A coroa de berilos

Arthur Conan Doyle

A coroa de berilos

Título original: The Beryl Coronet
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Maio de 1892 e com 9 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Beryl Coronet publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume II,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.

— Holmes — disse eu um dia, quando me encontrava de pé próximo da janela olhando para a rua —, ali vem um louco. É lamentável que os parentes o deixem sair sozinho.

Meu amigo levantou-se vagarosamente da sua poltrona e ficou olhando por cima do meu ombro, de mãos enfiadas nos bolsos do roupão. Era uma manhã fria de fevereiro; a neve do dia anterior ainda jazia no chão, brilhando ao sol invernal. Alguns carros já haviam passado pela rua, mas, à beira das calçadas, ela tinha sido varrida e até raspada, e estava escorregadia e perigosa, tanto que havia muito menos transeuntes que de costume. Dos lados da estação do metro não vinha ninguém, a não ser o tal cavalheiro cuja atitude excêntrica me chamara a atenção.

Era um homem de cerca de cinqüenta anos, alto, de porte imponente, com um rosto grande denunciando caráter forte e resoluto. Usava roupa escura mas elegante, com casaco, cartola, polainas castanhas e impecáveis calças de cor cinza-pérola. Todavia, seus modos contrastavam absurdamente com a dignidade da sua figura e do seu vestuário, porque corria muito, dando pequenos pulos, como quem está exausto e pouco habituado a exercício forçado. Enquanto corria, atirava as mãos para trás e para cima e contorcia o rosto horrivelmente.

— Que terá ele? — perguntei. — Está olhando para os números das casas.

— Creio que vem para cá! — disse Holmes, esfregando as mãos.

— Para cá?

— Sim, parece-me provável que venha me consultar; conheço os sintomas… Ah, não lhe disse?

Enquanto Holmes falava, o homem chegou ofegante, e à porta puxou tanto a campainha que esta ecoou na casa inteira.

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

Momentos depois entrou na sala, ofegante e gesticulando, mas com tão fixo e doloroso olhar de desespero que nosso sorriso se transformou num instante em horror e piedade. Por uns momentos não pôde articular uma palavra, apenas se agitava e puxava os cabelos como pessoa que pelo peso da dor parece enlouquecer. Levantando-se de repente, bateu com a cabeça contra a parede com tanta força que ambos corremos e o levamos para o meio da sala.

Sherlock Holmes empurrou-o para uma poltrona e, sentando-se a seu lado, afagou-lhe a mão e falou-lhe no tom amável e calmo que tão bem sabia empregar.

— O senhor vem para me contar a sua história, não é verdade? Cansou-se com a pressa. Descanse um pouco e depois terei prazer em examinar qualquer problema que quiser confiar-me.

O homem esforçou-se por controlar a emoção, enxugou a testa, firmou a boca e virou-se para nós.

— Com certeza pensam que enlouqueci — disse ele.

— Vejo que está em grande aflição — respondeu Holmes.

— Deus o sabe! Uma aflição suficiente para desequilibrar o cérebro de uma pessoa, tão repentina e terrível é. Poderia enfrentar a vergonha pública, embora eu seja um homem cujo caráter não teve qualquer mancha até agora. Aflições particulares também todos têm; mas as duas coisas juntas, e de forma tão terrível, quase me enlouquecem. Além disso, não só a mim. Os nobres deste país podem vir a sofrer, a não ser que se descubra uma saída para o problema.

— Bem, acalme-se — aconselhou Holmes —, e depois me diga claramente quem é o senhor e o que lhe aconteceu.

— Talvez o senhor já tenha ouvido o meu nome — disse o nosso visitante. — Sou Alexander Holder, da Casa Bancária Holder & Stevenson, da Threadneedle Street.

O nome era bem conhecido por nós ambos, pois era o segundo grande banco da City de Londres. O que poderia ter acontecido então para que um dos cidadãos mais acatados ficasse naquele estado de nervos? Esperamos, curiosos, até que finalmente, depois de mais um esforço, ele se concentrou e nos contou a sua história.

— Sinto que tempo é dinheiro, e por isso me dirigi para cá assim que o inspetor da polícia me aconselhou a buscar a sua cooperação. Vim pelo metro, e de lá a pé, porque os carros andam muito devagar devido à neve, e por isso é que estou ofegante, pois não sou habituado a muito exercício físico. Sinto-me melhor agora, e vou contar-lhe tudo depressa, mas o mais claramente possível.

“O senhor, naturalmente, sabe que um banco em franco progresso depende muito da obtenção de investimentos remunerativos para o seu dinheiro, bem como do aumento de suas relações e do número de seus depositantes. Um dos meios mais lucrativos de aplicar o dinheiro é o empréstimo, quando a segurança é completa. Durante os últimos anos temos feito muito nesse setor. Há muitas famílias nobres a quem temos adiantado grandes somas, aceitando como garantia seus valiosos quadros, bibliotecas ou pratas.

“Ontem, estava no meu gabinete, no banco, quando um dos funcionários me trouxe um cartão de visita.

“Estremeci quando vi o nome, porque não era outro senão… bem, acho que nem ao senhor devo revelá-lo. Basta dizer que é um nome pronunciado em todas as casas e no mundo inteiro, um dos mais nobres, mais exaltados na Inglaterra. Fiquei profundamente comovido com a honra e esforcei-me por dizê-lo quando ele entrou, mas ele atirou-se logo ao negócio, como um homem que tem pressa de liquidar um assunto desagradável.

“— Sr. Holder — começou ele —, disseram-me que o senhor costuma fazer adiantamentos de dinheiro.

“— A firma faz isso quando a garantia é boa — respondi.

“— É absolutamente essencial que eu tenha cinqüenta mil libras imediatamente. É claro que eu poderia pedir um empréstimo aos meus amigos dez vezes maior que essa quantia, mas prefiro que seja em forma de negócio, e que eu próprio o trate pessoalmente. O senhor deve compreender que na minha posição não é muito recomendável criar obrigações.

“— Por quanto tempo, posso perguntar, V. Exa. vai precisar dessa soma? — perguntei.

“— Segunda-feira próxima devo receber uma soma enorme que me é devida, e então poderei devolver o que o senhor me adiantar, com a percentagem que julgar justa. Mas é essencial que receba já essa quantia.

“— Teria muito prazer em lhe fazer o empréstimo, mas meus fundos particulares não seriam suficientes; entretanto, se tem de ser feito em nome da firma, devem-se, com justiça, usar todas as formalidades necessárias para a segurança, como precaução.

“— Prefiro que seja assim — disse ele, pegando um enorme porta-jóias de marroquim preto, que havia posto a seu lado na cadeira. — O senhor com certeza já ouviu falar da coroa de berilos.

“— Um dos bens mais preciosos do império — disse eu.

“— Precisamente. — Nisto ele abriu o porta-jóias, e ali, deitada em veludo macio, cor da pele, estava a magnífica peça de joalheria de que falou. — Há trinta e nove enormes berilos — disse ele —, e o preço do engaste de ouro é incalculável. A mais baixa avaliação daria à coroa duas vezes a quantia que lhe peço. Estou pronto a deixá-la como garantia.

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

“Tomei a preciosidade entre as mãos e olhei primeiro para ela e depois para o meu ilustre cliente.

“— Duvida do seu valor? — perguntou.

“— Absolutamente. Só duvido…

“— Do direito de eu a deixar. Pode ficar descansado quanto a isso. Não sonharia em fazê-lo se não tivesse a certeza de que dentro de quatro dias poderei resgatá-la. É uma questão de praxe. Chega esta garantia?

“— Muito bem.

“— O senhor compreende, Sr. Holder, que estou lhe dando uma forte prova de confiança. Confio no senhor, não só por saber que é discreto, e que portanto não falará a ninguém sobre o assunto, mas, acima de tudo, para guardar essa coroa com toda a precaução, porque é desnecessário dizer-lhe que, se lhe acontecer qualquer coisa, isso seria causa de grande escândalo público. Qualquer arranhão seria quase tão sério quanto a sua perda completa, porque não há berilos no mundo que se comparem com estes, e seria impossível repô-los. Deixo-a com o senhor, com plena confiança, e virei buscá-la na segunda-feira de manhã.

“Vendo que meu cliente estava ansioso por ir embora, não disse mais nada, mas, chamando o caixa, mandei-o pagar as cinqüenta mil libras em notas. Ao ficar sozinho outra vez, com a preciosidade na minha frente sobre a mesa, não pude deixar de pensar na grande responsabilidade que pesava sobre mim. Não havia dúvida de que, como objeto pertencente à nação, haveria um escândalo horrível se qualquer contratempo ocorresse. Arrependi-me de ter ficado com ela, mas era tarde demais para retroceder; fechei-a no meu cofre particular e voltei ao trabalho.

“Chegou a tarde e achei imprudente deixar tão precioso valor no escritório. Os cofres dos outros bancos já tinham sido forçados; por que não o meu? E se fosse arrombado, em que posição terrível estaria eu! Resolvi, portanto, que durante esses três ou quatro dias carregaria o embrulho para casa e no regresso o traria sempre comigo.

“Com essa intenção, chamei um carro e nele segui para minha casa em Streatham, levando a jóia comigo. Não respirei livremente enquanto não a levei para o meu quarto de vestir e a coloquei na secretária, fechando-a à chave.

“Agora, Sr. Holmes, uma palavra quanto ao meu lar, porque é preciso que o senhor compreenda perfeitamente as condições gerais. Meu cocheiro e o pajem dormem fora, nem se precisa falar neles. Tenho três empregadas que estão comigo há um bom número de anos e cuja conduta está acima de suspeitas. Outra, Lucy Parr, está em minha casa apenas há alguns meses. Veio com uma carta de apresentação excelente e tem sido satisfatória. É uma jovem bonita e atrai admiradores, que às vezes rondam a casa. É a única coisa que tenho contra ela, mas acreditamos que seja boa moça sob todos os pontos de vista. Quanto a empregados, é só.

“Minha família é tão pequena que não é preciso muito para descrevê-la. Sou viúvo e tenho um único filho, que se chama Arthur. Ele é um desapontamento para num, Sr. Holmes, um grande desapontamento. Com certeza sou eu o único culpado. Dizem que o estraguei. Quando minha boa esposa morreu, ele era a única pessoa que eu tinha para amar, e não podia ver seu rostinho perder o sorriso, não lhe negava nenhum desejo. Talvez fosse melhor para nós dois se eu tivesse sido mais severo, mas o que fiz foi com a melhor intenção.

“Era, naturalmente, meu desejo que me sucedesse no banco, mas ele não gosta de negócios. É desmiolado, tem mau gênio e, para falar a verdade, não pude confiar nele para manipular grandes somas de dinheiro. Quando era mais jovem, entrou para um clube de aristocratas onde, devido aos seus modos cativantes, se tornou amigo íntimo de diversas pessoas que têm os bolsos cheios e hábitos dispendiosos. Aprendeu a jogar cartas e a apostar em corridas no turfe, até que, por diversas vezes, teve de recorrer a mim, pedindo-me que lhe adiantasse a mesada.

“Mais de uma vez quis afastar-se dos companheiros, mas seu amigo, Sir George Burnwell, conseguia sempre influenciá-lo e, por fim, ele voltava.

“Não admira muito que Sir George Burnwell o cativasse, porque, apesar de serem poucas as vezes em que ele o trouxe a nossa casa, não pude deixar de gostar dos seus modos. É mais velho do que Arthur, homem do mundo até as pontas dos dedos; já esteve em toda parte, viu tudo, é um conversador brilhante e homem de bela fisionomia. Todavia, quando penso nele calmamente, longe da atração da sua presença, fico convencido do cinismo da sua conversa, e o olhar esperto que se vislumbra faz pensar que ele é uma pessoa em quem não se deve confiar. Essa é também a opinião da minha pequena Mary, que tem o instinto perspicaz de mulher.

“Agora, só falta falar dela. É minha sobrinha; quando o pai dela faleceu, há cinco anos, e a deixou sozinha no mundo, adotei-a, e tenho-a considerado como minha filha. É como um raio de luz na minha casa — dócil, amável, bela e perfeita dona-de-casa, mas calma e delicada como só uma mulher pode ser. Ela é a minha mão direita. Não sei o que faria sem ela. Só numa coisa me contrariou. Por duas vezes meu rapaz a pediu em casamento, pois ama-a como um devoto, mas ela o recusou.

“Penso que, se existe alguma pessoa capaz de conduzi-lo ao caminho do bem, é ela, e que se estivessem casados ele melhoraria. Mas, agora, ai de mim! É tarde demais — para sempre!

“Agora, Sr. Holmes, que o senhor já sabe tudo a respeito das pessoas que moram comigo, debaixo do meu teto, vou continuar minha triste história.

“Quando, naquela noite, estávamos tomando café na sala depois do jantar, contei a Arthur e Mary a minha experiência e falei do tesouro precioso que tínhamos em casa, só não dizendo o nome do meu cliente. Lucy Parr, que havia trazido o café, tinha saído, tenho a certeza, mas não posso jurar que a porta estivesse fechada. Mary e Arthur mostraram-se interessados e quiseram ver a famosa coroa, mas achei melhor não tocar nela.

“— Onde a guardou? — perguntou Arthur.

“— Na minha própria secretária.

“— Bem, queira Deus que a casa não seja visitada hoje pêlos ladrões — disse ele.

“— Está trancada — respondi.

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

“— Oh, qualquer chave velha serve naquela secretária. Quando era garoto, eu próprio a abri com a chave do armário do quarto das malas.

“Ele exagerava muito às vezes quando falava, e, assim, nem fiz caso do que disse. Seguiu-me até o quarto com um olhar muito sério.

“— Olhe, pai — disse, cabisbaixo —, pode adiantar-me duzentas libras?

“— Não posso — respondi rapidamente. — Tenho sido por demais generoso com você quanto a dinheiro.

“— O senhor tem sido muito bondoso — disse ele —, mas preciso desse dinheiro, senão nunca mais poderei entrar no clube.

“— E seria uma boa coisa — ripostei.

“— Sim, mas o senhor não haveria de gostar que eu o deixasse desonradamente — disse ele. — Eu não agüentaria a vergonha, preciso levantar esse dinheiro de qualquer forma, e se o senhor não quer me ajudar, tenho de procurar outros meios de obtê-lo.

“Eu estava zangadíssimo, porque aquele era o terceiro pedido do mês.

“— Você não terá nem um centavo meu! — gritei; então ele se inclinou e saiu do quarto sem dizer uma palavra.

“Depois que ele saiu, abri a secretária, para ter a certeza de que meu tesouro estava seguro, e tranquei-a de novo. Depois dei uma volta à casa para ver se tudo estava bem fechado — um dever que sempre deixava para Mary, mas que julguei melhor ser eu próprio a cumprir naquela noite. Quando desci, vi Mary à janela lateral do vestíbulo, que ela fechou quando cheguei.

“— Diga-me, pai — disse ela —, deu licença a Lucy para sair à noite?

“— Certamente que não.

“— Ela entrou agora mesmo pela porta dos fundos. Com certeza esteve apenas ao portão falando com alguém, mas acho isso perigoso e deve-se acabar com tal costume.

“— Fale com ela amanhã, ou, se preferir, falarei eu. Tem certeza de que está tudo bem fechado?

“— Sim, pai.

“— Então, boa noite.

“Beijei-a, fui para o meu quarto e adormeci imediatamente. Estou me esforçando por lhe contar tudo o que possa ter alguma relação com o caso, Sr. Holmes, mas peço que me faça perguntas sobre qualquer ponto que não esteja bem claro.”

— Pelo contrário, sua narrativa é extraordinariamente lúcida.

— Chego agora a uma parte da história em que desejo ser bem explícito. Tenho o sono leve, e a preocupação sem dúvida serviu para me torná-lo mais leve ainda. Cerca das duas horas fui acordado por um barulho dentro de casa, que cessou, porém, antes que eu despertasse de todo; deu-me, no entanto, a impressão de que era alguém fechando uma janela, e fiquei escutando atentamente. De repente, para meu horror, ouvi passos leves mas distintos no quarto anexo. Escorreguei da cama, tremendo de medo, e olhei na direção da porta do meu quarto de vestir.

“— Arthur — gritei. — Você é um malandro, um ladrão! Como tem a ousadia de tocar nessa coroa?

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

“O lampião estava meio aceso, como eu o havia deixado, e meu infeliz rapaz, apenas em mangas de camisa e calças, estava ao pé da luz, segurando a coroa nas mãos. Parecia que a estava esticando ou dobrando com toda a força. Ao meu grito, deixou-a cair e ficou pálido como a morte. Peguei nela e examinei-a. Faltava um dos cantos de ouro, com três berilos.

“— Cruel! — gritei, fora de mim. — Você a destruiu! Desonrou-me para sempre! Onde estão as gemas que roubou?

“— Que roubei?! — gritou ele.

“— Sim, ladrão! — rosnei, sacudindo-o pelo ombro.

“— Não falta nenhuma. Não podem faltar — disse ele.

“— Faltam três. E você sabe onde estão. É preciso que o chame de mentiroso, além de ladrão? Não o vi pretendendo arrancar outro pedaço?

“— O senhor já me ofendeu bastante — disse ele. — Não agüento mais. Não direi mais uma palavra sobre este assunto, já que me insulta assim. Deixarei sua casa amanhã, e seguirei meu próprio caminho no mundo.

“— Sairá, mas nas mãos da polícia — gritei, meio louco de tristeza e raiva. — Mandarei investigar este caso até o fim.

“— De mim nada saberá — disse ele, com uma paixão que nunca pensei encontrar na sua natureza. — Se quiser chamar a polícia, deixe que ela descubra o que puder.

“Toda a casa estava agora de pé, porque eu havia elevado muito a voz, na minha ira. Mary foi a primeira a correr para o meu quarto, e, à vista da coroa e do rosto de Arthur, percebeu o que se passava e, com um grito, caiu sem sentidos no chão. Mandei a criada chamar a polícia e deixei as investigações aos seus cuidados.

“Quando o inspetor e o detetive entraram na casa, Arthur, que estava de braços cruzados, perguntou-me se ia acusá-lo de furto.

“Respondi-lhe que o caso já não era particular, mas público, desde que a coroa danificada era propriedade da nação. Resolvera que a lei agisse em tudo.

“— Pelo menos — disse ele —, não me mande prender agora; seria vantajoso para o senhor e para mim se eu pudesse sair de casa por cinco minutos.

“— Para que você possa fugir ou esconder o que roubou? — afirmei eu.

“E então, compreendendo a terrível situação em que eu estava, implorei-lhe, lembrando que não só a minha honra ficaria manchada, como também a honra de alguém mais importante do que eu; e que o escândalo que iria levantar convulsionaria a nação. Ele poderia evitar tudo isso se contasse o que tinha feito com as três gemas que faltavam.

“— É melhor enfrentar as conseqüências — tornei eu. — Você foi apanhado em flagrante, e não confessando pode tornar a sua culpa mais hedionda. Basta confessar o que está em seu poder, dizendo-nos onde estão os berilos, e tudo será perdoado e esquecido.

“— Guarde o seu perdão para quem o peça — respondeu ele, virando-se com escárnio.

“Percebi que estava fora da minha influência, mas havia um remédio.

“Chamei o inspetor, que o prendeu. Fizeram uma busca, não só em sua pessoa, como em seu quarto e na casa toda, onde ele poderia ter escondido as gemas; mas nem o menor vestígio foi encontrado, e o miserável rapaz não quis abrir a boca, por mais persuadido e ameaçado que fosse.

“Hoje foi levado para uma cela, e eu, depois de passar por todas as formalidades com a polícia, apressei-me a vir ter com o senhor para lhe implorar que use sua grande habilidade para deslindar o assunto. A polícia já confessou que por ora não há meio de se descobrir coisa alguma. Pode despender quanto for preciso, já ofereci mil libras. Céus! Que farei? Perdi a minha honra, as gemas e o meu filho numa só noite. Oh, que farei?”

Colocou uma mão de cada lado da cabeça e balançou-se de um lado para o outro, choramingando como uma criança cuja tristeza não tinha limites.

Sherlock Holmes ficou calado uns minutos, com a testa enrugada e o olhar fixo no fogo.

— O senhor recebe muitas visitas? — perguntou.

— Nenhuma, a não ser o meu sócio com sua família e um amigo ou outro de Arthur. Sir George Burnwell tem ido lá diversas vezes ultimamente. Ninguém mais.

— E o senhor freqüenta a sociedade?

— Só Arthur. Mary e eu ficamos em casa. Nem um nem outro gosta de sair.

— As jovens quase nunca são assim.

— Ela é de natureza calma; além disso, não é muito jovem. Já fez vinte e quatro anos.

— Conforme o senhor disse, este caso foi um choque para ela também.

— Terrível! Ela ficou pior do que eu.

— Ambos estão certos da culpabilidade de seu filho?

— Como poderemos duvidar, quando eu o vi com a coroa na mão?

— Não considere isso prova conclusiva. O resto da coroa estava danificado?

— Sim, estava torta.

— Mas o senhor não acha que ele podia estar tentando endireitá-la?

— Deus o abençoe. O senhor tenta ajudá-lo, a ele e a mim. Mas é muito difícil. O que ele estava fazendo ali, em primeiro lugar? E se seu propósito era inocente, por que não falou?

— Precisamente. E, sendo culpado, por que não inventou uma mentira? Seu silêncio, segundo me parece, pode ser duplamente interpretado. Há diversos pontos esquisitos neste caso. O que disse a polícia a respeito do barulho que o acordou?

— Acharam que poderia ser o ruído da porta do quarto de Arthur se fechando.

— Uma história bonita! Como se um homem pronto para roubar fosse bater a porta para acordar a família inteira. E que disseram quanto à falta das gemas?

— Ainda estão retirando tábuas e inspecionando a mobília, na esperança de encontrá-las.

— Não se lembraram de procurar fora da casa?

— Sim, mostraram extraordinário interesse. Todo o jardim foi examinado minuciosamente.

— Agora, meu senhor — disse Holmes —, não vê que nisso tudo há uma coisa muito mais profunda do que o senhor ou a polícia estão inclinados a pensar? Parecia um caso simples; a mim parece-me excessivamente complexo. Considere o que está envolvido na sua teoria. O senhor supõe que seu filho se levantou da cama e foi, com grande risco, ao seu quarto de vestir, abriu a secretária, tirou a coroa, quebrando uma parte, embora à força, tendo-se dirigido em seguida para outro lugar, onde escondeu três das gemas com tanta habilidade que ninguém as encontra, e depois voltou com as outras trinta e seis gemas para o quarto, onde se expôs ao grande perigo de ser descoberto. Pergunto-lhe: é sustentável tal teoria?

— Mas pode haver outra? — exclamou o banqueiro com um gesto de desespero. — Se tem provas da sua inocência, por que não as apresenta?

— Compete a nós descobri-lo — replicou Holmes. — Agora, Sr. Holder, iremos a Streatham juntos, para investigar mais de perto os pormenores que temos.

Meu amigo insistiu para que eu fosse com eles nessa expedição, o que, aliás, eu desejava fazer, porque minha curiosidade e simpatia haviam sido profundamente despertadas pela história que ouvimos.

Confesso que a culpabilidade do filho do banqueiro me parecia tão evidente como ao seu infeliz pai; todavia, tinha tanta fé no julgamento de Holmes, que achei que havia uma esperança, uma vez que ele não estava satisfeito com as explicações dadas. Não falou durante a viagem, nos subúrbios; manteve-se sentado, com o queixo apoiado sobre o peito, o chapéu cobrindo-lhe os olhos e perdido na mais profunda meditação.

Nosso cliente parecia ter-se reanimado com aquele vislumbre de esperança que lhe havia sido apresentado e começou a falar-me um pouco sobre o seu trabalho. Uma viagem curta de trem, e outra menor, a pé, depressa nos levou a Fairbank, a modesta residência do banqueiro. Fairbank era uma casa de bom tamanho, de pedra branca, um pouco afastada da rua. Tinha uma entrada para carros com relvado, no momento coberta de neve, que se estendia na frente até os portões grandes, de ferro, que fechavam a propriedade. Ao lado direito alguns arbustos iam da rua até a porta da cozinha, que era a entrada de serviço.

À esquerda passava uma viela que levava aos estábulos, e que estava separada do resto da casa, pois era uma passagem pública, embora pouco freqüentada. Holmes deixou-nos à porta e andou vagarosamente ao redor da casa toda, atravessou a frente, passou pela viela e depois pelo jardim atrás dos estábulos. Tanto tempo levou, que o sr. Holder e eu entramos na sala de jantar e esperamos perto da lareira até que ele voltasse. Nisso abriu-se a porta e uma jovem entrou. Era de boa altura, magra, cabelos e olhos escuros, que a palidez do rosto parecia salientar mais ainda.

Não me lembro de jamais ter visto palidez tão mortal. Os lábios também não tinham sangue, e os olhos estavam inchados de tanto chorar, demonstrando ainda mais pesar do que o próprio tio, o que era mais notável nela porque deu a impressão de ser uma mulher de temperamento forte e com imensa capacidade de se controlar. Não fazendo caso da minha presença, chegou-se perto do tio e alisou-lhe a cabeça com carinho.

— Já deu ordem para que soltem Arthur, não é verdade, pai? — perguntou.

— Não, não, filha, o caso precisa ser investigado até o fim.

— Mas tenho certeza de que ele está inocente. O senhor sabe o que são os instintos femininos. Tenho certeza de que ele não fez mal nenhum e que o senhor se arrependerá de haver sido tão implacável.

— Mas por que ele não fala, se de fato está inocente?

— Quem sabe? Talvez esteja ofendido pelo fato de o senhor tê-lo acusado.

— Como podia deixar de suspeitar dele, quando o vi com a coroa nas mãos?

— Oh, mas ele só a pegou para examiná-la. Oh, faça o favor de acreditar na minha palavra, ele está inocente… Não diga mais nada a respeito do caso. É terrível pensar que o nosso caro Arthur esteja na cadeia.

— Não ficarei descansado enquanto as gemas não forem encontradas; nunca, Mary. Seu amor por Arthur a faz cega quanto aos defeitos dele e às medonhas conseqüências para mim. Longe de abafar o caso, trouxe um senhor de Londres para investigar melhor as coisas.

— Este senhor? — perguntou ela, virando-se para mim.

— Não, o amigo dele. Quis ficar trabalhando sozinho, e está agora na viela dos estábulos.

— Na viela dos estábulos! — Ela ergueu as sobrancelhas. — O que espera ele encontrar lá? Ah!, suponho que seja este. Espero, senhor, que seja bem sucedido em provar aquilo de que tenho a certeza; a verdade é que meu primo Arthur está inocente deste crime.

— Participo inteiramente da sua opinião — replicou Holmes, voltando para junto do capacho a fim de limpar a neve dos sapatos. — Penso que tenho a honra de falar com a Srta. Holder. Posso lhe fazer algumas perguntas?

— Rogo que as faça, se é que posso ajudar a esclarecer este caso horrível.

— A senhorita não ouviu barulho algum esta noite?

— Nada, até que meu tio começou a falar alto; isso ouvi, e desci logo.

— Foi a senhorita quem fechou as janelas e portas a noite passada. E fechou-as bem?

— Sim.

— Estavam fechadas esta manha?

— Estavam.

— Uma das empregadas parece que tem namorado. Creio que a senhorita disse a seu tio que ontem à noite ela saiu para encontrá-lo.

— Sim, é a mesma moça que serviu o café e que possivelmente ouviu as observações de meu tio a respeito da coroa.

— Está bem. A senhorita crê que ela saiu para contar ao namorado e que os dois possam ter planejado o furto.

— Mas qual é o propósito de toda essa conversa? — exclamou o banqueiro impacientemente. — Eu já lhe disse que vi a coroa na mão de Arthur.

— Espere um pouco, Sr. Holder. Devemos voltar a este ponto. Acerca dessa moça, Srta. Holder, presumo que a senhorita a viu voltar pela porta da cozinha.

— Sim, quando fui ver se a porta estava fechada, encontrei-a como que deslizando para dentro. Vi também o homem na escuridão.

— A senhorita o conhece?

— Oh, sim, é o vendedor que nos traz os legumes. Chama-se Francis Prosper.

— Estava à esquerda da porta, isto é, um pouco afastado? — perguntou Holmes.

— Sim, estava.

— E tem uma perna de pau?

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

Uma expressão de medo apareceu nos olhos negros da jovem.

— Mas o senhor é um mágico — afirmou ela. — Como sabe disso? — Ela sorriu, mas não havia um sorriso correspondente no rosto magro e sério de Holmes.

— Gostaria de subir agora aos quartos — disse ele. — Provavelmente, terei de dar outra volta à casa, e talvez seja melhor que observe as janelas antes de subir.

Andou vagarosamente de uma para outra das janelas, parando somente quando chegou à maior delas, a do vestíbulo, que dava para a viela dos estábulos. Abriu-a e examinou bem o peitoril com sua lente poderosa.

— Agora vamos subir — anunciou ele.

O quarto do banqueiro era muito simples, com tapete cinzento, o armário e um espelho comprido. Holmes foi à secretária em primeiro lugar e olhou bem para a fechadura.

— Qual a chave que foi usada para abri-la? — perguntou ele.

— Aquela que meu filho indicou, a do armário do quarto das malas.

— Está aqui?

— É aquela que está em cima da mesa do toucador.

Sherlock Holmes pegou-a e abriu o armário.

— É uma fechadura silenciosa. Não me admiro que não tivesse acordado. É aqui que está a coroa. Vamos examiná-la.

Abriu o porta-jóias e, tirando o diadema, colocou-o em cima da mesa. Era um espécime magnífico da arte de joalheria, e as trinta e seis pedras eram as mais belas que eu jamais havia visto. O lado da coroa de que fora arrancado o canto com as três gemas estava quebrado.

— Agora, Sr. Holder — disse Holmes —, aqui está o canto que corresponde ao que infelizmente foi perdido. Peço que o tire.

O banqueiro recuou, horrorizado.

— Eu nem sonharia experimentar isso.

— Então eu o farei. — E Holmes despendeu a maior força, mas sem resultado. — Sinto que está cedendo um pouco, mas, apesar de ter muita força nos dedos, seria difícil quebrá-lo. Um homem comum não poderia tê-lo feito. Ora vejamos, Sr. Holder, que é que acha que aconteceria se eu conseguisse quebrá-lo? Haveria um barulho como se tivessem dado um tiro, e o senhor quer me dizer que tudo isso aconteceu a poucos metros da sua cama e não ouviu nada?

— Nem sei o que pensar. É tudo tão obscuro para mim…

— Mas talvez possa clarear enquanto andamos; e a Srta. Holder, o que acha?

— Confesso que estou tão perplexa quanto meu tio.

— Seu filho estava descalço quando o senhor o viu?

— Estava só de camisa e calças.

— Obrigado. Tivemos muita sorte durante esta investigação, e será nossa exclusiva culpa se não acabarmos por esclarecer tudo. Se me dá licença, Sr. Holder, voltarei lá para fora.

Foi sozinho como pediu, porque explicou que pegadas desnecessárias poderiam tornar seu trabalho mais difícil. Por mais de uma hora esteve trabalhando por lá, mas finalmente voltou com os sapatos carregados de neve e a fisionomia tão impenetrável como sempre.

— Creio que já vi tudo o que há para ver, Sr. Holder — disse ele —, e posso servi-lo melhor voltando para o meu apartamento.

— E as gemas, Sr. Holmes? Onde estão?

— Isso não sei.

O banqueiro torceu as mãos.

— Nunca mais as verei! — exclamou ele. — E meu filho? Há alguma esperança de que seja inocente?

— Minha opinião quanto a ele continua inalterável.

— Então, em nome de Deus, que mistério foi perpetrado em minha casa ontem à noite?

— Se o senhor puder ir ao meu apartamento amanha entre as nove e as dez horas, ficarei satisfeito por esclarecer tudo melhor. Se compreendi bem, o senhor me dá toda a liberdade para representá-lo, contanto que lhe traga as gemas, e não há limite na quantia que posso gastar, sendo necessário.

— Darei minha fortuna para recuperá-las.

— Muito bem. Vou estudar o caso. Até mais; é muito possível que tenha de voltar aqui antes do anoitecer.

Percebi que meu amigo já tinha tirado as suas conclusões, mas em que consistiam nem vagamente pude imaginar. Diversas vezes na viagem de regresso procurei sondá-lo sobre o caso, mas ele se esquivava sempre para outro assunto, até que desisti, desanimado.

Ainda não eram quinze horas quando chegamos a casa. Ele dirigiu-se rápido para o seu quarto e desceu poucos minutos depois, vestido como um vagabundo, com a gola levantada, casaco velho, gravata vermelha e sapatos gastos; era um mendigo perfeito.

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

— Creio que isto deve servir — disse ele, olhando para o espelho colocado acima da lareira. — Gostaria que você pudesse me acompanhar, Watson, mas creio que não daria certo. Talvez esteja na pista correta deste caso, ou talvez seja apenas alarme falso; porém, daqui a pouco saberei o que é, e espero voltar dentro de poucas horas.

Cortou um pedaço de carne assada e, com duas fatias de pão, fez um bom sanduíche, que colocou no bolso; depois, saiu para a sua expedição.

Eu já havia acabado o lanche quando ele voltou, alegre, agitando uma bota com elásticos. Atirou-a para um canto e serviu-se de uma chávena de chá.

— Só entrei de passagem — disse ele. — Vou continuar a viagem.

— Para onde?

— Oh! Para o lado do West End. Pode ser que não volte cedo. Não precisa me esperar, caso volte tarde.

— E como vai o caso?

— Oh, assim, assim. Não há razão para queixas. Estive em Streatham depois que saí, mas não fui à casa. É um problema muito interessante, e não o teria perdido por coisa alguma. Em todo caso, não posso ficar aqui tagarelando, pois preciso trocar esta roupa pouco respeitável e regressar à minha nobre pessoa.

Percebi que ele tinha inúmeras razões para estar satisfeito, mais pela sua fisionomia do que pelo que disse. Os olhos brilhavam, o rosto estava corado, em vez da habitual palidez. Subiu depressa para o quarto, e, poucos minutos depois, ouvi bater a porta da frente, o que foi sinal para mim de que havia saído outra vez para a sua genial caçada.

Esperei-o até a meia-noite, mas, como ele não voltasse, fui para o meu quarto.

Não era novidade o fato de ele ficar fora de casa noites e dias quando tinha uma boa pista, e por isso não me preocupei. Não sei a que horas voltou, só sei que, quando desci para o café da manhã, lá estava ele, com uma chávena de café numa mão e o jornal na outra, tão elegante e aprumado quanto era possível.

— Desculpe-me não ter esperado, Watson — disse ele —, mas deve estar lembrado de que nosso cliente tem um compromisso hoje muito cedo.

— Já passa das nove horas, e estão tocando a campainha; não me admiraria se fosse ele.

Era mesmo o banqueiro. Sofri um choque quando vi o rosto dele, porque, em vez de largo e cheio, estava magro e esquálido, e o cabelo parecia mais branco. Entrou com ar cansado e letárgico, pior que a atitude violenta do dia anterior. Sentou-se numa poltrona que eu lhe apontei.

— Não sei o que fiz para ser tão duramente castigado — principiou ele. — Há dois dias apenas era um homem feliz e próspero, sem uma preocupação sequer. Agora estou sozinho e desonrado. A uma infelicidade, segue-se logo outra. Minha sobrinha deixou-me.

— Deixou-o?

— Sim, a cama dela não foi usada esta noite. O quarto está vazio, e havia um bilhete em cima da mesa do vestíbulo. Ontem à noite eu lhe disse que se ela tivesse se casado com o meu rapaz ele não teria feito essas coisas. Talvez tenha sido o egoísmo o que me fez falar. O bilhete dizia:

“Meu caro tio:

Sinto que é por minha causa que está sofrendo, e que se eu tivesse agido de outra maneira este infortúnio não teria acontecido. Não posso, portanto, por me lembrar constantemente disso, continuar em sua casa, e acho que devo ir embora para sempre. Não se preocupe quanto ao meu futuro, porque já está acertado; e, acima de tudo, não procure saber onde estou, porque será trabalho perdido e serviço mal-empregado. Na vida ou na morte,

sua sempre afeiçoada

Mary”.

— O que será que ela quer dizer com isso, Sr. Holmes? O senhor acha que indica suicídio?

— Não, nada disso. É sem dúvida uma solução melhor. Espero, Sr. Holder, que o senhor esteja chegando ao fim das suas aflições.

— Ah, o senhor diz isso! Já soube então de alguma coisa, Sr. Holmes? Onde estão as gemas?

— O senhor não acharia demais pagar mil libras por cada uma?

— Pagaria dez.

— Não será necessário. Três mil cobrirão a despesa. E há também uma gorjeta, não? O senhor trouxe o seu talão de cheques? Aqui está uma caneta. É melhor assinar quatro mil.

Com o olhar fixo, o banqueiro assinou o cheque. Holmes foi para a sua escrivaninha, tirou uma peça triangular de ouro com três gemas incrustadas e atirou-a para cima da mesa.

Gritando de alegria, o cliente agarrou-as:

— O senhor as tem! Estou salvo! Estou salvo!

A reação foi tão apaixonada quanto havia sido a sua aflição, e ele apertou as gemas contra o peito.

— Há mais uma coisa que o senhor está devendo, Sr. Holder — disse Sherlock Holmes, um tanto severamente.

— Devo? — Nisso pegou a caneta. — Diga a soma e pagarei.

— Não, não é a mim que o senhor deve, mas deve pedir humildemente desculpas àquele nobre rapaz, seu filho, que se portou tão bem neste caso que eu ficaria orgulhoso se um filho meu se comportasse assim, caso viesse a ter um filho um dia!

— Então, não foi Arthur quem as tirou?

— Eu lhe disse ontem, e repito-o hoje, não foi ele.

— O senhor tem certeza disso? Então deixe-me ir imediatamente ter com ele e contar-lhe que já se sabe a verdade.

— Ele já sabe. Logo que terminei, fui ter com ele, e, vendo que não me contaria a história, vi-me obrigado a contá-la, e ele teve de confessar que eu tinha razão e adicionou alguns pormenores que não estavam bem claros. As novidades de hoje talvez lhe façam abrir a boca.

— Pelo amor de Deus, então, conte-me que estranho mistério é este!

— Eu o farei e lhe direi os passos que dei para descobri-lo. Todavia, deixe-me dizer-lhe primeiramente o que é mais difícil para mim contar-lhe. E para o senhor, ouvir. Houve uma combinação entre Sir George Burnwell e sua sobrinha Mary, e eles fugiram juntos.

— Minha Mary? Impossível!

— Infelizmente é mais do que possível, é certo; nem o senhor nem seu filho perceberam o verdadeiro caráter desse homem, a quem o senhor permitiu a entrada no círculo de sua família. É um dos mais perigosos da Inglaterra… jogador arruinado, vagabundo desesperado, homem sem coração nem consciência. Sua sobrinha não conhecia indivíduos assim. Quando ele soprou frases de amor aos ouvidos dela, como havia feito a centenas de outras, ela sentiu-se lisonjeada e julgou que era a única que lhe tocara o coração. Só o diabo sabe o que ele disse, mas finalmente ela tornou-se um instrumento nas mãos dele, e via-o todas as noites.

— Não posso, não quero crer nisso! — gritou o banqueiro com o rosto lívido.

— Eu lhe contarei então o que aconteceu naquela noite.

“Sua sobrinha, julgando que o senhor já estivesse deitado, desceu e foi falar com o namorado pela janela que abre para a viela dos estábulos. As pegadas dele estavam marcadas na neve, tanto tempo ali esteve. Ela contou-lhe o caso da coroa. Sua cobiça pelo ouro foi atiçada, e ele conseguiu manejá-la à sua vontade. Não duvido de que ela fosse afeiçoada ao senhor, mas há mulheres para quem o amor ao namorado suplanta o amor aos outros, e parece-me que ela era uma dessas. Mal tinha ouvido o que ele lhe disse para fazer, quando viu o senhor descer as escadas; então fechou rapidamente a janela e contou a história da empregada e do namorado, que, aliás, é verdadeira.

“Seu filho Arthur foi para a cama depois da entrevista com o senhor, mas tão perturbado estava por causa das dívidas no clube que não pôde dormir. À meia-noite ouviu passos leves no corredor, levantou-se, abriu a porta, olhou para fora e ficou surpreso ao ver a prima deslizando silenciosamente ao longo do corredor até entrar no seu quarto de vestir. Petrificado de admiração, o rapaz vestiu a roupa e esperou ali no escuro para ver o que aconteceria. Ela saiu logo em seguida do quarto, e pela luz do corredor ele a viu levando a coroa nas mãos. Ela desceu a escada, e ele, horrorizado, correu e escondeu-se atrás da cortina perto da sua porta, de onde pôde ver o que acontecia embaixo, no vestíbulo. Viu-a abrir devagarinho a janela, entregar a coroa a alguém na escuridão e apressar-se a voltar para o quarto, passando muito perto de onde ele estava escondido. Enquanto ela estava em cena, ele não pôde agir sem expor escandalosamente a mulher que amava. Mas no momento em que ela desapareceu, ele lembrou-se da fatalidade esmagadora que isso seria para o senhor e como era importante remediar as coisas. Desceu às pressas como estava, descalço, abriu a janela e pulou para a neve; desceu a viela, na qual pôde ver, à luz da lua, uma figura escura a caminhar.

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

“Sir George Burnwell tentou fugir, mas Arthur segurou-o e houve luta entre eles, seu filho puxando de um lado a coroa e o antagonista, do outro. Na luta, o rapaz golpeou Sir George e feriu-o num olho; nisso alguma coisa estalou, e seu filho, vendo que tinha a coroa nas mãos, voltou correndo, fechou a janela e subiu ao quarto. Mal acabara de ver que a coroa estava torcida pela luta e se esforçava por endireitá-la, quando o senhor apareceu em cena.”

— Será possível? — murmurou o banqueiro.

— O senhor o irritou, ofendendo-o com palavras injustificáveis no momento em que ele se sentia digno da sua gratidão.

“Não podia explicar a verdade sem trair quem não merecia nenhuma consideração da sua parte. Portou-se de modo cavalheiresco guardando o segredo dela.”

— Então foi por isso que ela gritou e desmaiou quando viu a coroa — exclamou Holder. — Oh, meu Deus, que pobre cego tenho sido! E ele pediu licença para sair por cinco minutos! Queria ver se o pedaço quebrado estava no local da luta. Como fui cruel com ele!

— Quando cheguei a sua casa, andei imediatamente ao redor dela para ver se havia quaisquer sinais na neve, pois sabia que não voltara a nevar desde ontem; além disso tinha geado, o que serviu para acentuar qualquer impressão. Por onde andaram os fornecedores estava tudo indecifrável, porém, adiante e perto da porta da cozinha, uma mulher estivera conversando com um homem durante muito tempo, e uma impressão redonda mostrava que ele tinha uma perna de pau. Percebi até que eles estiveram perturbados com qualquer coisa, porque a mulher tinha corrido para a porta. Isso foi provado pela pegada funda da ponta dos pés e pelo fato de o calcanhar quase não ter deixado sinal. O perna-de-pau tinha esperado um pouco, depois fora embora. Julguei que poderia ser a empregada de quem o senhor me falou. Passei para o jardim sem ver nada, a não ser rastos desconexos que pensei serem da polícia, mas, quando cheguei à viela, uma história longa e complexa estava escrita na neve, diante de mim. Havia pegadas duplas, umas eram de um homem de botas, e as outras, que me alegraram ao vê-las, eram de um homem descalço. Fiquei convencido de que eram de seu filho, conforme o senhor tinha dito. O primeiro apenas andara, mas o segundo tinha corrido; em certos lugares, chegara mesmo a pisar por cima dos sinais das botas, prova de que seguira o outro. Acompanhei as pegadas e vi que levavam à janela do vestíbulo onde “Botas” havia pisado a neve enquanto esperava. Uns cem metros adiante, vi que Botas se voltara; parecia ter havido uma luta, e finalmente vi uns pingos de sangue que comprovaram a suposição. Botas correra, continuara correndo pela viela, e mais adiante, vi outro sinal de sangue, o que provava que era ele que tinha sido ferido. Quando, ao fim da viela, começava a estrada, vi que a calçada tinha sido varrida, não deixando mais sinais. Tinha se acabado aquela pista. Examinei depois o peitoril da janela do vestíbulo com minha lente, e vi que alguém tinha saído por lá. Também distingui o sinal de um pé úmido que havia entrado por ali, e comecei a formular idéias quanto ao que tinha acontecido. Um homem esperara do lado de fora da janela e alguém lhe trouxera as gemas; o ato fora visto por seu filho, que perseguira o ladrão, e lutara com ele. Puxando ambos pela coroa, causaram-lhe estragos que nem um nem outro poderiam ter feito sozinhos. Seu filho voltou com o prêmio, mas tinha deixado um pedaço na mão do adversário. Até aí estava claro, e a questão agora era: quem seria o homem, e quem trouxera a coroa? É provérbio meu que, tendo excluído tudo o que é impossível, aquilo que fica, por mais improvável que pareça, é a verdade. Sabia, naturalmente, que não era o senhor que tinha trazido a coroa para baixo, e por isso restavam só sua sobrinha e as empregadas. Mas se fosse uma das empregadas, por que haveria seu filho de se deixar acusar no lugar dela? Não havia razão nenhuma. Como ele amava a prima, havia ali uma excelente explicação para que ele guardasse um segredo… muito mais um segredo de caráter degradante. Quando me lembrei de que o senhor a tinha visto àquela janela e de que ela desmaiara ao ver de novo a coroa, minha conjectura transformou-se em certeza. Mas quem era o cúmplice? Amante, sem dúvida, pois quem melhor podia sobrepujar o amor e a gratidão que ela sentia pelo senhor? Sabia que saíam pouco e que tinham poucos amigos, mas que um deles era Sir George Burnwell. Tinha ouvido falar dele como sendo um homem de reputação vil entre as mulheres.

“Devia ser ele o homem de botas que levara as gemas. Embora soubesse que Arthur o tinha descoberto, ainda podia se gabar de que estava fora de perigo, porque o rapaz não poderia abrir a boca sem comprometer a própria família.

“O bom senso sugeriu-me o que tinha a fazer em seguida. Fui vestido como um vagabundo até a casa de Sir George Burnwell, conversei com o lacaio e soube que o patrão tinha ferido a cabeça na noite anterior. Finalmente, por cinco xelins, consegui comprar um par de sapatos velhos dele. Levei-os a Streatham e verifiquei que eram exatamente iguais às pegadas que lá havia.”

Sidney Paget, 1892

Sidney Paget, 1892

— Eu vi um vagabundo maltrapilho ontem na viela — disse o Sr. Holder.

— Precisamente, era eu. Vi que tinha o homem seguro, voltei para casa e mudei de roupa. As coisas agora tornavam-se muito delicadas: não podia haver processo, pois o escândalo devia ser evitado a todo custo; também sabia que um velhaco tão astuto veria que tínhamos as mãos atadas, e decidi ir vê-lo. A princípio, naturalmente, ele negou tudo, mas quando lhe repeti como os fatos tinham acontecido, ele tentou fazer bravata e tirou um cacete, mas eu lhe apontei um revólver à cabeça antes que ele pudesse mover-se. Tornou-se mais razoável. Disse-lhe que pagaria um bom preço pelas pedras que tinha… mil libras cada uma. Isso lhe trouxe os primeiros sinais de arrependimento.

“— Ora bolas — disse ele —, já as vendi por seiscentas libras as três!

“Depois que lhe prometi que não haveria processo, ele logo me revelou o endereço da pessoa que as tinha comprado. Lá fui eu, e, depois de muita discussão, obtive as pedras por mil libras cada uma. Depois fui visitar seu filho para dizer-lhe que estava tudo bem. Finalmente cheguei a casa e fui para a cama às duas horas, depois daquilo que se pode chamar um dia cheio.”

— Um dia que salvou a própria Inglaterra de um escândalo público — disse o banqueiro, levantando-se. — Senhor, não tenho palavras para lhe agradecer, mas não me há de achar ingrato por tudo quanto fez. Sua habilidade ultrapassa tudo quanto eu jamais ouvi dizer. Agora vou ver meu filho, pedir-lhe desculpas por tê-lo acusado tão injustamente e por lhe ter feito tanto mal. Quanto à minha pobre Mary, lamento profundamente, mas nem sua habilidade me poderá informar onde ela está agora?

— Julgo que, com toda a segurança, podemos dizer que, onde ela está, também está Sir George Burnwell. É igualmente certo que, quaisquer que sejam os seus pecados, depressa serão suficientemente punidos.

1892
As aventuras de Sherlock Holmes

1. Um escândalo na Boêmia § 2. A liga dos cabeças vermelhas
3. Um caso de identidade § 4. O mistério do vale Boscombe
5. As cinco sementes de laranja § 6. O homem da boca torta
7. O carbúnculo azul § 8. A faixa malhada
9. O polegar do engenheiro § 10. O solteirão nobre
11. A coroa de berilos § 12. As faias cor de cobre

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock