O cão dos Baskervilles – Capítulo 4

Arthur Conan Doyle

O cão dos Baskervilles
Capítulo quarto

Título original: The Hound of the Baskervilles
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1901-02.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Hound of the Baskervilles publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume IV,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Lígia Junqueiro.

Capítulo quarto: Sir Henry Baskerville

A mesa do café da manhã fora tirada cedo, e Holmes esperava, de roupão, a chegada dos visitantes. Foram pontuais, pois o relógio acabara de dar dez horas quando o dr. Mortimer entrou, seguido pelo jovem baronete. Sir Henry era baixo, vivaz, de olhos escuros, parecendo ter mais ou menos trinta anos Troncudo, de grossas sobrancelhas negras, rosto forte e belicoso. Usava um terno de tweed castanho-avermelhado e tinha a aparência um tanto marcada de quem passou a vida ao ar livre. Apesar disso, havia nos seus olhos firmes uma tranqüila segurança, que indicava nele um cavalheiro.

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— Apresento-lhe Sir Henry Baskerville — disse Mortimer.

— Pois é, sr. Holmes — disse Sir Henry. — E o mais estranho é que, mesmo que o meu amigo não tivesse sugerido que viéssemos aqui, eu teria vindo espontaneamente. Ouvi dizer que o senhor resolve charadas, e dei hoje com uma que precisa, para ser decifrada, de alguém que saiba entendê-la melhor do que eu.

— Sente-se, por favor, Sir Henry. Quer dizer que lhe aconteceu algo de extraordinário, desde que chegou a Londres?

— Nada de importante, Sr. Holmes. Somente uma brincadeira, ao que parece. Trata-se desta carta, se é que se pode chamar a isto carta, que recebi hoje de manhã.

Colocou o envelope na mesa e todos nos inclinamos para vê-lo. Era um envelope comum, meio acinzentado. O endereço, “Sir Henry Baskerville, Northumberland Hotel”, estava impresso em caracteres comuns; o carimbo era “Charing Cross”, com a data da véspera.

— Quem sabia que o senhor ia para o Northumberland Hotel? — perguntou Holmes, olhando com firmeza o visitante.

— Ninguém poderia ter sabido. Só o resolvemos depois que me encontrei com o dr. Mortimer.

— Mas com certeza o dr. Mortimer já estava hospedado lá, não?

— Não; estava em casa de um amigo — replicou o dr. Mortimer. Não havia a mínima indicação de que iríamos para aquele hotel.

— Hum… Parece que alguém esteve muito interessado nos seus passos — disse Holmes.

Tirou de dentro do envelope meia folha de papel almaço, dobrada em quatro. Abriu-a e estendeu-a em cima da mesa. No meio dela havia uma única frase, feita com letras de jornal, recortadas e ali coladas. Lemos:

“Se der valor à sua vida ou à sua razão, afaste-se da charneca”.

Apenas a palavra “charneca” estava escrita a tinta.

— Agora, talvez o senhor possa dizer-me, Sr. Holmes, o que significa isso, e quem é que pode estar tão interessado nos meus negócios – disse Sir Henry.

— Qual a sua opinião, dr. Mortimer? O senhor há de convir que, pelo menos nisso, nada há de sobrenatural.

— Não, senhor, mas pode ter sido mandado por alguma pessoa que acredite que esta história seja sobrenatural.

— Que história? — perguntou Sir Henry bruscamente. — Parece-me que os senhores sabem muito mais dos meus assuntos do que eu próprio.

— Prometo-lhe que ficará a par de tudo o que sabemos antes de sair daqui, Sir Henry — disse Sherlock Holmes. — Agora vamos ocupar-nos, se nos dá licença, deste interessante documento, que deve ter sido feito e posto no correio ontem. Tem aí o Times de ontem, Watson?

— Está aqui, neste canto.

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— Quer fazer o favor de me dar o caderno interno, com os artigos principais? — Holmes relanceou vivamente os olhos pelas colunas. — Ótimo artigo, este aqui sobre comércio livre. Vou ler um trecho.

— “Talvez haja quem possa convencê-los a imaginar que a instituição de uma tarifa especial seja proveitosa à sua indústria, ao seu comércio ou à sua prosperidade; mas se isso se der, a razão indicará, no fim de contas, que tal lei fará com que a riqueza se afaste do país, pois diminuirá o valor da nossa importação e fará com que piorem as condições de vida nesta ilha.”

— Que me diz a isto, Watson? — exclamou Holmes, muito animado, esfregando as mãos de satisfação. — Não acha admirável?

O dr. Mortimer olhou para Holmes com ar de interesse profissional, e Sir Henry fitou-me com expressão perplexa nos olhos escuros.

— Não entendo de tarifas e coisas desse gênero — disse ele. — Mas parece-me que nos afastamos do assunto, no que se refere a essa carta.

— Pelo contrário, acho que estamos no caminho certo, Sir Henry. Watson conhece melhor os meus métodos do que o senhor, mas receio que nem ele tenha alcançado o significado desta leitura.

— Confesso que não vejo relação disse eu.

— E, no entanto, caro Watson, existe uma relação íntima, que é uma ter sido tirada da outra. “Você”, “à sua”, “à sua”, “razão”, “vida”, “valor”, “afaste-se”, “se der”. Não vê agora de onde foram tiradas essas palavras?

— Por Deus, tem razão! Francamente, é brilhante! — exclamou Sir Henry.

— Se restasse alguma dúvida, seria dissipada pelo fato de “se der” e “à sua” terem sido cortadas num só pedaço.

— Ora, ora, é isso mesmo!

— Francamente, Sr. Holmes, isso excede tudo o que eu poderia imaginar — disse o dr. Mortimer, olhando com surpresa para o meu amigo. — Compreendo que qualquer pessoa possa dizer que são palavras tiradas de um jornal, mas que o senhor dissesse qual o jornal, e pudesse ainda afirmar que eram do artigo de fundo, é uma das coisas mais extraordinárias que já vi. Como foi que o conseguiu?

— Suponho, doutor, que o senhor poderia diferençar o crânio de um negro do de um esquimó.

— Certamente.

— Mas, como?

— Porque é a minha especialidade, e as diferenças são óbvias. A crista supra-orbitária, o ângulo facial, a curva do maxilar.

— Pois também esta é a minha especialidade, e as diferenças são óbvias — disse Holmes. — A meus olhos há tanta diferença entre a impressão cuidada de um artigo do Times e a impressão má de um jornal da tarde de meio penny, como há, a seus olhos, entre o crânio de um negro e o de um esquimó. O conhecimento de tipos de impressão é um dos ramos elementares para o perito em crimes, embora eu confesse que, quando era muito novo, confundi o Leeds Mercury com o Western Morning News. Mas o artigo de fundo do Times é diferente, e essas palavras do bilhete não poderiam ter sido tiradas de nenhum outro jornal. Como o bilhete foi feito ontem, a maior probabilidade era terem as palavras sido recortadas do exemplar de ontem.

— Então, pelo que deduzi das suas explicações, Sr. Holmes, alguém cortou essas palavras com uma tesoura. — disse Sir Henry.

— Tesourinha de unhas — interrompeu Holmes. — Pode ver que foi uma tesoura de lâmina muito curta, uma vez que a pessoa teve que dar duas tesouradas, para destacar as palavras “se der”.

— Isso mesmo. Então alguém cortou as palavras com uma tesoura curta e grudou-as com cola.

— Com grude — disse Holmes.

— Com grude, no papel. Mas gostaria de saber por que é que a palavra “charneca” foi escrita?

— Porque quem escreveu não a encontrou impressa. As outras palavras eram simples e poderiam ser encontradas em qualquer número, mas “charneca” já não é tão comum.

— Sim, realmente isso explicaria o fato. Leu mais alguma coisa na mensagem, Sr. Holmes?

— Há um ou dois indícios, apesar de a pessoa ter tido o cuidado de remover tudo o que pudesse servir de pista. O endereço, como os senhores vêem, está impresso em caracteres grosseiros. Mas o Times é um jornal que quase só é lido por pessoas instruídas. Podemos deduzir, portanto, que a carta foi escrita por um homem instruído que deseja passar-se por inculto, e o esforço que fez para não escrever com a sua própria letra indica que essa letra é conhecida, ou poderá vir a ser conhecida pelo senhor. Observe, também, que as palavras não foram coladas em linha reta, que algumas estão muito mais altas do que as outras. “Vida”, por exemplo, está muito fora do lugar. Isso pode indicar descuido ou pressa por parte do remetente. Inclino-me para a última hipótese, já que o assunto é muito importante e é pouco provável que o autor de tal carta não tivesse cuidado. Se ele estava com pressa, surge a questão: por que estaria com pressa, uma vez que qualquer carta posta no correio de manhã chegaria às mãos de Sir Henry antes que ele deixasse o hotel? O autor da carta temeria uma interceptação? E por parte de quem?

— Estamos agora entrando no mundo das hipóteses — observou o dr. Mortimer.

— Digamos, antes, no mundo onde pesamos as probabilidades e escolhemos as de maior valor. E o uso científico da imaginação; mas temos, também, base material para o começo das nossas especulações. Agora, os senhores chamariam a isto uma adivinhação, mas tenho quase certeza de que esse endereço foi escrito num hotel.

— Por que cargas d’água supõe tal coisa?

— Examinando a mensagem com cuidado, veremos que tanto a pena como a tinta deram trabalho a quem escrevia. A pena esparramou tinta numa só palavra, duas vezes.
e faltou tinta três vezes num traço curto, o que indica que o tinteiro estava quase vazio. Ora, uma caneta ou um tinteiro particulares raramente ficam nesse estado…. e a combinação de ambos os fatos é rara. Mas você sabe como são as penas e os tinteiros dos hotéis. Não hesito em dizer que, se pudéssemos examinar as cestas dos hotéis perto de Charing Cross até encontrarmos o resto do Times mutilado, não seria difícil descobrir a pessoa que mandou essa estranha mensagem. Olá, olá! Que é isso?

Holmes examinou com cuidado o papel onde estavam coladas as palavras, conservando-o a apenas alguns centímetros dos olhos.

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— Então?

— Nada — respondeu ele. — É um simples pedaço de papel, sem marca de espécie alguma. Creio que já tiramos o máximo desta carta. Agora, Sir Henry, aconteceu-lhe mais alguma coisa interessante depois que chegou a Londres?

— Não, Sr. Holmes, creio que não.

— Não notou se alguém o seguiu ou o observou?

— Parece que caí no meio de um melodrama barato — disse ele. — Por que haveria de ser seguido?

— Já chegaremos lá. Nada mais tem a nos contar?

— Pois bem, depende do que o senhor achar que merece ser contado.

— Qualquer coisa fora da rotina merece ser contada.

Sir Henry sorriu.

— Não sei muito a respeito da vida na Inglaterra — disse ele. — Passei quase toda a minha vida no Canadá e nos Estados Unidos. Mas creio que perder um sapato não é coisa que aconteça todos os dias.

— Perdeu um sapato?

— Caro amigo, deve estar apenas escondido — exclamou o dr. Mortimer. Com certeza o encontrará, quando voltar ao hotel. De que adianta incomodar o Sr. Holmes com essas insignificâncias?

— Bem, ele perguntou-me por qualquer coisa fora da rotina.

— Exatamente — disse Holmes. — Por mais tolo que pareça o incidente. Disse que perdeu um dos seus sapatos?

— Bom, pelo menos desapareceu. Deixei o par fora do quarto a noite passada e hoje de manhã só restava um. Não consegui explicação por parte do empregado que os engraxara. O pior é que os comprei à noite e nem cheguei a usá-los.

— Se não tinham sido usados, por que mandou limpá-los?

— Eram sapatos marrons que nunca tinham sido engraxados. Foi por isso.

— Quer dizer que, ao chegar a Londres, saiu imediatamente para comprar sapatos?

— Fiz várias compras. O dr. Mortimer acompanhou-me. O senhor compreende, já que vou ser o senhor de Baskerville, tenho de me vestir de acordo, e creio que acabei por ficar um pouco descuidado, lá no oeste. Entre outras coisas, comprei esses sapatos marrons… paguei seis dólares por eles, e um deles me foi roubado antes que eu chegasse a usá-los.

— Parece um roubo inútil — disse Sherlock Holmes. — Confesso que sou da opinião do dr. Mortimer, de que em breve aparecerá.

O baronete exprimiu-se com firmeza:

— Agora, senhores, parece-me que já falei bastante sobre o pouco que sabia. Já é tempo de cumprir a sua promessa e me contar o que houve.

— Pedido muito razoável ponderou Holmes. — Dr. Mortimer, acho que o melhor seria o senhor contar a sua história.

Assim encorajado, o nosso amigo científico tirou os ):If)é!S do bolso e apresentou o caso, como fizera na véspera. Sir Henry ouviu com a máxima atenção, deixando de vez em quando escapar uma exclamação de surpresa.

— Bom, parece que recebi uma herança perigosa — disse ele, quando viu terminada a longa narrativa. — Claro que ouvi falar no cão, desde os tempos de minha infância. É a história predileta da família, embora eu nunca a tenha levado a sério. Quanto à morte do meu tio… pois bem, está tudo fervendo na minha mente, não posso fazer uma ideia clara. Parece-me que o senhor ainda não resolveu se é assunto para um policial ou para um padre.

— Exatamente.

— E agora temos esse caso da carta mandada para o hotel. Com certeza faz parte do quadro.

— Parece indicar que alguém sabe melhor do que nós o que se passa na charneca — observou o dr. Mortimer.

— E também que alguém não lhe quer mal, já que o avisa do perigo.

— Ou talvez queiram afastar-me, no seu próprio interesse — ponderou Sir Henry.

— Sim, naturalmente, isso também é possível. Fico-lhe muito grato, dr. Mortimer, por ter me trazido um problema que apresenta vários aspectos interessantes. Mas o ponto prático que temos de decidir agora, Sir Henry, é se convém ou não que o senhor vá para Baskerville.

— Por que não haveria de ir?

— Parece que há perigo.

— O senhor quer dizer perigo por parte desse diabólico inimigo da família, ou de seres humanos?

— Bom, é o que precisamos averiguar.

— Seja como for, estou resolvido. Não há demônio no inferno, Sr. Holmes, nem homem na Terra que possam impedir-me de ir para o lar dos meus antepassados, e o senhor pode tomar essa resposta como definitiva. — Sir Henry estava de sobrancelhas contraídas, e um rubor escuro cobria-lhe o rosto. — Entretanto, mal tive tempo de pensar no que o senhor me contou. É assunto importante para um homem compreender e resolver de uma só vez. Gostaria de refletir, sozinho, durante uma hora. Escute, Sr. Holmes, são onze e meia, e vou voltar para o meu hotel. Que tal se o senhor e o dr. Watson vierem almoçar conosco às duas horas? Poderei então lhe dizer mais claramente como encaro a história toda.

— Está bem para você, Watson?

— Muito bem.

— Então, pode nos esperar — disse Holmes a Sir Henry. — Quer que chame um carro?

— Prefiro ir a pé, pois este assunto me deixou perturbado.

— Acompanhá-lo-ei com prazer — disse o dr. Mortimer.

— Então vamos nos encontrar de novo às duas horas. Até logo e passem muito bem.
Ouvimos os passos dos visitantes descendo a escada e a batida da porta da frente. Num instante, Sherlock Holmes transformara-se de lânguido sonhador em homem de ação.

— O seu chapéu, Watson, depressa! Nem um minuto a perder!

Holmes correu até o quarto, metido no seu roupão, e apareceu dali a segundos todo vestido. Descemos correndo as escadas e saímos para a rua. O dr. Mortimer e Baskervilie caminhavam uns duzentos metros à nossa frente, na direção da Oxford Street.

— Quer que eu corra e lhes peça que esperem?

— Por nada deste mundo, caro Watson. Estou plenamente satisfeito com a sua companhia, caso você esteja com a minha. Os nossos amigos têm razão, pois está de fato uma bela manhã para um passeio a pé.

Holmes apressou o passo até termos reduzido para metade a distância entre nós e os outros dois. Ainda a cem metros deles, continuávamos pela Oxford Street e depois pela Regent Street. Uma vez os nossos amigos pararam e olharam uma vitrina. Holmes imitou-lhes o exemplo. No momento seguinte, soltou uma exclamação de alegria. Seguindo a direção do seu olhar, vi um carro, que parara do lado oposto da rua, seguir de novo, lentamente.

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— Lá está o nosso homem, Watson! Venha! Daremos uma olhadela no sujeito, se não pudermos fazer nada.

Vi nesse instante uma cerrada barba negra e um par de olhos agudos virarem-se para o nosso lado, através da janela lateral do carro. No mesmo instante, abriu-se a porta do tejadilho e o homem gritou qualquer coisa ao cocheiro. O carro seguiu desabaladamente pela Regent Street. Holmes olhou ansiosamente à sua volta, mas não viu nenhum carro disponível. Correu em louca perseguição, no meio do tráfego, mas a vantagem do carro era muito grande, e depressa o perdemos de vista.

— Boa, essa! — exclamou Holmes, saindo do meio da onda de veículos, ofegante e pálido de desapontamento. — Já viu maior azar, Watson, e maior inépcia? Watson, se é um homem honesto, deve tomar nota disto também, para contrapor aos meus sucessos!

— Quem era o homem?

— Não faço a mínima ideia.

— Um espião?

— Bom, pelo que ouvimos, é evidente que Sir Henry tem sido vigiado desde que chegou a Londres. De que outra maneira poderiam ter sabido que escolhera o Northumherland Hotel? Se puderam segui-lo no primeiro dia, nada os impede de segui-lo no segundo. Deve ter observado que me aproximei duas vezes da janela, enquanto o dr. Mortimer lia a sua lenda.

— Lembro-me, sim.

— Estava procurando ver se havia vagabundos na rua, mas não descobri nenhum. Estamos lidando com um homem inteligente, Watson. O caso é profundo, e, embora eu não tenha ainda resolvido se é um agente bom ou mau que está em contato conosco, sinto que há força e intenção. Quando os nossos amigos saíram, segui-os imediatamente, na esperança de descobrir o invisível acompanhante. Tão astucioso é ele que não quis ir a pé e arranjou um carro, para poder ir atrás deles ou passar adiante, evitando assim ser visto. O seu método tem ainda outra vantagem: o homem poderia segui-los também, se tomassem um carro. Existe, porém, uma evidente desvantagem.

— Fica à mercê do cocheiro. Exatamente.

— Que pena não termos anotado o número!

— Caro Watson, por inepto que eu tenha sido, não imagina realmente que tenha deixado de anotar o número, não? É 2704. Mas isso de nada vale no momento.

— Não sei como poderíamos ter feito mais.

— Ao notar o carro, eu devia ter-me virado imediatamente e caminhado na direção oposta. Poderia então calmamente alugar um carro, seguir o primeiro a distância respeitável ou, melhor ainda, ir até o Northumberland hotel e esperar lá. Depois de o homem ter acompanhado Baskerville até o hotel, imitaríamos o seu joguinho e veríamos para onde ele ia. Em vez disso, por urna indiscreta ansiedade, de que o nosso adversário se aproveitou com extraordinária vivacidade, traímo-nos e o perdemos de vista.

Caminhávamos devagar, enquanto assim conversávamos, de modo que Sir Henry e o dr. Mortimer havia muito tinham desaparecido das nossas vistas.

— Não adianta irmos atrás deles — disse Holmes. — A “sombra” desapareceu e não voltará. Precisamos ver que outras cartas temos na mão e jogá-las com firmeza. Você reconheceria o homem do carro?

— Reconheceria apenas a barba.

— Também eu… e provavelmente era falsa. Um homem inteligente, que está tratando de assunto tão delicado, não precisa de barba, a não ser como disfarce. Vamos entrar aqui, Watson.

Entrou num escritório de mensageiros, onde foi recebido amavelmente pelo gerente.

— Ah, Wilson, vejo que não se esqueceu do caso no qual tive a felicidade de o ajudar!

— Não, senhor, claro que não. O senhor me salvou a reputação e talvez a vida.

— Caro amigo, está exagerando. Lembro-me, Wilson, de que entre os seus empregados há um rapazinho chamado Cartwright, que mostrou certa habilidade durante as investigações.

— Sim, senhor, ainda trabalha aqui.

— Pode chamá-lo? Obrigado! E gostaria que me trocasse esta nota de cinco libras.

Um rapaz de catorze anos, de rosto vivo, atendera à chamada do gerente. Ficou olhando com ar reverente para o famoso detetive.

— Deixe-me ver a lista dos hotéis – disse Holmes. — Obrigado! Agora, Cartwright, aqui estão os nomes de vinte e três hotéis, nas imediações de Charing Cross. Está vendo?

Sidney Paget, 1901

Sidney Paget, 1901

— Sim, senhor.

— Você vai visitar todos.

— Sim, senhor.

— Em cada um, começará por dar um xelim ao porteiro. Aqui estão vinte e três xelins.

— Sim, senhor.

— Vai dizer-lhes que deseja ver a cesta de papéis de ontem. Diga lhes que se perdeu um telegrama importante e que você anda procura dele. Compreende?

— Sim, senhor.

— Mas o que realmente vai procurar é a página central do Times, onde houver alguns recortes feitos com tesoura. Esta página aqui. Consegue reconhecê-la facilmente, não é verdade?

— Sim, senhor.

— Em todos os hotéis, o porteiro da entrada mandará chamar o porteiro do saguão, a quem você também dará um xelim. Aqui estão mais vinte e três xelins. Com certeza ouvirá dizer umas vinte vezes, nessas vinte e três, que o lixo da véspera foi queimado ou jogado fora. Nos três outros casos, vão mostrar-lhe um monte de papéis, e aí você procurará essa página do limes. As probabilidades são todas contra o acaso de encontrar qualquer coisa. Aqui estão dez xelins para casos de emergência. Mande-me a resposta por telegrama, para a Baker Street, antes do anoitecer. E agora, Watson, só nos resta descobrir, por telegrama, a identidade do cocheiro do carro número 2704. Iremos depois às galerias de pintura da Bond Street e ainda chegaremos a tempo para o nosso almoço, no Northumberland.

The Hound of the Baskervilles, 1902

Capítulo 1: Sherlock Holmes § Capítulo 2: A maldição dos Baskervilles
Capítulo 3: O problema § Capítulo 4: Sir Henry Baskerville
Capítulo 5: Três fios partidos § Capítulo 6: Baskerville Hall
Capítulo 7: Os Stapletons da Casa Merripit § Capítulo 8: Primeiro relatório do dr. Watson
Capítulo 9: Segundo relatório do dr. Watson – Luz na charneca
Capítulo 10: Extratos do diário do dr. Watson § Capítulo 11: O homem na rocha
Capítulo 12: Morte na charneca § Capítulo 13: Armando a rede
Capítulo 14: O cão dos Baskervilles § Capítulo 15: Retrospecto

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock