O vale do terror – Primeira parte, Capítulo 5

Arthur Conan DoyleO vale do terror

Primeira parte: A tragédia de Birlstone

Título original: The Valley of Fear
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1914-15.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Valley of Fear publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Lígia Junqueiro.

Capítulo quinto: As personagens do drama

— Já viram no gabinete tudo o que queriam? — indagou White Mason, ao regressarmos à casa.

— Por enquanto… — respondeu o inspetor, e Holmes concordou com um gesto de cabeça.

— Nesse caso, talvez queiram ouvir agora o depoimento do pessoal da casa. Podíamos utilizar a sala de jantar, Ames? Por favor, venha você primeiro e conte-nos o que sabe.

A declaração do mordomo foi simples e clara e deu uma impressão convincente de sinceridade. Fora contratado havia cinco anos, quando o sr. Douglas chegou a Birlstone. Pelo que sabia, o sr. Douglas era um cavalheiro abonado e fizera fortuna na América. Era um patrão bondoso e compreensivo — não exatamente do tipo a que Ames estava habituado, mas neste mundo não se pode ter tudo. Nunca notara qualquer sinal de apreensão por parte do sr. Douglas — pelo contrário, era o homem mais destemido que conhecera. Mandava levantar a ponte levadiça todas as noites por i (instituir uma tradição da velha casa, e ele gostava de manter os antigos hábitos. O sr. Douglas raramente ia a Londres ou se afastava da vila; entretanto, no dia do crime esteve fazendo compras em Tunbridge Wells. Ele, Ames, observou algum desassossego e certa excitação no sr. Douglas nesse dia, pois ele parecia impaciente e irritadiço, o que não lhe era habitual. Não tinha ido se deitar naquela noite, pois estava na despensa, nos fundos da casa, guardando a prataria, quando ouviu a campainha tocar violentamente. Não ouviu tiro algum, o que, todavia, talvez não lhe fosse possível, porquanto a despensa e a cozinha ficavam na parte posterior da habitação e havia de permeio várias portas fechadas e um longo corredor. A governanta saiu do seu quarto, atraída pelo enérgico soar da campainha, e, juntos, dirigiram-se para a porta da entrada. Quando tinham acabado de descer a escada, viram a sra. Douglas descendo-a. Não, não precipitadamente — e nem lhe pareceu que ela estivesse particularmente agitada. No momento exato em que ela alcançava o último degrau, o sr. Barker saiu rapidamente do gabinete. Deteve-a e implorou-lhe que voltasse.

“Pelo amor de Deus, volte para o seu quarto!”, gritou. “O pobre Jack está morto; você não pode fazer nada. Suplico-lhe, volte!”

Após alguma insistência junto à escada, a sra. Douglas regressou ao quarto. Não gritou; nem mesmo emitiu o menor gemido. A sra. Allen, a governanta, conduziu-a escada acima e ficou lhe fazendo companhia no quarto. Ames e o sr. Barker voltaram, então/para o gabinete, onde encontraram tudo exatamente como a polícia viu. A vela estava apagada, nessa ocasião, mas o lampião estava aceso. Aproximaram-se da janela e olharam para fora; a noite, porém, estava muito escura, e nada puderam ver nem ouvir. Depois, dirigiram-se rapidamente para o vestíbulo, onde Ames mexeu no mecanismo que fazia descer a ponte levadiça. O sr. Barker saiu correndo, então, para avisar a polícia.

Tal foi, na sua essência, o depoimento do mordomo.

A declaração da sra. Allen, a governanta, não foi mais do que uma confirmação da do seu colega. Seu quarto ficava muito mais próximo da entrada do que a despensa na qual Ames estivera trabalhando. Preparava-se para ir para a cama quando o forte som da compainha lhe atraiu a atenção. Era um tanto surda, e talvez por isso não tivesse ouvido o disparo; de qualquer modo, o gabinete ficava distante. Lembrava-se de ter notado um ruído qualquer, que supôs ser o bater violento de uma porta. Isso foi muito mais cedo… pelo menos meia hora antes de soar a campainha. Quando o sr. Ames correu para a frente da casa, ela o acompanhou. Viu o sr. Barker sair do gabinete, muito pálido e agitado. Ele disse à sra. Douglas, que descia a escada, que parasse. Suplicou-lhe que voltasse para os seus aposentos, e ela respondeu-lhe qualquer coisa que não pôde ser ouvida.

“Leve-a para cima e fique lá com ela”, disse ele à sra. Allen.

Por conseguinte, ela acompanhou a patroa até o quarto e procurou acalmá-la. A sra. Douglas estava muito excitada e dominada por um forte tremor, mas não fez nenhuma outra tentativa para tornar a descer. Deixara-se ficar sentada, em traje de dormir, junto à lareira, com a cabeça entre as mãos. A sra. Allen passara a maior parte da noite na sua companhia. Quanto aos outros criados, todos já tinham se deitado, e não tiveram conhecimento do alarme, a não ser pouco antes da chegada da polícia. Dormiam na outra extremidade do prédio, e não havia possibilidade de ouvirem fosse o que fosse.

Ali terminou o depoimento da governanta, que não soube responder a outras perguntas senão por meio de lamentos e expressões de assombro.

O sr. Cecil Barker sucedeu à sra. Allen como testemunha. Quanto aos acontecimentos da noite anterior, pouco acrescentou ao que já declarara à polícia. Pessoalmente, estava convencido de que o criminoso fugira pela janela. Ademais, visto a ponte se encontrar levantada, não havia outra forma possível de fuga. Não sabia explicar o que acontecera ao assassino, nem dizer por que este não levara a bicicleta, se é que ela, de fato, lhe pertencia. De maneira alguma poderia ter morrido afogado no fosso, cuja profundidade em nenhum ponto ia além de um metro.

Concebeu uma teoria muito definida a respeito do crime. Douglas era homem de poucas palavras, e havia alguns capítulos da sua vida aos quais jamais se referira. Emigrara da Irlanda para a América ainda muito jovem, e lá prosperara bastante. Barker encontrara-o, pela primeira vez, na Califórnia, onde se tornaram sócios na exploração de uma mina bastante rendosa, num lugar chamado Benito Canyon. Foram muito bem sucedidos, mas Douglas repentinamente vendeu a sua parte e partiu para a Inglaterra. Nessa época era viúvo. Barker, mais tarde, também liquidou seus negócios e veio para Londres. Dessa forma, renovaram a antiga amizade. Tinha a impressão de que Douglas temia qualquer perigo iminente, pois sua rápida partida da Califórnia e também a circunstância de ter alugado uma casa num lugar tão retirado da Inglaterra pareciam estar relacionadas com esse perigo. Barker imaginava que alguma sociedade secreta, uma espécie de organização inexorável, estivesse no rasto de Douglas, e que só descansaria quando o tivesse liquidado. Essa idéia derivara de comentários casuais feitos pelo amigo, apesar de este nunca lhe ter dito de que sociedade se tratava e como a ofendera. Só podia supor que a legenda do cartão tivesse relação com semelhante sociedade secreta.

— Quanto tempo o senhor esteve com Douglas na Califórnia? — perguntou o inspetor MacDonald.

— Cinco anos ao todo.

— O senhor disse que ele era solteiro?

— Não, viúvo.

— Soube, por acaso, de onde era a primeira mulher?

— Não; lembro-me de ouvi-lo dizer que era de origem sueca, e certa vez vi seu retraio. Devia ser uma mulher muito bela. Morreu de tifo, um ano antes de eu vir a conhecer Douglas.

— Não associa o passado dele a determinada região da América?

— Ouvi-o falar de Chicago, cidade que conhecia bem e onde trabalhou. Falava também das zonas mineiras de carvão e ferro. Ele devia ter viajado muito.

— Era político? Essa sociedade secreta relacionava-se com a política?

— Não; ele não se interessava por isso.

— Não tem motivos para supor que ele fosse um criminoso?

— Pelo contrário; jamais conheci pessoa mais íntegra.

— Havia algo de anormal na sua vida, na Califórnia?

— Ele preferia passar todo o tempo trabalhando na nossa mina nas montanhas. Se pudesse, evitava ir a lugares onde estivessem outros homens. Foi isso o que me levou a pensar que alguém pudesse estar no seu encalço. Depois, como ele partira subitamente para a Europa, minha suspeita transformou-se em certeza. Creio que recebeu algum aviso, pois, uma semana após sua partida, apareceram uns homens à sua procura.

— Que espécie de homens?

— Gente de muito mau aspecto. Apresentaram-se na mina e quiseram saber onde ele se encontrava. Disse-lhes que embarcara para a Europa, mas não sabia onde estava. Que não o procuravam com boas intenções, era fácil verificar.

— Esses homens eram americanos, ou melhor, californianos?

— Bem, não sou capaz de distinguir um californiano; mas não havia dúvida de que se tratava de americanos. No entanto, não eram mineiros. Não faço idéia do que fossem; o que é certo é que fiquei contente ao vê-los pelas costas.

— Isso foi há seis anos?

— Quase sete.

— E, portanto, se os senhores estiveram juntos cinco anos na Califórnia, esse fato data de onze anos atrás, no mínimo?

— Exatamente.

— Deve ter sido rixa muito séria para se manter com tanta intensidade por todo esse tempo. Não seria coisa sem importância que daria motivo a isso.

— Julgo que esse pesadelo o atormentou toda a vida. Nunca o abandonou.

— Mas, se um homem tivesse consciência de que um perigo o ameaçava e soubesse do que se tratava, não acha que havia de procurar proteção junto da polícia?

— Talvez fosse algum perigo contra o qual não houvesse meio de se proteger. Há uma coisa que os senhores precisam saber. Ele andava sempre armado; o revólver jamais lhe saía do bolso. Mas, por azar, ontem à noite, estava de roupão e deixara-o no quarto. Suponho que, uma vez levantada a ponte, ele se julgava seguro.

— Gostaria de esclarecer mais esses dados — disse MacDonald. — Há quase seis anos Douglas abandonou a Califórnia. O senhor seguiu-o um ano depois, não é exato?

— Perfeitamente.

— E ele estava casado havia cinco anos. O senhor deve ter voltado mais ou menos na época do seu casamento.

— Cerca de um mês antes. Fui seu padrinho.

— Conhecia a sra. Douglas antes do casamento?

— Não, não a conhecia. Estive dez anos ausente da Inglaterra.

— Não obstante, o senhor a viu freqüentemente depois disso.

Barker olhou severamente para o policial.

— Depois disso, encontrei-me freqüentes vezes com Douglas — retorquiu. — Se a tenho visto, é porque não se pode visitar um homem casado sem tomar conhecimento de sua mulher. Se julga haver alguma relação…

— Não julgo nada, sr. Barker. Sou forçado a pedir informações sobre tudo o que possa trazer luz a este caso. Não tenho intenção de ofendê-lo.

— Certas perguntas são injuriosas — retrucou Barker, irritado.

— Queremos apenas os fatos. É de seu interesse, e de todos os demais, que eles sejam esclarecidos. O sr. Douglas aprovava incondicionalmente a amizade que unia o senhor à mulher dele?

Barker tornou-se lívido e suas mãos grandes e fortes comprimiram-se uma contra a outra, num gesto convulsivo.

— O senhor não tem o direito de fazer tais perguntas! — gritou. — Que pode isso ter com o assunto que o senhor está investigando?

— Sou forçado a insistir na pergunta.

— E eu me recuso a responder-lhe.

— O senhor pode se recusar a isso, mas deve compreender que a sua negativa é, por si mesma, uma resposta, pois o senhor não faria tal coisa se não tivesse algo a esconder.

O rosto de Barker fechou-se por um instante e suas vastas sobrancelhas negras se contraíram sob um impulso veemente, mas, de súbito, ele acalmou-se e sorriu.

— Pois bem! Afinal de contas, concordo em que os senhores estão apenas cumprindo o seu dever, e não tenho o direito de criar-lhes obstáculos. Peço-lhes somente para não aborrecerem a sra. Douglas com esse assunto, pois ela já tem sofrido bastante. Posso dizer-lhes que o pobre Douglas tinha um único defeito na vida, e esse. defeito era o ciúme. No entanto, gostava muito de mim… homem algum poderia querer tão bem a um amigo como ele me queria. E era muito devotado à mulher. Sentia prazer em que eu viesse aqui e vivia constantemente a me chamar. E, contudo, se eu e sua mulher conversássemos a sós ou parecesse haver alguma simpatia entre nós, um súbito acesso de ciúme o assaltava, fazendo-o perder a cabeça e dizer as maiores insolências. Por esse motivo, eu havia jurado a mim mesmo, mais de uma vez, não voltar a procurá-lo; mas, depois, ele me escrevia cartas tão penitentes e suplicantes, que eu acabava sempre voltando atrás na minha decisão. Posso porém afirmar-lhes, senhores, sob palavra de honra, que nenhum homem jamais teve mulher mais amorosa e fiel… e, posso garantir-lhes também, nenhum amigo mais leal do que eu.

Disse isso com grande fervor e convicção, mas, apesar de tudo, o inspetor MacDonald não pôde abandonar o desagradável assunto.

— O senhor sabe — perguntou — que a aliança do morto lhe foi tirada do dedo?

— Assim parece — respondeu Barker.

— Por que diz “assim parece”? O senhor sabe muito bem que se trata de um fato positivo.

O homem mostrou-se confuso e indeciso.

— Quando disse “assim parece”, pretendi lembrar que talvez o próprio Douglas a tivesse tirado.

— O simples fato de faltar a aliança, seja quem for que a tenha tirado, sugere a qualquer pessoa que existe relação entre o casamento e a tragédia. Não lhe parece?

Barker encolheu os seus ombros largos.

— Não saberia dizer o que isso possa sugerir — retrucou. — Mas se o senhor pretende insinuar que isso se reflete, de qualquer modo, na honra da senhora… — Seus olhos brilharam por um instante, mas, repentinamente, com esforço evidente, controlou as emoções. — Pois bem, os senhores estão trilhando o caminho errado; eis tudo.

— Não creio ter mais perguntas a lhe fazer, por enquanto — disse MacDonald, friamente.

— Desejava ainda um pequeno esclarecimento — interpôs Holmes. — Quando o senhor entrou na sala, havia apenas uma vela acesa sobre a mesa, não é verdade?

— Precisamente.

— E, à luz dessa vela, o senhor notou que alguma coisa de horrível havia sucedido?

— Exatamente.

— E tocou imediatamente a campainha, pedindo auxílio?

— Sim.

— E chegou prontamente?

— Em um ou dois minutos.

— No entanto, quando os outros apareceram, viram que a vela estava apagada e o lampião, aceso. Isso me parece muito importante.

Mais uma vez, Barker deixou transparecer sinais evidentes de indecisão.

— Não vejo por que isso seja digno de nota, sr. Holmes — respondeu ele, após uma pausa. — A luz da vela era muito fraca, e, por esse motivo, o meu primeiro pensamento foi arranjar outra melhor. O lampião estava sobre a mesa, e eu o acendi.

— E apagou a vela?

— Perfeitamente.

Holmes não fez mais perguntas, e Barker, depois de ter lançado a cada um de nós um olhar que me pareceu encerrar certo desafio, voltou-nos as costas e retirou-se da sala. O inspetor MacDonald tinha mandado dizer à sra. Douglas que a procuraria em seu quarto. Ela, porém, respondeu que preferia encontrar-se conosco na sala de jantar. Entrou logo em seguida: uma senhora alta e bela, dos seus trinta anos, sumamente reservada e segura de si, muito diferente da figura trágica e perturbada que eu havia imaginado. É verdade que seu rosto se apresentava pálido e abatido, como o de quem tivesse experimentado um grande choque; seus modos, todavia, eram calmos, e a mão delicada que pousou na borda da mesa estava tão firme como a minha. Os olhos tristes e suplicantes erraram por cada um de nós com uma expressão estranhamente indagadora. Esse olhar inquiridor transformou-se rapidamente numa pergunta inopinada.

— Já descobriram alguma coisa? Teria sido apenas a minha imaginação que me fez vislumbrar nessa pergunta mais um tom de temor do que de esperança?

— Temos feito todo o possível, minha senhora — assegurou o inspetor. — E pode estar certa de que não descuidaremos da mais leve minúcia.

— Não poupem despesas — disse ela, com voz débil e incolor. — Desejo que se façam todos os esforços possíveis para se chegar a uma rápida conclusão.

— A senhora talvez nos possa dizer alguma coisa que nos ajude a esclarecer o problema.

— Receio que não; em todo caso, tudo o que sei está às suas ordens.

— Contou-nos o sr. Barker que a senhora não viu… que não chegou a entrar na sala onde se desenrolou a tragédia.

— Não; ele me fez subir de novo a escada, suplicando-me que voltasse para o meu quarto.

— Exatamente. A senhora tinha ouvido o disparo e descera imediatamente.

— Vesti o roupão e desci no mesmo instante.

— Quanto tempo decorreu desde o momento em que ouviu o tiro e aquele em que se encontrou na escada com o sr. Barker?

— Dois minutos, talvez. É difícil calcular o tempo em tais circunstâncias. Ele me pediu insistentemente que não prosseguisse e garantiu-me que eu já não podia fazer nada. Em seguida, a governanta, a sra. Allen, levou-me para cima. Parecia estar vivendo um pesadelo horrível.

— Sabe nos dizer quanto tempo seu marido esteve no andar superior, antes de a senhora ouvir o disparo?

— Não; não sei. Ele saiu do quarto de vestir sem que eu desse por isso. Percorria todas as noites a casa inteira, pois tinha muito medo de um possível incêndio. Era a única , coisa que o atormentava.

— É esse precisamente o ponto ao qual eu desejava chegar, minha senhora. Conheceu seu marido somente quando ele regressou à Inglaterra, não é verdade?

— Sim. Estávamos casados havia cinco anos.

— Nunca o ouviu falar de algo ocorrido na América e que pudesse, talvez, constituir um perigo para ele?

A sra. Douglas refletiu profundamente, antes de responder.

— Sim — disse por fim. — Sempre tive a sensação de que ele se sentia ameaçado. Entretanto, nunca quis discutir tal assunto comigo. Não era por falta de confiança em mim… entre nós sempre houve o maior afeto e a mais absoluta confiança, mas porque evitava me causar preocupações. Temia que, se eu soubesse de tudo, ficasse aflita, e por esse motivo preferia manter-se silencioso.

— E como teve conhecimento disso, então?

O rosto da sra. Douglas iluminou-se com um rápido sorriso.

— Acha possível que um marido consiga esconder um segredo por toda a vida, sem que sua mulher, que o ama verdadeiramente, não o suspeite? Pressenti-o de diversas formas. Pela recusa em falar de alguns episódios da sua vida na América; por certos cuidados que costumava tomar; por certas palavras que às vezes lhe escapavam; pelo seu modo de olhar para pessoas estranhas que encontrava de repente. Eu estava absolutamente certa da existência de inimigos poderosos, que lhe andavam no encalço e dos quais procurava constantemente precaver-se. Tinha tanta certeza disso que, durante anos, se por vezes ele tardava em regressar a casa, eu era assaltada por um terror incrível.

— Poderia perguntar-lhe — interrompeu Holmes — quais foram as palavras que lhe atraíram a atenção?

— “O Vale do Terror” — respondeu a sra. Douglas. — Era uma expressão por ele usada sempre que eu o interrogava. “Estou no Vale do Terror e ainda não saí de lá.” “Mas nunca conseguiremos sair do Vale do Terror?”, perguntei-lhe uma vez, ao vê-lo mais preocupado do que de costume. “Algumas vezes penso que jamais o deixaremos”, respondeu-me.

— A senhora, naturalmente, perguntou-lhe o que significava esse Vale do Terror?

— Sem dúvida; mas ele assumiu uma expressão grave c abanou a cabeça. “Considero já uma desgraça o fato de um de nós ter sido atingido pela sua sombra”, disse-me. “Praza a Deus que ela jamais a atinja.” Devia se tratar, de fato, de algum vale em que ele tivesse vivido e no qual lhe houvesse acontecido algo de espantoso…. disso estou segura… mas não lhe saberia dizer mais nada.

— E ele nunca se referiu a qualquer nome?

— Sim; certa vez, num delírio de febre, por ocasião de um acidente de caça, há três anos. Recordo-me de um nome que lhe vinha constantemente aos lábios. Pronunciava-o com cólera e certo horror. Era MacGinty o nome… grão-mestre MacGinty. Quando se restabeleceu, perguntei-lhe quem era esse grão-mestre MacGinty e de que ele era grão-mestre. “Graças a Deus! Nunca foi meu”, retrucou, rindo. E isso foi tudo quanto pude obter dele. Estou certa, contudo, de haver uma relação entre o grão-mestre MacGinty e o Vale do Terror.

— Ainda um esclarecimento — disse o inspetor MacDonald. — A senhora conheceu o sr. Douglas numa pensão em Londres e ali ficaram noivos, não é exato? Pode dizer-me se houve algo de romântico, de secreto ou misterioso no seu matrimônio?

— É claro que foi romântico; existe sempre um pouco de romance num casamento. Nada, porém, de misterioso,

— O sr. Douglas não tinha nenhum rival?

— Claro que não; eu era completamente livre.

— A senhora, sem dúvida, já sabe que a aliança foi tirada do dedo do seu marido. Essa particularidade não lhe sugere nada? Supondo que algum inimigo dos velhos tempos o tivesse descoberto e assassinado, que motivo plausível poderia ter tido para se apoderar do seu anel de casamento? Eu poderia jurar que talvez um leve toque de ironia lhe tivesse passado fugazmente pêlos lábios.

— Verdadeiramente, não sei lhe dizer — respondeu. — É, na verdade, uma coisa insólita.

— Muito bem! Nós não a deteremos por mais tempo, e sentimos tê-la incomodado numa ocasião como esta — rematou o inspetor. — Precisamos ainda esclarecer outros pontos, não há dúvida, mas vamos chamá-la à medida que eles se apresentarem.

Ela levantou-se, e eu tive novamente a sensação de que o olhar rápido e interrogativo que nos lançou queria dizer: “Que impressão lhes causaram as minhas declarações?” Se essa pergunta tivesse sido proferida, não poderia ser mais evidente. Depois, com uma leve inclinação de cabeça, retirou-se da sala.

— É uma bela mulher… uma mulher belíssima — comentou MacDonald, com ar pensativo, depois de a sra. Douglas fechar a porta atrás de si. — Certamente, esse Barker deve ter estado aqui muitas vezes. É um homem que pode atrair a atenção das Mulheres. Ele admite que o morto era ciumento e talvez saiba, melhor que qualquer outro, os motivos desse ciúme. E depois, aquele caso da aliança… é uma coisa difícil de engolir. O homem que arranca da mão de um cadáver o anel nupcial… Que diz a isso, sr. Holmes?

O meu amigo ficara sentado, durante todo o tempo, com a cabeça apoiada nas mãos, imerso em profunda meditação. Levantou-se, de súbito, e tocou a campanhia.

— Ames — perguntou ao mordomo, ao vê-lo surgir —, onde se encontra o sr. Barker neste momento?

— Vou ver, senhor.

Regressou dentro de breve instante e informou que o sr. Barker se encontrava no jardim.

— É capaz de se lembrar, Ames, de como estava calçado o sr. Barker ontem à noite, quando o encontrou no gabinete?

— Perfeitamente, sr. Holmes; calçava chinelos. Eu próprio lhe trouxe os sapatos, quando ele saiu para avisar a polícia.

— Onde estão agora esses chinelos?

— Debaixo de uma cadeira no vestíbulo.

— Muito bem, Ames. Naturalmente, é muito importante para nós saber quais são as pegadas do sr. Barker e quais as que provêm de pessoas de fora.

— Sim, senhor. Devo lhe dizer que notei que os chinelos dele estavam manchados de sangue… como, aliás, também os meus.

— O que é natural, dadas as condições da sala. Bem, Ames; se precisarmos de você, tocaremos a campainha.

Poucos minutos depois, estávamos no gabinete. Holmes trouxera consigo os chinelos encontrados no vestíbulo. Como Ames dissera, ambas as solas se achavam manchadas de sangue.

— É estranho! — murmurou Holmes, aproximando-se da claridade da janela e examinando-as minuciosamente,

— Na verdade, muito estranho!

Inclinando-se repentinamente num dos seus característicos saltos felinos, colocou o chinelo sobre a marca de san Rue do peitoril. Ambas as marcas correspondiam exatamente. Holmes sorriu silenciosamente para os seus colegas. Súbita emoção transfigurara as feições do inspetor. Seu sotaque nativo acentuou-se com a excitação.

— Caramba! — exclamou. — Mas não pode haver dúvida! Foi Barker quem fez essas marcas na )anela. E uma pesada muito mais larga do que a de um sapato. Recordo-me de ter ouvido o senhor dizer que se tratava de um pé chato, com a planta virada para fora, e eis aí a explicação. Mas que história é esta, sr. Holmes… o que há em tudo isto?

— Sim, que história é esta? — repetiu o meu amigo, com um ar pensativo.

White Mason soltou uma risadinha e esfregou as mãos gordas, num gesto de satisfação profissional.

— Eu disse que era um quebra-cabeça! — bradou. — E que quebra-cabeça!

Primeira Parte
A Tregédia de Birlstone

Capítulo 1 – O aviso § Capítulo 2 – Sherlock Holmes discorre
Capítulo 3 – A Tragédia de Birlstone § Capítulo 4 – Trevas
Capítulo 5 – As personagens do drama § Capítulo 6 – Um réstia de luz
Capítulo 7 – A solução

Segunda Parte
Os Vingadores

Capítulo 1 – O homem § Capítulo 2 – O grão-mestre
Capítulo 3 – Loja 341, Vermissa § Capítulo 4 – O vale do terror
Capítulo 5 – A hora mais negra § Capítulo 6 – Perigo
Capítulo 7 – Birdy Edwards na ratoeira

Epílogo

Ilustrações: Frank Wiles, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock