.

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— Um mapa grande, suponho.

— Muito grande. — Holmes desenrolou um pedaço do mapa e estendeu-o sobre os joelhos. — Aqui temos o distrito que nos interessa. Baskerville Hail fica no meio.

— Cercada por mato?

— Exatamente. Creio que a Alameda de Teixos, embora aqui não esteja marcada, estende-se nesta linha, coro a charneca à direita, como pode ver. Este grupo dc casas, aqui, é o lugarejo de Grimpen, onde o nosso amigo, dr. Mortimer, reside. Num raio de oito quilômetros há, como pode verificar, apenas algumas casas espalhadas. Aqui está Lafter Hall, que foi mencionada na narrativa. Aqui vemos urna casa que talvez seja a residência do naturalista. Stapleton, creio que é o seu nome. Aqui, duas casas de fazenda, na charneca, High Tor e Foulmire. E, a vinte e dois quilômetros de distância, a grande prisão de Princetown. Entre esses pontos, e à sua volta, estende-se a charneca deserta e sem vida. Aqui, portanto, é o palco onde foi representada a tragédia e onde, com o nosso auxílio, outra poderá ser evitada.

— Deve ser um lugar selvagem.

— Sim, o ambiente é apropriado. Se o Demônio desejasse interferir nos negócios dos homens.

— Então está inclinado a dar uma explicação sobrenatural! — exclamei.

— Os agentes do Diabo podem ser de carne e osso, não podem? Duas perguntas nos esperam, de início. A primeira é: terá sido cometido um crime? A segunda: que crime, e como foi cometido? Claro que, se a suspeita do dr. Mortimer for certa e estivermos lutando com forças fora das leis comuns da natureza, termina aqui a nossa investigação. Mas temos de esgotar todas as outras hipóteses, antes de nos conformarmos com essa. Creio que será melhor fechar de novo aquela janela, se não faz questão. E estranho, mas acho que um ambiente fechado propicia a concentração mental. Não cheguei ao extremo de me encerrar numa caixa para refletir, mas é este o resultado lógico das minhas convicções. Você examinou o caso?

— Sim, pensei muito nele durante o dia.

— Qual a sua opinião? É desnorteante.

— Não há dúvida de que tem as suas particularidades. Há nele pontos distintos. Aquela mudança nas pegadas, por exemplo. Que me diz disso?

— Mortimer disse que o homem tinha andado na ponta dos pés, naquele trecho da alameda.

— Ele apenas repetiu o que um idiota declarou no inquérito. Por que haveria alguém de andar na ponta dos pés, na alameda?

— Então, o que foi?

— Ele fugia, Watson… fugia desesperadamente, corria para salvar a vida, correu até o seu coração estourar e ele cair morto por terra.

— Fugia de quê?

— Aí está o nosso problema. Há indícios de que o homem estava louco de medo, antes mesmo de começar a correr.

— Por que diz isso?

— Suponho que a causa do seu terror tivesse vindo da charneca. Se assim foi, e é o que parece provável, somente um homem que tivesse perdido a cabeça correria em sentido contrário à sua casa e não para ela. Se acreditarmos no depoimento do cigano, ele começou a correr, bradando por socorro, na direção de onde havia menos probabilidades de vir auxílio. Além disso, quem estava ele esperando, naquela noite, e por que esperava essa pessoa na Alameda de Teixos, e não em casa?

— Acha que estava esperando alguém?

— Sir Charles era velho e doente. Podemos compreender que desse um passeiozinho à noite, mas o chão estava úmido e a noite ruim. Acha natural que ele tenha ficado parado durante cinco ou dez minutos, conforme dedução do dr. Mortimer, que mostra assim ter mais senso prático do que eu o julgava capaz?

— Mas ele saía todas as noites.

— Acho pouco plausível que parasse perto do portãozinho todas as noites. Pelo contrário, sabemos que evitava a charneca. Naquela noite, ficou ali, à espera. Era a noite anterior à sua partida para Londres. A coisa começa a tomar forma, Watson, está se tornando coerente. Peço-lhe que me dê o meu violino; adiaremos as meditações sobre o assunto até termos tido ocasião de ver o dr. Mortimer e Sir Henry Baskerville amanhã cedo.

The Hound of the Baskervilles, 1902

Capítulo 1: Sherlock Holmes § Capítulo 2: A maldição dos Baskervilles
Capítulo 3: O problema § Capítulo 4: Sir Henry Baskerville
Capítulo 5: Três fios partidos § Capítulo 6: Baskerville Hall
Capítulo 7: Os Stapletons da Casa Merripit § Capítulo 8: Primeiro relatório do dr. Watson
Capítulo 9: Segundo relatório do dr. Watson – Luz na charneca
Capítulo 10: Extratos do diário do dr. Watson § Capítulo 11: O homem na rocha
Capítulo 12: Morte na charneca § Capítulo 13: Armando a rede
Capítulo 14: O cão dos Baskervilles § Capítulo 15: Retrospecto

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock