Josiah Amberley

Arthur Conan Doyle

Josiah Amberley

Título original: The Retired Colourman
Publicado pela primeira vez na Liberty,
Dezembro de 1926, com 4 ilustrações de Frederic Dorr Steele
e na Strand Magazine, em Janeiro de 1927,
com 5 illustrations de Frank Wiles.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Retired Colourman publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.

Naquela manhã, Sherlock Holmes estava tristonho e filosófico. Sua natureza prática e irrequieta era sujeita a tais crises.

— Você o viu? — indagou.

— Quem? O velho que acaba de sair?

— Esse mesmo.

— Sim. Passei por ele à porta.

— Que tal lhe pareceu?

— Uma criatura patética, fútil, alquebrada.

— Exatamente, Watson. Patético e fútil. Mas não é a própria vida patética e fútil? A história dele, desse homem, não é um microcosmo do todo? Estendemos a mão para agarrar qualquer coisa. E, afinal, o que nos fica na mão? Uma sombra. Ou, pior que uma sombra… a miséria.

— É um dos seus clientes?

— Suponho que lhe possa chamar assim. Foi a Yard que o mandou aqui. Fez como às vezes fazem os médicos, mandando seus doentes incuráveis a um charlatão. Explicam que não podem fazer mais nada e que, aconteça o que acontecer, o enfermo não pode ficar pior do que já está.

— De que se trata?

Holmes pegou um cartão sebento que estava em cima da mesa.

— Josiah Amberley. Diz ele que era sócio minoritário da firma Brickfall & Amberley, fabricante de materiais artísticos. Pode ver os nomes deles por aí, em caixas de tintas. Fez o seu pé-de-meia, aposentou-se aos sessenta e um anos, comprou uma casa em Lewisham e foi descansar depois de uma vida de incessante labuta. Era de supor que seu futuro corresse suave e seguro.

— Realmente.

Holmes relanceou os olhos para umas notas que escrevera às pressas nas costas de um envelope.

— Aposentou-se em 1896, Watson. No início de 1897, casou-se com uma mulher vinte anos mais nova do que ele… mulher de boa aparência, se a fotografia não engana. Dinheiro, esposa, lazer… parecia ter diante de si um caminho tranqüilo. E contudo, volvidos dois anos, está transformado, como você viu, numa verdadeira ruína humana.

— Mas o que aconteceu?

— A velha história, Watson. Um amigo traiçoeiro e uma esposa volúvel. Ao que parece, Amberley tem uma mania na vida, que é o jogo do xadrez. Não longe dele, em Lewisham, mora um jovem médico que também é jogador de xadrez. Tenho aqui o nome dele: dr. Ray Ernest. Esse jovem freqüentava a casa, daí resultou muito naturalmente certa intimidade entre ele e a sra. Amberley, porquanto você há de convir que nosso desafortunado cliente tem poucas graças físicas, por grandes que possam ser suas qualidades morais. Os dois fugiram a semana passada, tomando rumo ignorado. O pior é que a esposa infiel levou, como se fosse sua bagagem pessoal, uma caixa de documentos onde estava uma boa parte das economias do marido. Será possível encontrar a mulher? Será possível reaver o dinheiro? Até aqui, trata-se de um problema comum, mas que é de capital importância para Josiah Amberley.

— E o que você vai fazer?

— Acontece que a pergunta imediata, meu caro Watson, é esta: o que você vai fazer?… se é que quer ter a bondade de me substituir. Sabe que ando preocupado com esse caso dos dois patriarcas coptas, que hoje deve ter uma solução. Não tenho tempo para ir a Lewisham, e o certo é que as informações colhidas in loco têm um valor especial. O velhote insistiu muito em que eu fosse, mas fiz-lhe ver a impossibilidade em que me achava. Prontificou-se então a receber um representante.

— Não há dúvida — respondi. — Confesso que não sei se posso ser de algum préstimo, mas estou pronto a fazer o que for possível.

E foi assim que, numa tarde de verão, parti para Lewisham, sem supor, nem em sonhos, que, em uma semana, o assunto em que ia me envolver haveria de empolgar a opinião pública da Inglaterra.

Só à noite voltei à Baker Street e pude apresentar o relatório de minha missão. Holmes tinha o corpo magro enterrado numa ampla cadeira, seu cachimbo expelia bafo radas de tabaco forte, formando volutas no espaço, enquanto as pálpebras lhe caíam tão flácidas e preguiçosas sobre os olhos que dir-se-ia ter adormecido se, a cada parada ou a cada passagem mais discutível de minha narrativa, elas não se erguessem um pouco, e dois olhos penetrantes como punhais não me trespassassem até o íntimo.

— A casa do sr. Josiah Amberley chama-se Sossego — expliquei. — Creio que havia de lhe interessar, Holmes. É como se um nobre caído na pobreza fosse morar em companhia de seus inferiores. Você conhece o arrabalde, as monótonas ruas com suas casas de tijolos, as cansativas estradas suburbanas. Bem no centro delas, numa ilhota de antiga cultura e conforto, fica essa velha casa, rodeada por um muro alto, de tijolo cozido ao sol, ao qual os liquens em profusão e o musgo que o encima emprestam um aspecto especial, muro esse…

— Basta de poesia, Watson — disse Holmes com severidade. — Já sei que há um muro alto, de tijolo.

— Justamente. Não seria capaz de descobrir o Sossego se não tivesse perguntado a um ocioso que estava parado na rua, fumando. Não é sem motivo que falo nesse indivíduo. Era um homem alto, moreno, de bigode grande e ar marcial. Fez uma inclinação de cabeça ao responder à minha pergunta e dirigiu-me um olhar interrogativo bastante curioso, que um pouco mais tarde me veio à lembrança.

“Mal eu acabara de transpor o portão, vi o sr. Amberley, que vinha pelo caminho que conduz à casa. Vira-o muito rapidamente hoje de manhã, e causou-me uma impressão estranha, mas, quando o vi com mais vagar, sua aparência pareceu-me mesmo anormal.

— Naturalmente eu também o examinei, mas gostaria de saber sua impressão — disse Holmes.

— Ele me pareceu ser um homem literalmente vergado de preocupações. Suas costas estavam curvadas, como se ele carregasse um enorme peso. Todavia, não era o fracalhão que eu a princípio imaginava, pois os ombros e o peito têm conformação gigantesca, embora o corpo vá se afinando até as pernas, que são tesas como um fuso.

— Sapato esquerdo enrugado, direito liso.

— Isso não observei.

— Sei que não. Eu reparei no membro artificial. Mas prossiga.

— Fiquei impressionado com os anéis de cabelo branco que se enroscavam debaixo de seu velho chapéu de palha, com o rosto de expressão feroz e ansiosa e com as feições profundamente marcadas.

— Muito bem, Watson. Que disse ele?

— Contou-me detalhadamente a história de suas mágoas. Fomos andando juntos pelo caminho, e aproveitei para dar uma olhadela em redor. Nunca vi tamanho abandono e desleixo. No jardim, as plantas cresciam à vontade. Não se vê ali vestígio de mão de homem. Não sei como qualquer mulher decente poderia tolerar tal estado de coisas. A casa não ficava excluída do desmazelo geral, mas o pobre homem parecia também ter dado fé daquela desolação, pois via-se ao centro do vestíbulo uma lata de tinta verde, e ele tinha na mão esquerda uma broxa grossa. E estivera trabalhando nas partes de madeira da casa.

“Levou-me para os seus aposentos, sujos como o resto, e tivemos uma longa conversa. É claro que ele manifestou seu desapontamento por você não ter ido. ‘Realmente, não era de esperar’, disse ele, ‘que um indivíduo modesto como eu, especialmente depois do enorme prejuízo sofrido, pudesse obter a completa atenção de um homem tão famoso como o sr. Sherlock Holmes.

“Garanti-lhe que a questão não era dinheiro. ‘Não, eu sei’, disse ele, ‘sei que para ele é a arte pela arte; más mesmo no lado artístico do crime ele podia encontrar alguma coisa para estudo. É a natureza humana, dr. Watson, a negra ingratidão de tudo isso! Quando foi que neguei a ela o menor de seus pedidos? Já houve alguma mulher tão mimada? E aquele jovem? Dir-se-ia que era meu filho. Tinha carta branca nesta casa. E no entanto veja como ambos me trataram! Oh, dr. Watson, que mundo atroz, atroz!

“Foi esse o estribilho dele durante uma hora ou mais. Ao que parece, o pobre homem não desconfiava de nenhuma trama. Viviam sós, e a única pessoa de fora é uma mulher que vem de dia e deixa o serviço todas as tardes, às seis horas. Na noite da fuga, o velho Amberley, desejando agradar à esposa, reservara dois lugares no balcão do Haymarket Theatre. No último momento, ela queixou-se de dor de cabeça e não quis ir. O homem foi sozinho. Parece não haver dúvidas quanto ao fato, visto que ele exibiu o bilhete não utilizado que comprara para a mulher.

— Isso é notável, muito notável — disse Holmes, cujo interesse pelo caso parecia aumentar. — Queira continuar, Watson. Sua narrativa está me interessando muito. Você examinou o bilhete? Por acaso tomou nota do número?

— Foi por acaso mesmo, mas tomei, sim — respondi com certo orgulho. — Deu-se o caso de que era o meu número de matrícula no colégio, trinta e um, e ficou-me na cabeça.

— Excelente, Watson! Quer dizer que o número dele era ou trinta ou trinta e dois.

— Tal e qual — respondi, meio desnorteado. — E na fila B.

“Mostrou-me sua casa forte, como ele a chama. É realmente uma casa forte, como um banco, com porta de ferro e janela com grade, à prova de arrombamento, dizia ele, gabando-se. Contudo, ao que parece, a mulher possuía uma cópia da chave, e ambos carregaram umas sete mil libras em dinheiro e títulos.

— Títulos! Como poderiam dispor deles?

— O homem disse que deu à polícia uma lista dos títulos e que esperava que não pudessem ser resgatados. Voltara do teatro pela meia-noite e encontrara a casa saqueada, a porta e as janelas abertas e dos dois nem sinal. Não havia carta nem bilhete, e daí para cá não teve qualquer notícia dos fugitivos. Deu imediatamente parte na polícia.

Holmes ficou meditando por alguns instantes.

— Você diz que ele estava pintando. O que ele pintava?

— O corredor. Mas já pintara a porta e o madeiramento da sala a que me referi.

— Não lhe pareceu uma ocupação estranha em tais circunstâncias?

— “A gente tem de fazer alguma coisa para aliviar o coração.” Foi esta a explicação que ele deu. A coisa era excêntrica, não há dúvida, mas ele é sem dúvida um homem excêntrico. Rasgou na minha presença um retrato da esposa; rasgou-o nervosamente, num acesso de fúria. “Nunca mais quero ver esta maldita cara!”, gritou.

— Mais alguma coisa, Watson?

— Sim, uma coisa que me impressionou mais que o resto. Eu fora de carro para a Estação de Blackheath e tinha acabado de tomar o trem quando, justamente no instante da partida, vi um homem entrar precipitadamente no compartimento vizinho ao meu. Como você sabe, Holmes, fixo bem as fisionomias. Era indubitavelmente o homem alto e moreno a quem eu me dirigira na rua. Vi-o mais uma vez na Ponte de Londres e depois perdi-o de vista no meio da multidão. Mas estou convencido de que ele me seguia.

— Sem dúvida! Sem dúvida! — disse Holmes. — Um homem alto, moreno, de bigode farto, diz você, e óculos escuros para proteger a vista do sol?

— Holmes, você é um adivinho. Eu não tinha dito isso, mas o homem usava exatamente uns óculos assim.

— E na gravata havia um alfinete com um emblema maçônico?

— Holmes!

— Muito simples, meu caro Watson. Mas passemos ao que importa. Devo confessar-lhe que o caso, que se me afigurava de tal simplicidade que quase nem merecia minha atenção, está tomando rapidamente um aspecto muito diferente. Verdade é que, embora em sua missão você tenha deixado escapar quase tudo o que era de importância, ainda assim aquelas coisas que entraram pêlos seus olhos dão muito que pensar.

— Que foi que eu deixei passar?

— Não se magoe, meu caro amigo. Bem sabe que sou totalmente impessoal. Nenhuma outra pessoa teria feito melhor. Algumas provavelmente nem teriam feito tão bem. Mas é claro que perdeu de vista alguns pontos capitais. Qual a opinião dos vizinhos sobre esse tal Amberley e sua mulher? Isso certamente é de importância. Que dizem a respeito do dr. Ernest? Será ele, segundo a história faz crer, um sedutor comum? Com suas vantagens naturais, Watson, todas as damas são suas ajudantes e cúmplices. Que diz do caso a funcionariazinha do correio ou a mulher do vendedor de legumes? Quase chego a vê-lo sussurrando palavras doces à jovem dama da Âncora Azul, e recebendo em troca muito mais que nada. Pois bem. Você deixou de fazer tudo isso.

— Mas ainda pode ser feito.

— Já o foi. Graças ao telefone e com o auxílio da Yard, geralmente fico senhor dos dados essenciais sem arredar pé deste meu aposento. Na verdade, minha informação confirma a história do homem. Ele tem fama tanto de ser sovina como de ser um marido ríspido e exigente. Que tinha uma grande quantia em dinheiro naquela casa forte, é certo. Também é certo que o jovem dr. Ernest, homem solteiro, jogava xadrez com Amberley e provavelmente fazia uma corte discreta à mulher do queixoso. Tudo isso parece indicar que vamos indo de vento em popa, e dir-se-ia que não é necessário dizer mais nada… e contudo! E contudo!

— Onde está a dificuldade?

— Talvez na minha imaginação. Ora, Watson, deixe a coisa no ponto em que está. Escapemos deste mundo prosaico e fatigante pela porta lateral da música. Carina canta hoje à noite no Albert Hall, e temos tempo para nos vestir, jantar e nos divertirmos.

Pela manhã, levantei-me cedo, mas alguns restos de torradas e duas cascas de ovo indicaram-me que meu companheiro fora ainda mais madrugador. Achei em cima da mesa as seguintes linhas rabiscadas por ele:

“Meu caro Watson,

Há um ou dois pontos de contato que eu desejaria estabelecer com o sr. Josiah Amberley. Quando o tiver feito, poderemos largar o caso… ou não. Quero lhe pedir apenas que esteja por aqui mais ou menos às três horas da tarde, pois é possível que eu precise de você.

S. H.”

Não pus os olhos em Holmes durante todo o dia, mas à hora aprazada ele regressou, sério, apreensivo, alheio a tudo. Nesses momentos era mais prudente deixá-lo só.

— Amberley esteve aqui?

— Não.

— Ah! Estou esperando por ele.

Não esperou em vão, porque pouco depois chegava o velho, trazendo estampado no rosto austero um ar de preocupação e de perplexidade.

— Recebi um telegrama, sr. Holmes, que francamente não entendo.

Entregou-o a Holmes, e este leu-o em voz alta:

— “Venha imediatamente, sem falta. Posso dar informação referente sua recente perda.

Elman. Presbitério.”

— Enviado de Little Purlington às duas e dez — disse Holmes. — Littie Purlington fica em Essex, creio eu, não longe de Frinton. Pois bem. Naturalmente o senhor vai partir já. Isso vem evidentemente de uma pessoa de responsabilidade, o pastor do lugar. Onde está meu Crockford? Sim, aqui o temos. J. C. Elman, M. A. Prebenda de Mossmoor e Littie Purlington. Veja o horário dos trens, Watson.

— Há um que parte da Liverpool Street às cinco e vinte.

— Ótimo. Seria melhor você ir com ele, Watson. O sr. Amberley pode precisar de ajuda ou conselho. É óbvio que chegamos a uma crise neste assunto. Nosso cliente, porém, não se mostrou muito disposto a partir.

— Para mim isto é um absurdo, sr. Holmes — disse ele. — Que pode esse homem saber do que ocorreu? É perder tempo e dinheiro.

— Ele não ia lhe telegrafar se não soubesse alguma coisa. Responda-lhe imediatamente que vai.

— Creio que não vou.

Holmes ficou muito sério.

— Faríamos do senhor, sr. Amberley, tanto a polícia como eu, o pior juízo possível se, quando aparece uma indicação tão clara como essa, se recusasse a ir colhê-la. Estaríamos no direito de julgar que o senhor não quer levar a sério a presente investigação.

Nosso cliente pareceu horrorizado com tal idéia.

— Oh, naturalmente que vou, se o senhor encara a proposta dessa maneira — disse ele. — À primeira vista, parece absurdo supor que esse homem saiba alguma coisa, mas se o senhor pensa…

— Penso, sim, senhor — disse Holmes com ênfase, ficando assim definitivamente resolvida a nossa viagem.

Antes de sairmos dali, Holmes levou-me a um canto e fez-me ligeiras advertências, pelas quais concluí que ele considerava o assunto muito importante.

— Sobretudo verifique se o homem realmente segue viagem — disse ele. — Se fugir ou voltar atrás, vá ao telefone mais próximo e diga apenas o seguinte: “Sumiu”. Esteja eu onde estiver, tomarei providências para que sua palavra chegue até mim.

Littie Purlington não é um lugar de fácil acesso por estar situado num ramal. A recordação que guardo da viagem não é muito agradável, porque a temperatura era elevada, o trem, vagaroso, e meu companheiro estava de mau humor e quase não falava, a não ser para fazer de vez em quando uma observação irônica relativamente à inutilidade da diligência que estávamos executando. Por fim, depois de desembarcarmos na pequena estação, tivemos de viajar de carro mais de três quilômetros até chegarmos à residência do presbítero, homem imenso, solene, quase pomposo, que nos introduziu em seu gabinete de trabalho. Nosso telegrama estava aberto diante dele.

— Então, senhores — perguntou —, em que posso servi-los?

— Viemos aqui — expliquei —, atendendo ao seu telegrama.

— Meu telegrama? Não mandei nenhum telegrama!

— Refiro-me ao telegrama que o senhor mandou ao sr. Josiah Amberley a respeito de sua esposa e de seu dinheiro.

— Se isso é um gracejo, cavalheiro, é um gracejo de muito mau gosto — disse, impaciente, o clérigo.

— Nunca ouvi falar no cavalheiro cujo nome o senhor declinou, e não mandei nenhum telegrama para quem quer que seja.

Eu e nosso cliente entreolhamo-nos, pasmados.

— É possível que haja algum equívoco — disse eu. — Quem sabe se existem aqui dois presbitérios? Eis o telegrama em questão, assinado Elman e dado como proveniente da residência do pastor.

— Aqui só existe um presbitério, cavalheiro, e apenas um pastor. Esse telegrama é uma grosseira falsificação, e certamente a polícia irá investigar sua origem. Entretanto, não vejo razão para prolongar a presente entrevista. Em vista disso, o sr. Amberley e eu encontramo-nos de novo na estrada, atravessando a mais primitiva aldeia da Inglaterra, conforme a impressão que tive. Dirigimo-nos à agência do telégrafo, mas já estava fechada. Havia, contudo, um telefone na pequena estalagem do lugar, e dali me comuniquei com Holmes, que também se espantou, como nós, com o resultado negativo de nossa viagem.

— Que coisa! — disse a voz ao longe. — Que coisa esquisita! Receio muito, meu caro Watson, que não haja trem para você regressar esta noite. Sem o saber, condenei-o ao suplício de passar uma noite numa estalagem de aldeia.

Todavia, há sempre a mãe natureza, Watson… a mãe natureza e Josiah Amberley, e você pode manter contato com ambos.

Ouvi sua risada desenxabida, quando o grande homem desligava o aparelho.

Acabei por verificar que não era imerecida a fama de avarento que meu companheiro tinha. Resmungara com a despesa da viagem, havia insistido em que viajássemos de terceira classe, e agora clamava contra a conta da pensão.

Na manhã seguinte, quando finalmente chegamos a Londres, era difícil dizer qual de nós estava mais azedo.

— É preferível que também o senhor passe pela Baker Street — disse eu. — O sr. Holmes pode ter informações mais frescas.

— Se estas forem como a última, não serão de grande utilidade — disse Amberley com acrimônia. No entanto, continuou em minha companhia. Eu já avisara Holmes por telegrama da hora de nossa chegada, mas encontramos um recado dele dizendo que se encontrava em Lewisham e que nos esperava lá. Isso foi uma surpresa, que ainda aumentou quando verificamos que meu amigo não estava sozinho na sala de visitas de nosso cliente. Um senhor de aspecto severo e impassível estava sentado ao seu lado, homem moreno, de óculos escuros e um enorme alfinete sobressaindo da gravata.

— Este é o sr. Barker, meu amigo — disse Holmes.

— Ele também está se interessando pelo seu caso, sr. Josiah Amberley, embora trabalhemos independentemente. Mas ambos temos a mesma pergunta a lhe fazer!

O sr. Amberley sentou-se pesadamente. Pressentiu a aproximação de perigo. Li isso em seus olhos, que se franziam, e em suas feições, que se crispavam.

— Qual é a pergunta, sr. Holmes?

— É esta: o que o senhor fez dos corpos?

De um pulo o homem pôs-se de pé, soltando um grito rouco. As mãos ossudas pareciam querer agarrar o espaço. Tinha a boca aberta, e por um instante nos deu a impressão de ser uma horrenda ave de rapina. Colhemos num relance o verdadeiro Josiah Amberley, um demônio repelente com uma alma tão disforme como o seu corpo. Quando caiu de novo sobre a cadeira, levou de súbito a mão à boca, como que para abafar um acesso de tosse. Holmes saltou-lhe ao pescoço como um tigre e torceu-lhe o rosto até dar com ele no chão. Uma pílula caiu-lhe de entre os lábios trêmulos.

— Nada de cortar caminho, Josiah Amberley, As coisas devem ser feitas decentemente e em ordem. E agora, Barker?

— Tenho um carro aí na porta — disse nosso taciturno companheiro.

— São apenas algumas centenas de metros até o primeiro posto policial. Iremos juntos. Você pode ficar aqui, Watson. Estarei de volta dentro de meia hora.

O velho negociante de tintas tinha a força de um leão naquele seu grande tronco, mas tornou-se impotente nas mãos dos dois experimentados detetives, habituados a lidar com gente dessa espécie. Torcendo-se e debatendo-se, foi arrastado para o carro que estava à espera, enquanto eu permaneci em solitária vigília naquela casa de mau agouro. Todavia, em menos tempo do que prometera, Holmes estava de volta, vindo em sua companhia um jovem e elegante inspetor da polícia.

— Deixei Barker encarregado das formalidades — disse Holmes. — Você não conhecia Barker, Watson. É meu odiado rival dos lados de Surrey. Quando me falou num homem alto e moreno, não me foi difícil completar o retrato. Ele tem a seu crédito vários casos bons, não é verdade, inspetor?

— É certo que já interveio várias vezes — respondeu com reserva o inspetor.

— Os métodos dele são, sem dúvida, irregulares, como o são os meus. Bem sabe que as tropas irregulares algumas vezes prestam bom serviço. O senhor, por exemplo, com sua advertência compulsória de que toda e qualquer declaração do homem seria usada contra ele, jamais induziria o patife a tentar aquilo que praticamente equivaleu a uma confissão.

— Talvez não. Mas, afinal, chegamos ao mesmo resultado, sr. Holmes. Não pense que já não tínhamos nossa opinião sobre o caso, e que não acabaríamos por deitar as mãos no nosso homem. Deve nos desculpar se nos sentimos um pouco magoados quando o senhor surge inopinadamente com métodos que não podemos empregar, privando-nos assim de nosso mérito.

— Isso não mais se dará, MacKinnon. Garanto-lhe que daqui em diante eu me eclipsarei, e, quanto a Barker, ele nada fez, exceto o que eu lhe disse que fizesse.

O inspetor pareceu consideravelmente aliviado.

— Isso muito o honra, sr. Holmes. Elogio ou censura pouco podem significar para o senhor, mas para nós a coisa é muito diferente, quando os jornais começam a fazer perguntas.

— É exato. Mas de qualquer forma, eles fazem perguntas, de modo que não é nada mau ter prontas as respostas. Que dirá o senhor, por exemplo, quando o repórter arguto lhe perguntar quais foram exatamente os pontos que despertaram sua suspeita e que finalmente lhe deram certa convicção de que estava se aproximando dos fatos reais?

O inspetor ficou um pouco embaraçado.

— Não nos parece que já tenhamos obtido quaisquer fatos reais, sr. Holmes. O senhor diz que o prisioneiro, na presença de três testemunhas, praticamente confessou, tentando suicidar-se, ter assassinado a mulher e o amante dela. Que outros fatos o senhor pode apontar?

— Tomou providências para se proceder a uma busca?

— Três policiais estão a caminho daqui.

— Então em breve terá o fato mais claro que se pode desejar. Os corpos não podem estar longe daqui. Procure no porão e no jardim. Não leva muito tempo cavar no lugar mais provável. Esta casa é mais velha que os canos de água. Deve haver, em algum lugar, um poço abandonado. Por que não volta sua vista para esse lado?

— Mas como descobriu a coisa, e como é que ela foi feita?

— Primeiro vou lhe mostrar como foi feita, e depois darei a explicação que lhe é devida, e que ainda é mais devida aqui ao meu paciente e sofredor amigo, que foi de inestimável ajuda do começo até o fim. Antes, porém, prefiro fazer uma breve descrição da mentalidade do criminoso. Trata-se de uma mentalidade insólita, tanto assim que, segundo penso, é mais candidato ao manicômio do que ao cadafalso. Possui em alto grau um tipo de espírito que nos faz pensar mais na natureza medieval do que na mentalidade de um britânico moderno. Era um miserável que, com a sua mesquinhez, tornou sua esposa tão desgraçada que ela foi presa fácil para o primeiro aventureiro. Este entrou em cena na pessoa do tal médico jogador de xadrez. Amberley, de sua parte, jogava muito bem xadrez, o que é indício, Watson, de espírito inventivo. Como todos os mesquinhos, era um homem ciumento, e seu ciúme desandou em mania furiosa. Com razão ou sem ela, o homem desconfiou que havia um caso de amor entre os dois. Deliberou tirar sua vingança e idealizou-a com diabólica habilidade. Venham comigo!

Holmes conduziu-nos através de um corredor, com tanta segurança como se a casa fosse sua, e parou em frente à porta aberta da casa forte.

— Arre! Que cheiro tremendo de tinta fresca! — exclamou o inspetor.

— Foi esse o nosso primeiro indício — disse Holmes.— Agradeça-o à observação do dr. Watson, conquanto lhe tenha escapado tirar a competente dedução. Foi isso o que me pôs de sobreaviso. Por que estaria aquele homem, numa ocasião destas, enchendo a casa de odores fortes? Evidentemente, para encobrir algum outro cheiro que desejava ocultar… algum cheiro culposo que despertaria suspeitas. Depois, veio a ideia de um quarto como este que o senhor vê, com porta e janela de ferro… um aposento hermeticamente fechado. Colocados esses dois fatos lado a lado, aonde nos levariam? Só pude determinar isso examinando pessoalmente a casa. Já me convencera de que o caso era grave, pois examinara o mapa de localização de lugares do Haymarket Theatre (outro tento lavrado pelo dr. Watson) e averiguei que nem a cadeira 30 nem a 32 da fila B do balcão tinham sido ocupadas naquele noite. Portanto, Amberley não estivera no teatro, e caía por terra o seu álibi. Foi um lapso de sua parte ter deixado meu astuto amigo ver o número da cadeira que comprara para a esposa.

“O principal então era eu poder examinar a casa. Enviei um agente ao lugarejo mais absurdo que pude conceber, e convenci nosso homem a ir até lá a uma hora em que lhe fosse impossível voltar. Para evitar qualquer contratempo, o dr. Watson foi com ele. O nome do pastor foi tirado por mim, está claro, do meu Crockford. Será que me explico com suficiente clareza?

— De modo magistral — disse o inspetor, em tom respeitoso.

— Sem receio de ser interrompido, procedi ao arrombamento da casa. Em vez de abraçar a profissão de detetive, eu bem podia ter escolhido a de arrombador, e creio que, se pendesse para esse lado, não me sairia mal. Observem o que descobri. Vêem o tubo de gás aqui, ao longo do rodapé? Muito bem. Esse tubo ergue-se no ângulo da parede, e há aqui no canto uma torneira. Ele vai se estendendo pela casa-forte adentro, como podem ver, e termina naquela roseta de gesso, no centro do teto, onde fica escondido pela ornamentação. Essa extremidade está bem aberta. A qualquer momento, fazendo girar a torneira externa, o quarto podia ficar totalmente impregnado de gás. Com a porta e a janela fechadas e a torneira completamente aberta, eu não daria dois minutos de sensação consciente a qualquer pessoa encerrada em tão acanhada sala. Com que demoníaco expediente ele conseguiu atraí-los a essa câmara é que não sei, mas, uma vez transposta a porta, estavam à sua mercê.

O inspetor examinou o tubo com interesse.

— Um de nossos homens referiu-se ao cheiro de gás — disse ele —, mas então a porta e a janela naturalmente estavam abertas, e a tinta (ao menos uma parte dela) já se fazia notar. O homem, conforme a história que ele próprio contou, tinha começado o trabalho de pintura na véspera. Mas que aconteceu depois, sr. Holmes?

— Um incidente com o qual eu não contava. Já de madrugada, eu ia saindo pela janela da despensa quando senti uma mão me agarrar o pescoço, e uma voz disse: “Que está fazendo aqui, seu patife?” Quando consegui virar a cabeça, dei com os olhos nos óculos escuros de meu amigo e rival, o sr. Barker. Foi um encontro cômico, que nos fez sorrir aos dois. Parece que ele tinha sido contratado pela família do dr. Ray Ernest para fazer algumas investigações, tendo também chegado à conclusão de que ali havia algo tenebroso. Tinha vigiado a casa durante alguns dias e marcara o dr. Watson como um dos elementos suspeitos que lá tinham estado. Prender Watson não lhe fora permitido, mas, quando viu um homem pulando por uma janela da casa, não se conteve. Eu então lhe contei em que pé estava o assunto, e começamos a trabalhar juntos.

— Por que contou a ele e não a nós?

— Porque me veio à idéia levar adiante esse pequeno teste, que aparecia numa ocasião tão oportuna. Creio que vocês, da Yard, não iriam tão longe.

O inspetor sorriu.

— Talvez não. Tenho agora sua palavra, sr. Holmes, de que nesta altura abandona o caso e nos transfere todos os resultados até aqui obtidos.

— Certamente, pois é sempre esse o meu costume.

— Então agradeço-lhe em nome de nossa corporação. O caso agora está esclarecido, bastando procurar os corpos, o que não será difícil.

— Vou lhe mostrar ainda uma espécie de depoimento a que eu quase chamaria sensacional — disse Holmes —, e estou certo de que nem o próprio Amberley topou com ele. Dá sempre bom resultado, inspetor, nós nos colocarmos no lugar dos outros e pensarmos como é que procederiam em idênticas circunstâncias. A coisa requer um pouco de imaginação, mas vale a pena. Suponhamos então que o senhor estivesse encerrado neste acanhado aposento, não tivesse mais que dois minutos de vida, mas quisesse ajustar contas com o perverso que provavelmente lá de fora estaria zombando do senhor. O que faria?

— Deixaria um recado por escrito.

— Isso mesmo. O senhor gostaria de dizer aos outros como foi que morreu. De nada valeria escrever num papel. Seria logo descoberto. Se escrevesse na parede, alguém poderia ler. Pois bem, olhe aqui! Logo acima do rodapé, está rabiscado o seguinte, com lápis vermelho indelével: “Nós fo…” Mais nada.

— O que é que o senhor conclui disso?

— Bem. A mensagem incompleta está apenas a alguns centímetros do chão. O pobre estava deitado no soalho, morrendo, quando escreveu isso. Perdeu os sentidos antes de poder terminar.

— E ele ia escrever: “Nós fomos assassinados”.

— É como eu também interpreto a coisa. Se o senhor encontrar no corpo um lápis indelével…

— Vamos procurá-lo, pode ficar certo. Mas, e aqueles títulos? É claro que não houve roubo nenhum. E contudo o homem realmente os possuía. Isso verificamos.

— Pode ter certeza de que ele os escondeu em lugar seguro. Depois que a misteriosa fuga tivesse passado à história, ele de repente os descobriria, e tornaria público que os dois, numa compaixão tardia, tinham devolvido os títulos roubados ou os tinham largado pelo caminho.

— O fato é que, com o senhor, não há dificuldade que resista — disse o inspetor. — Ainda uma dúvida. É natural que ele tenha recorrido a nós, mas não vejo por que procurou também o senhor.

— Pura bravata! — respondeu Holmes. — Ele se julgava tão atilado e tão seguro de si que imaginou que ninguém haveria de lhe tocar num cabelo da cabeça. Podia dizer a qualquer vizinho meio desconfiado: “Não vê as providências que tomei? Consultei não somente a polícia, mas até Sherlock Holmes”.

O inspetor riu.

— Temos de lhe perdoar esse seu “até”, sr. Holmes — declarou ele —, pois trata-se de um trabalho limpo e magistral, que não me lembro de nenhum outro tão perfeito.

Dois dias depois, meu amigo me arremessou um número do bissemanário North Surrey Observer. Sob uma série de títulos e subtítulos gritantes que começavam com “A tragédia do Sossego” e concluíam com “Estupenda investigação da polícia”, vinha, numa coluna, a primeira narrativa coerente do caso. O último parágrafo dá uma nota típica do tom do conjunto. Dizia assim:

“A notável agudeza com que o inspetor MacKinnon deduziu do cheiro de tinta que algum outro cheiro, o de gás, por exemplo, podia estar oculto; a corajosa dedução de que a casa forte podia também ser a câmara da morte, e o subsequente interrogatório que levou à descoberta dos corpos num poço abandonado, habilmente oculto por um canil… tudo isto ficará na história do crime como um exemplo duradouro da inteligência dos nossos detetives profissionais”.

— Bem, bem. MacKinnon é um bom sujeito — disse Holmes com um sorriso tolerante. — Pode guardar isso nos nossos arquivos, Watson. Um dia será contada a verdadeira história.

1927
Histórias de Sherlock Holmes

1. A pedra Mazarino § 2. A ponte de Thor
3. O homem que andava de rastos § 4. O vampiro de Sussex
5. Os três Garridebs § 6. O cliente ilustre
7. As três empenas § 8. O rosto lívido
9. A juba do leão § 10. Josiah Amberley
11. A inquilina do rosto coberto § 12. O velho solar de Shoscombe

Ilustrações: Frank Wiles, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock