O vale do terror – Primeira parte, Capítulo 2

Arthur Conan DoyleO vale do terror

Primeira parte: A tragédia de Birlstone

Título original: The Valley of Fear
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1915-15.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Valley of Fear publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Lígia Junqueiro.

Capítulo segundo: Sherlock Holmes discorre

Era um desses momentos intensamente dramáticos pelos quais o meu amigo daria tudo. Exagerado seria afirmar que ele se sentia escandalizado ou excitado com a extraordinária notícia. Apesar de jamais ter demonstrado o menor indício de crueldade no seu temperamento singular, estava evidentemente calejado pela constante superexcitação. Todavia, se era insensível a emoções, suas faculdades intelectuais viviam em contínua atividade. Não se percebia nele, pois, nenhum vestígio do horror que eu próprio sentia em face daquela rude declaração. O seu rosto, pelo contrário, apresentava a aparência tranqüila e interessada do químico que vê os cristais dimanarem, segundo a fórmula desejada, de uma solução super saturada.

— Notável! — exclamou ele. — Notável!

— O senhor parece não ter ficado surpreso.

— Interessado, sim, Mac, dificilmente, porém, surpreso. Por que havia eu de me surpreender? Recebo um aviso anônimo, de procedência que reconheço ser importante, prevenindo-me de que perigo iminente ameaçava certa pessoa. No espaço de uma hora venho a saber que se consumou a ameaça e que a pessoa se encontra morta. Sinto-me interessado, mas, como pode notar, não estou surpreso.

Em breves palavras, Holmes explicou ao inspetor os fatos referentes à carta e à mensagem cifrada. Com o queixo apoiado nas mãos e as grossas sobrancelhas ruivas confundidas num todo avermelhado, MacDonald ouvia-o, absorto.

— Ia a Birlstone agora de manhã — disse. — Passei por aqui para lhe perguntar se desejava acompanhar-me… o senhor e o seu amigo. Mas, pelo que me diz, talvez fosse melhor ficarmos aqui em Londres.

— Não creio — proferiu Holmes.

— Sr. Holmes! — exclamou o inspetor. — Dentro de um ou dois dias, os jornais explorarão minuciosamente o mistério de Birlstone; mas onde está o mistério se existe um homem em Londres que profetizou o crime antes de ele ter ocorrido? A única coisa que nos cabe fazer é pôr as mãos no homem. O resto é fácil.

— Sem dúvida, Mac. Mas de que maneira tenciona apanhar o tal Porlock?

MacDonald restituiu a carta que Holmes lhe havia entregado.

— Colocada no correio em Camberwell… isso não nos ajuda muito. O nome, como o senhor diz, é fictício. Também, portanto, em nada nos auxilia. O senhor não disse que já lhe tem enviado dinheiro?

— Por duas vezes.

— E de que maneira?

— Em notas, para a agência postal de Camberwell.

— Nunca se preocupou em saber quem o recebia?

— Não.

O inspetor parecia perplexo e um tanto escandalizado.

— E por quê?

— Porque tenho o costume de cumprir a minha palavra. Tinha-lhe prometido, da primeira vez em que ele me escreveu, não tentar descobrir sua identidade.

— Julga que há alguém por trás dele?

— Sei que há.

— O tal professor de que me falou?

— Exatamente.

O inspetor MacDonald sorriu, e, ao relancear-me os olhos, percebi-lhe certa agitação das pálpebras.

— Não posso ocultar-lhe, sr. Holmes, que nós, do Departamento Central de Polícia, sabemos que o senhor tem uma cismazinha com esse professor. Realizei certas investigações sobre o assunto. Ele parece ser pessoa muito respeitável, erudita e capaz.

— Alegro-me pelo fato de você ter sabido reconhecer-lhe o talento.

— Não podia deixar de reconhecê-lo. Depois que soube da sua opinião a respeito dele, não descansei enquanto não o conheci. Tive uma conversa com ele sobre eclipses… como a conversa tomou esse rumo não sei lhe dizer… e ele foi tão brilhante, com o auxílio de um refletor e de um livro, que, não me envergonho de o dizer, estava um pouco acima do meu entendimento, apesar de eu ter recebido uma boa educação em Aberdeen. Ele teria dado um bom sacerdote, com o seu rosto fino, cabelo grisalho e a maneira solene de falar. Ao pôr-me a mão no ombro, quando nos despedimos, fê-lo como um pai que abençoa o próprio filho antes de deixá-lo partir pelo mundo frio e cruel.

Holmes riu consigo mesmo e esfregou as mãos.

— Magnífico! — disse. — Fantástico! Diga-me, amigo MacDonald: essa tocante e agradável entrevista deu-se, suponho eu, no gabinete do professor Moriarty?

— Precisamente.

— Uma linda sala, não é?

— Muito bonita… muito elegante, de fato, sr. Holmes.

— Você se sentou diante da escrivaninha dele?

— Justamente.

— O sol lhe batia nos olhos e o rosto do professor estava na sombra?

— Bem, a coisa foi à noite; lembro-me, porém, de haver uma lâmpada cuja luz fora dirigida para mim.

— Não podia deixar de ser. Chegou a notar um quadro que fica acima da poltrona do professor?

— Muito pouca coisa me escapa, sr. Holmes. É possível que tenha aprendido isso com o senhor. De Fato, vi o quadro… uma jovem com a cabeça apoiada nas mãos e que parece fitar-nos com o canto do olho!

— Essa pintura é de Jean-Baptiste Greuze.

O inspetor esforçava-se por se mostrar interessado.

— Jean-Baptiste Greuze — continuou Holmes, unindo as pontas dos dedos e recostando-se melhor na poltrona — foi um pintor francês que se distinguiu entre 1750 e 1800. Refiro-me, é claro, ao período da sua atividade. A crítica moderna tem reforçado amplamente a excelente reputação que dele formaram os seus contemporâneos.

Os olhos do inspetor traíam-lhe o desinteresse.

—- Não seria melhor… — começou ele.

— É justamente o que estamos fazendo — interrompeu Holmes; — Tudo isso de que estou falando tem uma relação muito direta e vital com o que o senhor chama o mistério de Birlstone. De fato, ate certo ponto pode ser considerado o âmago da questão.

MacDonald sorriu fracamente e olhou-me como a implorar-me auxílio.

— Seu pensamento é demasiado rápido para as minhas possibilidades, sr. Holmes. O senhor deixa certos pontos sem ligação, e não consigo completar o sentido. Por mais que dê tratos à bola, não consigo ver a menor relação entre o pintor há muito falecido e o caso de Birlstone.

— Não existe conhecimento inútil para um policial — observou Holmes. — Mesmo o fato trivial de que em 1865 um quadro de Greuze, intitulado La jeune fille à l ‘agneau, alcançou nada menos que quatro mil libras no leilão de Portalis pode dar vazão a uma série de reflexões.

As palavras de Holmes produziram efeito. O inspetor mostrou-se imediatamente interessado.

— Devo ainda lembrar-lhe — continuou Holmes — que o salário do professor pode ser verificado em várias fontes dignas de crédito. Monta a setecentas libras por ano.

— Então como pôde ele comprar…

— Perfeitamente. De que modo?

— Na verdade, isso é esquisito — disse o inspetor, pensativo. — Continue, sr. Holmes. Estou gostando de ouvi-lo. O que me diz é muito precioso.

Holmes sorriu. A admiração sincera jamais deixava de emocioná-lo, caracterizando nele o verdadeiro artista.

— E a nossa ida a Birlstone? — perguntou.

— Ainda temos tempo — respondeu o inspetor, consultando o relógio. — Tenho um carro à porta, e não levaremos nem vinte minutos até a Estação Victoria. Mas, voltando ao quadro… creio tê-lo ouvido dizer uma vez, sr. Holmes, que nunca havia se encontrado com o professor Moriarty.

— Com efeito, nunca me encontrei com ele.

— E como está tão bem informado a respeito de sua casa?

— Ah! Isso é outro assunto. Já estive lá três vezes: duas, à sua espera, sob diferentes pretextos e retirando-me antes que ele aparecesse. E uma vez… bem, é difícil explicá-lo a um agente da polícia oficial. Foi nessa última ocasião que tomei a liberdade de examinar rapidamente os papéis dele, com resultados inteiramente imprevistos.

— Encontrou algo de comprometedor?

— Absolutamente nada. E foi isso o que me assombrou. Em todo caso, você já percebeu agora por que dou tanta importância ao quadro. Isso revela que ele é um homem riquíssimo. Como conseguiu fazer fortuna? É solteiro; o irmão mais novo é chefe de estação no oeste da Inglaterra; a cátedra de professor rende-lhe setecentas libras por uno, e, no entanto, ele possui um Greuze.

— E então?

— A conclusão é clara.

— O senhor quer dizer que ele deve ter uma renda fabulosa e que essa renda é obtida por meios ilícitos?

— Exato. Naturalmente, tenho outras razões para pensar assim… dezenas de pequeníssimos fios que conduzem vagamente para o centro da teia onde a peçonhenta criatura aguarda as suas presas. Limito-me a citar o Greuze porque ele traz o assunto para o campo das suas próprias observações.

— Pois bem, sr. Holmes. Reconheço ser muito interessante o que o senhor diz. Mais do que interessante… fantástico. Gostaria, porém, que se expressasse mais claramente, se lhe fosse possível. Trata-se de adulteração de dinheiro, cunhagem de moeda falsa ou roubo? De onde lhe vem o dinheiro?

— Já leu alguma coisa sobre Jonathan Wild?

— O nome não me é desconhecido. Deve ser algum personagem de novela! Não dou muita atenção a contos policiais, onde aparecem tipos que agem sempre sem jamais nos deixar compreender como fazem para obter resultados. Isso é apenas imaginação, não é coisa real.

— Jonathan Wild não era um policial, nem personagem de conto policial. Era um criminoso consumado e viveu no século passado, cerca de 1750.

— Então não me interessa. Sou um homem prático.

— A coisa mais prática que você podia fazer na vida, amigo Mac, seria recolher-se por três meses e ler, doze horas por dia, os anais do crime. Tudo se repete em ciclos, até mesmo o professor Moriarty. Jonathan Wild era a força oculta dos criminosos de Londres, a cujo serviço pôs a sua inteligência e organização, mediante uma comissão de quinze por cento. A história repete-se. Tudo o que já aconteceu, sempre acontecerá. Vou lhe contar certas coisas de Moriarty que talvez lhe sejam úteis.

— Não tenho dúvidas a esse respeito.

— Sei quem figura como elo principal desta cadeia… cadeia cujas extremidades são este Napoleão do mal e uma centena de malandros dispostos a tudo, batedores de carteira, chantagistas, batoteiros, com toda a espécie de crimes de permeio. O chefe do seu estado-maior é o coronel Sebastian Moran, indivíduo circunspecto e precavido, tão inacessível à lei como o chefe supremo. Sabe quanto Moriarty paga a esse homem?

— Gostaria de saber.

— Seis mil libras por ano. Recompensa pelo trabalho intelectual…o princípio americano de realizar negócios. Soube desse pormenor por mero acaso. Isso representa mais do que ganha o primeiro-ministro, e serve para dar uma idéia dos lucros de Moriarty e da escala em que ele opera. Outra coisa. Dediquei-me ultimamente a investigar alguns dos seus cheques… cheques comuns com que paga as contas domésticas. Verifiquei serem sacados contra seis bancos diferentes. Que pensa disso?

— Muito estranho, sem dúvida. E qual é a sua conclusão?

— De que ele não quer comentários acerca da sua fortuna. Pessoa alguma pode saber quanto ele possui. Não hesito em acreditar que tenha dinheiro em vinte bancos… a maior parte provavelmente no exterior, no Deutsche Bank ou no Crédit Lyonnais. Um dia, quando puder dispor de um ou dois anos, recomendo-lhe o estudo da personalidade do professor Moriarty.

A impressão causada no inspetor MacDonald por essa conversa aumentava de intensidade à medida que ela prosseguia. Seu interesse absorvera-o inteiramente. De súbito, o senso prático de escocês fê-lo regressar ao assunto em vista.

— Em todo caso, isso fica para mais tarde. O senhor me entreteve com sua interessante narrativa, mas o que realmente importa em tudo isso, sr. Holmes, é a sua observação de que há alguma relação entre o professor e o crime, inferida do aviso recebido através do tal Porlock. Podemos ir mais além no que concerne às nossas necessidades práticas do momento?

— Podemos fazer uma idéia dos motivos do crime, que é, como deduzo das suas primeiras afirmações, incompreensível ou, pelo menos, inexplicável. Ora, supondo que a origem do crime seja a que suspeitamos, é possível imagina dois motivos diferentes. Antes de tudo, devo dizer-lhe que Moriarty governa os seus homens com mão de ferro. Sua disciplina é inexorável. Existe apenas uma punição no código: a morte. Podemos estabelecer, assim, a hipótese de que a vítima… Douglas, cuja sorte iminente era conhecida de um dos subordinados do criminoso-mor… tivesse, de algum modo, traído o chefe. Sobreveio-lhe o castigo, que deveria ser conhecido de todos, quanto mais não fosse para aterrá-los com a idéia de idêntico destino.

— Essa é uma das hipóteses, sr. Holmes.

— A outra é que este crime foi engendrado por Moriarty com intuito de lucro, como tantos outros, dentro da sua atividade rotineira. Houve roubo?

— Ainda não sei.

— Se houve, isso certamente favorecerá a segunda hipótese contra a primeira. É provável que Moriarty tenha sido encarregado de arquitetá-lo com a promessa de ficar com parte dos despojos ou mediante pagamento de determinada quantia. Mas, seja qual for e se houver ainda uma terceira combinação, é em Birlstone que devemos procurar a solução do problema. Conheço o nosso homem demasiadamente bem para supor que ele tivesse deixado aqui qualquer indício que nos permitisse desmascará-lo.

— Então é a Birlstone que devemos ir! — exclamou MacDonald, erguendo-se de um salto. — Com os diabos! É mais tarde do que eu pensava. Dou-lhes apenas cinco minutos para se prepararem; nem mais um instante.

— É mais do que suficiente para nós dois — disse Holmes, levantando-se rapidamente e apressando-se a trocar o roupão pelo casaco. — Peço-lhe o obséquio, Mac, de nos contar, durante o caminho, tudo o que sabe acerca deste caso.

Tudo o que o inspetor sabia do caso provou ser lamentavelmente pouco, mas mesmo assim era o bastante para nos convencer de que o problema bem podia ser merecedor da maior atenção do grande policial. Seu rosto iluminou-se e ele esfregou as mãos finas, ao ouvir os parcos mas interessantes pormenores. Acabávamos de passar uma longa série de semanas estéreis, e finalmente aparecia um assunto digno das faculdades admiráveis que, como todos os dons especiais da natureza, se tornam enfadonhas para o seu possuidor, quando não estão em atividade. Aquele cérebro, aguçado qual fio de navalha, tornava-se embotado e como que enferrujado quando inativo. Os olhos de Sherlock Holmes brilharam, a sua face pálida adquiriu um tom mais vivo e todo o semblante demonstrou satisfação íntima ao ver aproximar-se a ocasião de pôr à prova a sua capacidade. Curvado sobre o banco da frente do vagão, ouvia atentamente a breve exposição de MacDonald com referência ao problema que nos aguardava em Sussex, o qual, por sua vez, fundava-se, como ele mesmo nos explicou, num bilhete escrito às pressas e que lhe fora enviado pelo trem recoveiro às primeiras horas da madrugada. White Mason, o agente da polícia local, era seu amigo pessoal, e daí o fato de ele ter sido avisado com muito mais presteza do que é hábito na Scotland Yard quando um funcionário da província necessita da polícia central. O agente metropolitano geralmente tem de se haver, nesses casos, com a falta quase absoluta de pista.

“Caro inspetor MacDonald”, dizia o bilhete que ele nos deu, “a requisição oficial de seus serviços encontra-se em envelope separado. Esta nota é para seu uso particular. Telegrafe-me comunicando qual o trem da manhã que pode apanhar para Birlstone, e eu irei esperá-lo — ou mandarei alguém à estação, se estiver muito ocupado. Este caso é desconcertante. Não perca tempo; venha imediatamente. Se puder trazer o sr. Holmes, não vacile, pois ele encontrará aqui algo a seu gosto. Podia-se imaginar que tudo fora arranjado com o fito de produzir um efeito teatral, se não houvesse um morto de permeio. Palavra que tudo isto é um quebra-cabeça desconcertante.”

— Seu amigo parece não ser tolo — comentou Holmes.

— Nada tolo; White Mason é muito esperto, se a minha opinião tem algum valor.

— Bem, há mais alguma coisa?

— Apenas que ele nos dará todos os pormenores quando lá chegarmos.

— Então como soube que o sr. Douglas foi barbaramente assassinado?

— Isso vem no relatório oficial incluso. Ele não usa a palavra “barbaramente”, que não é termo oficialmente reconhecido. Refere-se a John Douglas dizendo que os ferimentos localizados na cabeça são provenientes de uma descarga de arma de fogo. Menciona também a hora em que foi dado o alarme… ontem, cerca da meia-noite, acrescentando tratar-se indiscutivelmente de crime, apesar de não ter sido efetuada prisão alguma, e que o caso se reveste de um aspecto confuso, fora do comum. É tudo quanto sabemos até agora, sr. Holmes.

— Então, se nos permite, deixaremos a coisa nesse ponto, Mac. A tentação de formar teorias prematuras sobre dados insuficientes é o mal da nossa profissão. Por ora, vejo somente duas coisas com clareza: um cérebro prodigioso em Londres e um morto em Sussex. É a conexão entre ambas que vamos procurar descobrir.

Primeira Parte
A Tregédia de Birlstone

Capítulo 1 – O aviso § Capítulo 2 – Sherlock Holmes discorre
Capítulo 3 – A Tragédia de Birlstone § Capítulo 4 – Trevas
Capítulo 5 – As personagens do drama § Capítulo 6 – Um réstia de luz
Capítulo 7 – A solução

Segunda Parte
Os Vingadores

Capítulo 1 – O homem § Capítulo 2 – O grão-mestre
Capítulo 3 – Loja 341, Vermissa § Capítulo 4 – O vale do terror
Capítulo 5 – A hora mais negra § Capítulo 6 – Perigo
Capítulo 7 – Birdy Edwards na ratoeira

Epílogo

Ilustrações: Frank Wiles, cortesia The Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock