O paciente internado

Arthur Conan Doyle

O paciente internado

Título original: The Resident Patient
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Agosto de 1893 e com 7 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Resident Patient publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume III,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.

Ao passar os olhos sobre as memórias um tanto incoerentes com que me esforcei por ilustrar algumas das peculiaridades mentais de meu amigo Sherlock Holmes, impressionei-me com a dificuldade que tenho experimentado, colher exemplos que correspondam sob todos os aspectos a meu propósito. Nos casos em que Holmes realizou um tour de force [1] de raciocínio analítico, mostrando o valor de seus métodos singulares de investigação, os fatos muitas vezes foram tão comuns e sem importância que eu não encontrava justificação para apresentá-los ao público. Por outro lado, tem acontecido, com freqüência, que ele se interesse por pesquisas onde os fatos têm caráter mais notável e dramático, mas em que seu papel acaba sendo menos destacado do que eu, como seu biógrafo, poderia desejar. O pequeno caso que narrei como crônica sob o título Um estudo em vermelho, e mais tarde aquele outro relacionado com a perda do Gloria Scott, servem de exemplo de que Cila e Caribde estão constantemente ameaçando seu historiador. Pode ser que, no caso que vou descrever agora, o desempenho de meu amigo não tenha sido suficientemente acentuado; todavia, toda a verdade das circunstâncias é tão notável que não me posso permitir omiti-la inteiramente desta série.

Era um dia abafado e chuvoso de agosto. Nossas janelas estavam meio abertas, e Holmes jazia encaracolado no sofá, lendo e relendo uma carta que recebera pelo carteiro da manhã. Quanto a mim, meu período de serviço na Índia treinara-me para suportar melhor o calor do que o frio, e a temperatura de trinta graus não me incomodava. Mas o jornal não tinha interesse. O Parlamento suspendera suas sessões. Toda a gente tinha saído da cidade, e eu sonhava com as clareiras de New Forest ou com os cascalhes de Southsea. Uma conta bancária a zero obrigou-me a adiar minhas férias, e, quanto a meu companheiro, nem o interior nem o mar o atraíam. Gostava de ficar mesmo no centro de cinco milhões de pessoas, estudando-lhes os caminhos e correndo no meio delas, atento a qualquer rumor ou suspeita de crime insolúvel. A apreciação da natureza não encontrava lugar entre seus muitos dons, e sua única alteração era quando desviava a atenção do malfeitor da cidade para seguir a pista de seu colega do interior.

Achando que Holmes estava demasiado absorto para conversar, atirei para um lado o jornal estéril, reclinei-me para trás na cadeira e caí numa meditação profunda. De repente, a voz de meu companheiro invadiu-me os pensamentos.

— Você tem razão, Watson — disse ele. — Parece uma maneira irracional de se resolver uma disputa.

— Inteiramente errada! — exclamei, e então, verificando que ele seguira meu mais íntimo pensamento, levantei-me e olhei para ele com verdadeiro espanto: — O que é isso, Holmes? Está além de tudo o que eu podia imaginar.

Riu satisfeito com minha perplexidade.

— Você se lembra — disse ele — de que, algum tempo atrás, quando lhe li uma passagem de uma das obras de Poe, em que um pensador atento segue os pensamentos não enunciados de seu companheiro, você interpretou o caso como um mero tour de force do autor? Quando lhe observei que tinha constantemente o hábito de fazer a mesma coisa, você se mostrou incrédulo.

— Oh, não!

— Talvez não por palavras, meu caro Watson, mas certamente com seus olhos. De modo que, quando o vi atirar para o lado o jornal e mergulhar numa série de pensamentos, senti-me muito feliz por ter a oportunidade de lê-los e eventualmente surpreendê-los, como prova de que tenho estado em harmonia com você.

Mas eu ainda estava longe de ficar satisfeito.

— No exemplo que me leu, o raciocinador tirou conclusões das ações do homem que ele observava. Se bem me lembro, ele tropeçou num monte de pedras, olhou para as estrelas, e assim por diante. Mas eu tenho estado sentado muito quieto em minha cadeira, e portanto que indícios posso ter dado?

— Está sendo injusto para consigo. Os traços fisionômicos são veículos pêlos quais um homem expressa suas emoções, e os seus são servos fiéis.

— Quer dizer que leu minha corrente de pensamentos através de meus traços?

— Seus traços e, especialmente, seus olhos. Talvez não possa recordar-se como começou seu devaneio!

— Não, não posso.

— Então eu lhe direi. Depois de atirar para o lado o jornal, que foi o que me despertou a atenção, você deixou-se ficar por meio minuto com uma expressão vaga. Em seguida, seus olhos fixaram-se no quadro de moldura nova do general Gordon, e vi, pela alteração de sua fisionomia, que uma série ininterrupta de pensamentos começara. Mas não foi muito longe. Seus olhos voltaram-se para o retrato sem moldura de Henry Ward Beecher, que está sobre seus livros. Então passou os olhos pela parede, e sem dúvida alguma que seu significado era evidente. Estava pensando que, se o retraio tivesse moldura, cobriria exatamente aquele espaço vazio e corresponderia ao do general Gordon que está ali.

— Você seguiu-me admiravelmente! — exclamei.

— Até onde pude chegar sem me desviar. Mas então seus pensamentos voltaram-se para Beecher e seu semblante endureceu-se como se lhe estudasse o caráter pêlos traços. Em seguida, seus olhos deixaram de se fixar mas começaram a olhar de revés, e tinham um ar pensativo. Estava recordando os incidentes da carreira de Beecher. Estava muito certo de que não podia fazê-lo sem pensar na missão que ele empreendeu pela causa do norte por ocasião da Guerra Civil, porque me lembro de que você exprimiu sua indignação pela maneira como ele foi recebido pêlos mais turbulentos de nosso povo. Sentiu tanto o fato que percebi que não poderia pensar em Beecher sem pensar também nesse episódio. Quando, um momento depois, vi seus olhos desviarem-se do retraio, suspeitei que pensava de novo na Guerra Civil, e quando observei que apertava os lábios, que seus olhos cintilavam e que tinha os punhos cerrados, fiquei certo de que estava com efeito pensando na bravura que mostraram os dois lados nessa luta desesperada. Mas então seu rosto entristeceu-se novamente; você sacudiu a cabeça. Estava pensando na tristeza, no horror e no desperdício inútil de tantas vidas. Sua mão escorregou de leve para a antiga ferida, e um sorriso lhe aflorou aos lábios, o que me mostrou que o lado ridículo desse método de resolver as questões internacionais chocara seu pensamento. Nesse ponto, concordei com você que era irracional e fiquei contente por descobrir que todas as minhas deduções estavam certas,

— Exatamente! — disse eu. — E agora que você o explicou, confesso que estou tão perplexo como no princípio.

— Foi muito superficial, meu caro Watson, asseguro-lhe. Não o teria imposto à sua atenção caso você não tivesse mostrado incredulidade no outro dia. Mas o anoitecer trouxe uma brisa. Que lhe parece um passeiozinho pela cidade?

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Eu estava cansado de nossa salinha de estar, e alegremente acedi. Andamos seguramente três horas juntos, observando o caleidoscópio da vida em constante mudança, na Fleet Street e no Strand. A agradável conversa de Holmes, assim como sua observação penetrante dos pormenores e seu poder de dedução, mantinham-me pasmado e dominado.

Eram dez horas quando regressamos à Baker Street. Uma carruagem esperava à nossa porta.

— Hum! Um médico! Clínico-geral, claro — disse Holmes. — Não está há muito tempo na clínica, mas tem muito o que fazer. Vem consultar-nos, creio. Que sorte já termos voltado!

Estava suficientemente familiarizado com os métodos de Holmes para poder seguir-lhe o raciocínio, e ver que a natureza e o estado dos vários instrumentos médicos, na cesta de vime pendurada sob a luz de uma lâmpada, no lado interno da carruagem, lhe forneceram os dados para sua rápida dedução. A luz que havia em nossa janela mostrava que esta visita estava, com efeito, à nossa espera. Com alguma curiosidade quanto ao que podia ter trazido até nós um colega médico, a tal hora, segui Holmes até nosso santuário.

Um homem pálido, de rosto delgado e barbas avermelhadas, levantou-se de uma cadeira ao lado do fogo quando entramos. Sua idade não podia ser superior a trinta e três, trinta e quatro anos, mas sua expressão macilenta e seu colorido doentio falavam de uma vida que fora difícil e sacrificada na juventude. Suas maneiras eram nervosas e acanhadas, como as de um cavalheiro sensível, e a fina mão branca que apoiou na prateleira da lareira, quando se levantou, era mais de um artista que de um cirurgião. Sua roupa era simples e triste, uma sobrecasaca preta, calça escura, e um toque de cor na gravata.

— Boa noite, doutor — disse Holmes jovialmente. — Estou contente por ver que nos espera há poucos minutos.

— Falou com meu cocheiro, então?

— Não, foi a vela ao lado da mesa que me apontou esse fato. Por favor, sente-se e diga-me em que posso servi-lo.

— Meu nome é Percy Trevelyan — disse nosso visitante —, e moro na Brook Street, 403.

— O senhor não é autor de uma monografia sobre lesões nervosas obscuras? — perguntei.

Suas faces pálidas coraram com o prazer de perceber que sua obra me era conhecida.

— Tão raramente ouço falar nessa obra, que a julgava inteiramente morta — respondeu. — Meus editores deram-me a mais desencorajadora nota de vendas. O senhor é médico?

— Cirurgião do exército, aposentado.

— Minha mania foi sempre a doença nervosa. Gostaria de fazer dela uma especialidade, mas, claro, um homem deve fazer o que pode alcançar primeiro. Entretanto, nada disso vem ao caso, sr. Holmes. O assunto consiste numa série singular de acontecimentos que ocorreram recentemente em minha casa da Brook Street, e esta noite atingiram tal ponto que senti ser inteiramente impossível esperar mais para lhe pedir conselho e assistência.

Sherlock Holmes sentou-se e acendeu o cachimbo.

— O senhor é bem-vindo para ambos — disse ele. — Faça-nos, por favor, uma narrativa pormenorizada dos fatos que o perturbam.

— Um ou dois são absolutamente triviais — disse o dr. Trevelyan — a tal ponto que fico envergonhado por mencioná-los. Mas a coisa é tão inexplicável e o recente aspecto que tomou é tão estranho que lhe exporei tudo, e o senhor julgará o que é essencial e o que não é.

“Para começar, sou obrigado a dizer alguma coisa sobre minha carreira universitária. Estudo e faço pesquisas em Londres, e estou certo de que não irá pensar que estou entoando louvores a mim mesmo se lhe disser que minha carreira de estudante foi considerada promissora por meus professores. Depois de me diplomar, continuei devotado às pesquisas, ocupando um cargo secundário no Hospital do King’s College. Fui bastante feliz e despertei considerável interesse com minha investigação da patologia da catalepsia, e finalmente ganhei o prêmio Bruce Pinkerton e a medalha pela monografia sobre lesões nervosas a que seu amigo acaba de aludir. Não creio exagerar se dissesse que, nessa época, havia uma impressão geral de que eu tinha pela frente uma carreira distinta.

“Mas meu grande obstáculo era a falta de capital. Como prontamente compreenderá, o especialista que almejar as alturas é obrigado a começar numa das doze ruas do quarteirão da Cavendish Square, o que lhe acarreta enormes despesas com mobília. Além desses gastos preliminares, deve estar preparado para se sustentar durante alguns anos, e alugar carruagem apresentável. Tudo isso estava muito além de minhas posses, e só podia esperar que, com a economia de dez anos, guardasse o suficiente para me habilitar a pôr minha placa. Entretanto, repentinamente, um incidente abriu-me uma perspectiva inteiramente nova: foi a visita de um cavalheiro chamado Blessington, que me era completamente estranho. Entrou em meu escritório uma manhã e abordou logo o assunto.

“— O senhor é o dr. Percy Trevelyan, que teve uma brilhante carreira e ganhou um grande prêmio recentemente? — perguntou.

“Eu inclinei-me.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“— Responda-me com franqueza — continuou ele —, pois verificará que é de seu interesse fazê-lo. O senhor tem a inteligência que forja o sucesso de um homem. Tem o tato? “Não podia deixar de rir com a precipitação da pergunta.

“— Creio que tenho algum — disse eu.

“— E seus hábitos? Não gosta de bebidas, hein?

“— Na verdade, não — protestei.

“— Muito bem! Está tudo bem! Mas eu tinha de perguntar. Com todas essas qualidades, por que não clinica?

“Encolhi os ombros.

“— Bem! — disse ele com o mesmo à-vontade. — É a velha história. Mais miolos que dinheiro, não é? O que diria de começar na Brook Street?

“Olhei para ele com espanto.

“— Oh! É no meu próprio interesse, não no seu — exclamou ele. — Serei muito franco com o senhor: se for bom para si mesmo, será também bom para mim. Tenho cerca de mil libras para investir, e penso gastá-las com o senhor.

“— Mas por quê? — arfei.

“— Ora essa, porque essa é exatamente como qualquer outra especulação, e mais segura do que a maioria.

“— O que devo fazer, então?

“— Eu lhe direi. Alugarei a casa, comprarei os móveis, pagarei os criados e farei todas as despesas. Tudo o que o senhor tem a fazer é utilizar o consultório. Eu lhe darei dinheiro para gastar e tudo. Depois, o senhor me dará três quartos do que ganhar, e guardará o restante para si.

“Essa foi a estranha proposta, sr. Holmes, com a qual esse Blessington me procurou. Não o cansarei com a narrativa de como acertamos o assunto. Acabei por me mudar para a casa perto de Lady Day e comecei a clinicar nas condições que ele me havia sugerido. Ele mesmo foi morar comigo na condição de doente internado. Tinha o coração fraco, parece, e necessitava de constantes cuidados médicos. Transformou as duas melhores divisões do primeiro andar em sala de estar e quarto para ele próprio. Era um homem de hábitos singulares, evitava companhia e saía muito raramente. Sua vida era irregular, mas em certo ponto era a própria regularidade. Todas as tardes, à mesma hora, entrava no consultório, examinava os livros e deixava cinco xelins e três pence para cada guinéu que eu tinha ganho, levando o resto para a caixa-forte de seu quarto.

“Posso garantir que ele nunca teve ocasião de lamentar sua aplicação. Desde o princípio, meu consultório foi um êxito. Alguns casos felizes, bem como a reputação que adquirira no hospital, impeliram-me rapidamente para a frente. E durante um ano ou dois fiz dele um homem rico.

“Falei demais, sr. Holmes, a respeito de meu passado e das minhas relações com o sr. Blessington. Agora, só me resta dizer o que ocorreu esta noite.

“Há algumas semanas o sr. Blessington aproximou-se de mim num estado de profunda agitação, segundo me pareceu. Falou de um roubo que, dizia, fora cometido no West End. Lembro-me de que parecia estar inteira e desnecessariamente excitado com o fato, declarando que não se passaria mais um dia sem acrescentarmos ferrolhos mais fortes às nossas janelas e portas. Continuou durante uma semana nesse estranho estado de inquietação, espiando continuamente pelas janelas e deixando de dar o curto passeio que lhe servia usualmente de prelúdio para o jantar. Essa atitude chocou-me, porque ele estava com um pavor mortal de alguma coisa ou de alguém. Mas, quando o interroguei sobre o fato, ficou tão zangado que fui obrigado a ignorar o assunto. Gradualmente, com o passar do tempo, seus receios pareceram diminuir, e voltava aos hábitos antigos, quando um novo acontecimento o reduziu ao mais lamentável estado de prostração.

“O que aconteceu foi isso: há dois dias recebi uma carta que vou ler. Não tem nem endereço, nem data.

” ‘Um nobre russo que agora reside na Inglaterra ficaria feliz de utilizar a assistência profissional do dr. Trevelyan. Tem sido, há vários anos, vítima de ataques catalépticos, a respeito dos quais, como é bem sabido, o dr. Trevelyan é autoridade. Ele propõe procurá-lo às seis e um quarto, amanhã de tarde, se o dr. Trevelyan julgar conveniente ficar em casa.’

“Esta carta interessou-me vivamente, porque a principal dificuldade no estudo da catalepsia é a raridade da moléstia. Claro que eu estava em meu consultório quando, à hora marcada, o criado introduziu o paciente.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Era um homem envelhecido, magro, modesto e comum — que não lembrava nem de longe um nobre russo. Fiquei mais chocado com a aparência de seu companheiro. Era um jovem alto, surpreendentemente belo, de rosto sombrio e severo, com membros e peito de Hércules. Segurava o braço do outro quando entraram e ajudou-o a sentar-se numa cadeira, com uma ternura que dificilmente se podia esperar de sua aparência.

“— O senhor há de perdoar minha intrusão, doutor — disse-me ele, falando inglês com uma pronúncia um pouco esquisita. — Trata-se de meu pai, e sua saúde é para mim de inestimável importância.

“Fiquei comovido com essa dedicação filial.

“— Talvez gostasse de ficar durante a consulta…?

“— De modo nenhum — respondeu ele com um gesto de horror. — É-me mais penoso do que posso dizer. Se vir meu pai num desses acessos medonhos, estou certo de que não sobreviverei. Meu sistema nervoso é muito sensível. Se me permite, ficarei na sala de espera enquanto estuda o caso de meu pai.

“Certamente concordei com isso, e o homem retirou-se. O paciente e eu iniciamos a discussão do caso, do qual tomei exaustivas notas. Não era notável pela inteligência. Suas respostas eram freqüentemente obscuras, o que atribuí à sua limitada familiaridade com nossa língua. De repente, quando, sentado, eu escrevia, deixou de responder a minhas perguntas. Voltando-me para ele, fiquei chocado ao ver que estava sentado na cadeira, empertigado como um fuso, olhando-me com um semblante perturbado e rígido. Estava, pois, nas garras de sua misteriosa doença.

“Meu primeiro sentimento foi exatamente como já disse, de piedade e de horror. O segundo, receio bem, foi o de satisfação profissional. Observei o pulso e a temperatura de meu paciente, examinei a rigidez dos músculos e observei-lhe os reflexos. Não havia nada de acentuadamente anormal, e qualquer daqueles sintomas se harmonizava com minhas primeiras experiências. Obtive bons resultados em tais casos pela inalação de nitrato de amilo, e aquela pareceu-me uma admirável oportunidade para lhe experimentar as virtudes. A garrafa estava embaixo, no meu laboratório, de modo que, deixando o paciente sentado na cadeira, desci para ir buscá-la. Demorei um pouco para encontrá-la… uns cinco minutos, digamos… e voltei. Imagine o senhor meu espanto ao encontrar o consultório vazio e meu doente desaparecido!

“Meu primeiro instinto, claro, foi precipitar-me na sala de espera. O filho se fora também. A porta do h ali fora encostada, mas não fechada. O criado que recebe os clientes é rapaz novo e sem expediente. Espera embaixo e sobe quando toco a campainha do consultório para despachar os clientes. Nada ouviu, e o fato permaneceu como um completo mistério. O sr. Blessington regressou de seu passeio logo depois, mas nada lhe disse sobre o assunto, porque, para dizer a verdade, ultimamente tenho feito tudo para me comunicar o menos possível com ele.

“Bem, nunca pensei voltar a saber daquele russo e de seu filho. Portanto, pode imaginar qual não foi meu espanto quando, à mesma hora da tarde de hoje, ambos entraram em meu consultório, precisamente como tinham feito da outra vez.

“— Sinto que lhe devo pedir desculpas pela minha partida tão repentina ontem, doutor — disse o doente.

“— Confesso que fiquei muito surpreso — disse eu.

“— Bem, a verdade — observou ele — é que, quando me liberto daqueles ataques, minhas idéias ficam sempre nubladas quanto a tudo o que se passou anteriormente. Acordei numa sala estranha, como me pareceu, e saí para a rua numa espécie de sonambulismo, enquanto o senhor estava ausente.

“— E eu — acrescentou o filho —, quando vi meu pai sair do consultório, pensei naturalmente que a consulta tinha acabado. Só quando chegamos a casa é que comecei a perceber o que se passara.

“— Bem — respondi-lhes sorrindo —, não há nenhum prejuízo, só me deixaram terrivelmente perplexo. De modo que, se o senhor quiser ter a bondade de ficar na sala de espera, eu me sentirei feliz em continuar nossa consulta, que terminou de modo tão abrupto.

“Durante cerca de hora e meia discuti com o velho cavalheiro seus sintomas e então, depois de ter receitado, vi-o sair de braço dado com o filho.

“Já lhe disse que o sr. Blessington escolhe geralmente essa hora do dia para seu passeio. Ele entrou logo em seguida e subiu. Um instante depois ouvi-o descer correndo e irromper no consultório como um homem que está doido de medo.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“— Quem esteve em meu quarto? — gritou.

“— Ninguém — disse eu.

“— É mentira! — berrou ele. — Vá até lá em cima e veja.

“Não me importei com a grosseria de sua linguagem, porque o homem parecia desvairado. Subindo a seus aposentos, mostrou-me diversos rastros no tapete claro.

“— Quer dizer que são meus? — bradou.

“Eram certamente muito maiores do que os que ele pudesse fazer. Como o senhor sabe, choveu esta tarde, e meus pacientes foram os únicos a aparecer. Comecei a pensar que o homem da sala de espera tivesse, por uma estranha razão, subido ao aposento do sr. Blessington, enquanto eu estava ocupado com o outro. Nada fora tocado ou levado, mas havia as marcas para provar que a intrusão era um fato indiscutível.

“O sr. Blessington pareceu mais excitado com o assunto do que eu julgava possível, embora fosse, decerto, suficiente para perturbar a paz de qualquer pessoa. Sentou-se gritando numa cadeira e foi com dificuldade que o levei a falar coerentemente. Vim procurá-lo a seu conselho, e percebi logo o acerto dessa sugestão, porque o incidente é na verdade singular, embora me pareça que ele lhe exagera a importância. Se quiser aproveitar meu carro, o senhor poderá acalmá-lo, embora eu creia que não possa explicar essa misteriosa ocorrência.”

Sherlock Holmes ouviu essa longa narrativa com uma atenção que me provou que seu interesse fora vivamente despertado. Seu rosto estava impassível como sempre, mas as sobrancelhas tinham descaído mais pesadamente sobre os olhos e a fumaça do cachimbo subia em espirais mais espessas, acentuando cada episódio curioso da narração do médico. Quando ele concluiu seu relato, Holmes saltou da cadeira sem dizer palavra e, passando-me o chapéu, apanhou o seu de sobre a mesa e seguiu o dr. Trevelyan até a porta. Quinze minutos depois, estávamos à porta da residência do médico, na Brook Street, uma daquelas sombrias e chapadas casas que costumamos associar às clínicas do West End. Um criado de pequena estatura recebeu-nos, e subimos a escada ampla e bem atapetada.

Mas uma singular interrupção obrigou-nos a parar. A luz em cima foi apagada, e das trevas veio uma voz aguda e trêmula.

— Tenho uma pistola — gritaram —, e garanto que atiro em quem se aproximar mais.

— Isso começa a ser realmente ultrajante, sr. Blessington — respondeu com energia o dr. Trevelyan.

— Oh, é então o doutor? — disse a voz com grande demonstração de alívio. — Mas quem são esses cavalheiros, e o que querem?

Fomos examinados demoradamente antes que a pessoa que estava na escuridão nos identificasse.

— Sim, sim, está bem — disse por fim. — Podem subir, e lamento se minhas precauções lhes desagradam.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Reacendeu o gás da escada enquanto falava, e diante de nós vimos um homem de aspecto singular. Sua aparência, tanto como sua voz, demonstrava desequilíbrio nervoso. Era muito gordo, mas aparentemente fora ainda mais gordo. A pele lhe caía do rosto em bolsas flácidas de rugas, como os beiços de um sabujo. Era de aspecto doentio, e os cabelos finos e cor de areia pareciam eriçados pela intensidade da emoção. Tinha na mão uma pistola, que meteu no bolso enquanto avançávamos.

— Boa noite, sr. Holmes — disse ele. — Creia que lhe estou muito grato por ter vindo. Ninguém carece mais de seu conselho do que eu. Penso que o dr. Trevelyan já lhe falou dessa intrusão injustificável em meus aposentos.

— Exatamente — respondeu Holmes. — Quem são esses dois homens, sr. Blessington, e por que querem incomodá-lo?

— Bem, bem — disse ele em tom nervoso —, claro que é difícil dizer. Não posso lhe dar uma resposta a esse respeito, sr. Holmes.

— Quer dizer que não sabe?

— Entre aqui, por favor. Tenha a bondade de entrar aqui. — Abriu caminho para seu quarto, que era grande e confortavelmente mobiliado.

— O senhor vê aquilo? — disse, apontando para uma grande caixa preta na extremidade de sua cama. — Nunca fui muito rico, sr. Holmes, e nunca fiz senão um investimento na minha vida, como o dr. Trevelyan lhe pode dizer. Não tenho confiança nos banqueiros. Jamais acreditaria num banqueiro, sr. Holmes. Aqui entre nós, o pouco que tenho está naquela caixa. O senhor pode compreender, pois, o que significa para mim quando pessoas desconhecidas entram em meus aposentos.

Holmes olhou para Blessington de modo inquiridor, e sacudiu a cabeça.

— Não posso aconselhá-lo se o senhor tenta enganar-me — disse ele.

— Mas eu lhe disse tudo.

Holmes voltou-lhe as costas com um gesto de desagrado.

— Boa noite, dr. Trevelyan — disse ele.

— E nem o menor conselho para mim? — gritou Blessington, numa voz entrecortada.

— Meu conselho é que diga a verdade.

Um minuto depois estávamos na rua de regresso a casa. Atravessamos a Oxford Street e já estávamos a meio caminho da Harley Street, sem que eu conseguisse arrancar uma palavra a meu companheiro.

— Lamento tê-lo feito sair para uma missão tão tola, Watson — disse ele afinal. — Mas, no fundo, é um caso muito interessante.

— Confesso que não compreendo.

— Bem, é perfeitamente claro que há dois homens… mais talvez, mas pelo menos dois, resolvidos, por qualquer motivo, a apanhar esse Blessington. Não tenho a menor dúvida de que, tanto na primeira como na segunda ocasião, o jovem penetrou no quarto de Blessington enquanto seu cúmplice, por meio de um plano engenhoso, impediu o médico de interferir.

— E a catalepsia?

— Uma imitação fraudulenta, Watson, embora eu não ouse sugerir isso a nosso especialista. É uma doença muito fácil de imitar. Eu próprio já a imitei.

— E então?

— Pela mais pura casualidade, Blessington não estava em qualquer das ocasiões. A razão para escolherem uma hora tão pouco vulgar para a consulta era a certeza de que não haveria outro paciente na sala de espera. Entretanto, aconteceu justamente que essa hora coincidiu com o giro habitual de Blessington, o que parece provar que não estavam muito bem familiarizados com seus hábitos. Naturalmente, se a visita tivesse como objetivo roubar, teria havido pelo menos alguma tentativa de busca. Além disso, posso ler nos olhos de um homem quando é por sua própria pele que ele receia. É inconcebível que aquele indivíduo tenha arranjado dois inimigos vingativos, como esses parecem ser, sem sabê-lo. Afirmo, portanto, que ele sabe quem são os dois homens, mas, por razões particulares, não quer dizer. É possível que amanhã o encontremos em disposição mais comunicativa.

— Não haverá outra alternativa — sugeri —, grotescamente improvável, sem dúvida, mas ainda assim concebível? Não pode toda a história do russo cataléptico e do filho ser uma trama do dr. Trevelyan, que, para fins particulares, esteve nos aposentos de Blessington?

Vi à luz do lampião que Holmes sorriu ao ouvir minha brilhante saída.

— Meu caro — respondeu-me —, foi uma das primeiras hipóteses que me ocorreram, mas logo pude comprovar a narrativa do médico. O jovem deixou marcas no tapete da escada, sendo, pois, inteiramente supérfluo pedir para ver as que fizera na sala. Quando eu lhe disser que seus sapatos eram de bico chato, ao contrário dos de bico fino de Blessington, e eram três centímetros e meio maiores que os do médico, você reconhecerá que não pode haver dúvida quanto à sua individualidade. Mas agora podemos esquecer o assunto, pois ficarei surpreso se não voltar a ter notícias da Brook Street amanhã cedo.

A profecia de Sherlock Holmes cumpriu-se logo, e de modo dramático. Às sete e meia da manhã seguinte, ao clarear o dia, vi-o de pé ao lado de minha cama, de roupão.

— Há um carro à nossa espera, Watson.

— O que há, então?

— O caso da Brook Street.

— Más notícias?

— Trágicas, mas ambíguas — respondeu ele, levantando a cortina. — Olhe para isso: uma folha de caderno com “Pelo amor de Deus, venha já. P. T.”, garatujado a lápis. Nosso amigo doutor estava atrapalhado quando escreveu este bilhete. Venha comigo, meu caro amigo, porque é uma chamada urgente.

Cerca de quinze minutos depois, estávamos novamente em casa do médico. Ele veio correndo a nosso encontro, com uma expressão de horror.

— Oh, que coisa terrível! — exclamou, as mãos na cabeça.

— O que aconteceu?

— Blessington suicidou-se.

Holmes deu um assobio.

— É verdade! Enforcou-se durante a noite!

Tínhamos entrado, e o médico precedera-nos no que era evidentemente a sala de espera.

— Nem sei o que fazer — exclamou ele. — A polícia já está em cima. Isto chocou-me terrivelmente.

— Quando o encontrou?

— A criada leva-lhe todas as manhãs uma xícara de chá. Esta manhã, quando entrou, mais ou menos às sete horas, lá estava o pobre homem pendurado no meio da sala. Ele amarrou a corda no gancho em que costumava pendurar o candeeiro grande. E saltou, naturalmente, de cima daquela caixa que ontem nos mostrou.

Holmes permaneceu algum tempo em profunda reflexão.

— Se me dá licença — disse ele afinal —, gostaria de ir lá em cima examinar o caso.

Subimos ambos, seguidos pelo médico. Deparamos com um quadro pavoroso ao entrarmos no quarto. Refiro-me à impressão de flacidez de Blessington. Balançando no gancho, estava tão esticado que quase não parecia uma pessoa. Tinha o pescoço puxado como o de uma galinha depenada, tornando o resto obeso e antinatural por contraste. Estava vestido apenas com uma comprida camisola de dormir, e suas ancas inchadas e os pés toscos projetavam-se rígidos por baixo. A seu lado estava um inspetor policial, de expressão inteligente, que tomava notas numa agenda.

— Ah! Holmes — disse ele, quando meu amigo entrou. — Estou contente por vê-lo.

— Bom dia, Lanner — respondeu Holmes. — Não me julgará um intruso, estou certo. Já conhece os fatos que culminaram na tragédia?

— Sim. Ouvi algumas coisas.

— Já formou opinião?

— Até onde posso perceber, o homem ficou louco de susto. A cama foi usada, como vê. Aqui está uma depressão bastante profunda. O senhor sabe que é mais ou menos às cinco da manhã que os suicídios são mais freqüentes. Foi aproximadamente a essa hora que ele se enforcou. Parece ter sido um caso deliberado.

— Eu diria que ele morreu mais ou menos às três horas, a julgar pela rigidez dos músculos — disse eu.

— Observou alguma coisa de especial no quarto? — perguntou Holmes.

— Encontrei uma chave de parafusos e alguns parafusos no lavatório. Parece também ter fumado muito durante a noite. Aqui estão quatro pontas de charutos que retirei da lareira.

— Hum! — exclamou Holmes. — Encontrou a boquilha dele?

— Não, não vi nenhuma.

— E a cigarreira, então?

— Sim. Estava no bolso do casaco.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Holmes, abrindo-a, cheirou o único charuto que continha.

— Oh, este é um havana e os outros são charutos daquela qualidade especial, importados pêlos holandeses das colônias indianas. São usualmente enrolados em palha, como sabe, e mais finos em proporção ao comprimento do que qualquer outra marca. — Em seguida, apanhou as quatro pontas e examinou-as com a lente de bolso.

— Dois deles foram fumados com uma boquilha, e dois sem ela — disse ele. — Dois foram cortados com uma faca não muito afiada, e têm as extremidades mordidas por uma excelente dentadura. Não é suicídio, sr. Lanner, é um assassínio bem planejado e a sangue-frio.

— Impossível! — gritou o inspetor.

— E por quê?

— Por que haveria alguém de matar um homem dessa maneira tão desajeitada, isto é, pelo enforcamento?

— Isso é o que havemos de descobrir.

— Como teriam entrado?

— Pela porta da frente.

— Estava com a tranca de manhã.

— Então a tranca foi posta depois.

— Como o sabe?

— Vi os rastros deles. Desculpe-me um momento, e depois lhe darei mais informações a esse respeito.

Foi à porta e, virando a chave, examinou a fechadura a seu modo metódico. Então tirou a chave, que estava do lado de dentro, e inspecionou-a também. A cama, o tapete, as cadeiras, a prateleira da lareira, o cadáver e a corda foram todos examinados cuidadosamente, até que se declarou satisfeito. Com seu auxílio e o do inspetor, retirou o corpo e cobriu-o reverentemente com um lençol.

— E esta corda? — perguntou ele.

— Foi cortada daqui — disse Trevelyan, tirando um grande rolo de baixo da cama. — Era assustadoramente mórbido no tocante ao fogo, e guardou-a sempre a seu lado, de modo que pudesse fugir pela janela no caso de o fogo vir pela escada.

— Isso poupou-lhes dificuldades — disse Holmes pensativamente. — É isso mesmo, pois os fatos são muito claros. Aliás, ficarei surpreso se hoje à tarde não puder explicá-los muito bem. Levarei essa fotografia de Blessington, que vejo na prateleira da lareira, pois pode auxiliar-me em minhas investigações.

— Mas o senhor não nos disse nada — exclamou o médico.

— Oh, não pode haver dúvida quanto à seqüência dos acontecimentos — replicou Holmes. — Eram três: o jovem, o velho e um terceiro, de cuja identidade não tenho indícios. Os dois primeiros, não preciso dizer, são os mesmos que se mascararam de conde russo e seu filho, de modo que deles podemos dar uma descrição muito completa. Foram admitidos por um cúmplice de dentro da casa. Se me permitir uma palavra de conselho, inspetor, prenda o criado, que, como fui informado, doutor, entrou recentemente a seu serviço.

— Não se pode descobrir esse demônio — disse Trevelyan. — A criada e a cozinheira têm andado precisamente à sua procura.

Holmes encolheu os ombros.

— Ele representou uma parte de certa importância nesse drama — disse ele. — Subiram os três a escada, na ponta dos pés, primeiro o mais velho, depois o mais jovem e por último o desconhecido…

— Meu caro Holmes!… — comecei eu.

— Oh, não pode haver dúvida quanto à sobreposição dos rastros. Tive a vantagem de aprender a reconhecê-los ontem à noite. Subiram então ao quarto do sr. Blessington, cuja porta encontraram trancada. Entretanto, com o auxílio de um arame, forçaram-lhe a chave. Mesmo sem lente, o senhor pode notar, pêlos arranhões do mecanismo da fechadura, onde fizeram pressão.

“Ao entrarem na sala, o primeiro cuidado foi amordaçar o si. Blessington. Podia estar dormindo, ou tão paralisado pelo terror que não pôde gritar. Essas paredes são muito grossas; é possível que seus gritos, caso tenha tido tempo de gritar, não fossem ouvidos.

“Segurando-o, parece-me evidente que se realizou uma espécie de conferência. Com toda a certeza, simularam um processo judicial. Deve ter durado muito tempo, porque foi então que fumaram estes charutos. O velho sentou-se naquela cadeira de vime: foi ele que usou a boquilha. O mais jovem sentou-se ali; foi quem sacudiu a cinza na cômoda. O terceiro andou de um lado para outro. Blessington, suponho, ficou sentado direito na cama, mas não posso estar absolutamente certo disso. Acabaram por agarrar Blessington e enforcá-lo. A coisa foi tão bem planejada, que creio que trouxeram com eles um cepo ou mourão que servisse de forca. A chave de parafusos serviria para fixá-lo. Entretanto, vendo o gancho, ficaram livres de dificuldades. Terminada a obra, saíram, e a porta foi fechada atrás deles pelo cúmplice.”

Esse relato dos acontecimentos, Holmes deduziu-o de sinais tão sutis e diminutos que, mesmo quando no-los apontou, não pudemos seguir-lhe o raciocínio. O inspetor saiu então para fazer uma investigação sobre o criado, ao passo que Holmes e eu voltamos à Baker Street para o café matinal.

— Estarei de volta pelas três — disse ele quando concluímos nossa refeição. — Tanto o inspetor como o médico poderão me encontrar aqui a essa hora, e espero nessa altura já ter esclarecido a pequena dificuldade que o caso ainda apresenta.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Nossas visitas chegaram à hora marcada, mas foi às três e quarenta e cinco que meu amigo apareceu. Entretanto, por sua expressão ao entrar, pude ver que tudo correra muito bem.

— Alguma notícia, inspetor?

— Prendemos o rapaz.

— Excelente, e eu prendi os homens.

— O senhor prendeu-os! — exclamamos todos.

— Bem, pelo menos descobri a identidade deles. Esse tal Blessington é, como eu esperava, muito conhecido no meio policial, e também seus assassinos. Seus nomes são Biddle, Ward e Mofai.

— Então, Blessington devia ser Sutton.

— Precisamente — disse Holmes.

— A quadrilha do Banco Worthingdon — exclamou o inspetor.

— Exatamente — confirmou Holmes.

— Isso é claro como água — disse o inspetor. Mas eu e Trevelyan olhamos um para o outro, confusos.

— Devem sem dúvida lembrar-se do roubo ao grande Worthingdon — disse Holmes; — eram cinco homens, esses quatro e um quinto chamado Cartwright. Tobin, o guarda da casa, foi assassinado, e os ladrões fugiram com sete mil libras. Isso se deu em 1875. Todos os cinco foram presos, e não houve provas conclusivas contra eles. Mas esse Blessington, ou Sutton, o pior da quadrilha, passou a ser delator. Devido a seu depoimento, Cartwright foi enforcado, e os outros três pegaram quinze anos de prisão. Quando, há pouco tempo, saíram, alguns anos antes de completarem a pena, puseram-se a caçar o traidor para vingar a morte do companheiro. Duas vezes tentaram agarrá-lo, e fracassaram; à terceira vez, como vêem, conseguiram. Há mais alguma coisa que eu possa explicar, dr. Trevelyan?

— Creio que o senhor foi admiravelmente claro — disse o médico. — Não há dúvida de que ele ficou perturbado no dia em que leu nos jornais a notícia da saída deles.

— Exatamente. Falava de furto como mera evasiva.

— Mas por que não lhe disse a verdade?

— Bem, meu caro senhor, conhecendo o caráter vingativo dos antigos cúmplices, tentava ocultar sua própria identidade de toda a gente que pudesse. Seu segredo era vergonhoso, e não podia revelá-lo. Entretanto, mesmo desgraçado como era, ainda vivia sob a proteção da lei britânica, e não tenho dúvida, inspetor, de que, embora essa proteção falhe, a espada da justiça aí está para vingá-lo.

Tais foram as circunstâncias singulares que envolveram o paciente internado e o médico da Brook Street. Desde aquela noite, a polícia nada mais soube dos três assassinos, e admite-se na Scotland Yard a hipótese de que eles estavam entre os passageiros do malfadado Norah Creina, que se perdeu com todas as vidas nas costas portuguesas, algumas léguas ao norte do Porto. O processo contra o criado foi arquivado por falta de provas, e o “mistério da Brook Street”, como foi chamado, nunca foi divulgado pela imprensa.

[1] “Esforço supremo.” Em francês no original. (N. do E.)

1894
Memórias de Sherlock Holmes

1. Estrela de Prata § 2. A caixa de papelão
3. A face amarela § 4. O escriturário da corretagem
5. A tragédia do “Gloria Scott” § 6. O ritual Musgrave
7. O enigma de Reigate § 8. O corcunda
9. O paciente internado § 10. O intérprete grego
11. O tratado naval § 12. O problema final

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock