Sherlock Holmes está vivo

Por James Stewart-Gordon
Condensado de Seleções do Reader’s Digest, 1962

Sir Sydney Smith, grande detective-médico da Inglaterra,
seguiu os passos do herói de Conan Doyle
– provando com freqüência que o crime real
é mais emocionante do que a ficção

Sir Sydney Smith

Sir Sydney Smith

COMO PARTE de seu trabalho da manhã, um jovem médico da seção médico-legal do Ministério da Justiça do Cairo recebeu um pacote lacrado contendo três ossinhos. O memorando de rotina da polícia dizia que esses ossos tinham sido encontrados no fundo de um poço seco. “Parecem pertencer a algum animal que caiu no poço”, acrescentava o memorando. “Quer dar-se ao trabalho de verificar?”.

Dentro em pouco, o médico, um neozelandês pequeno, de faces coradas, chamado Smith, voltou com o seu laudo.

– Os ossos – disse ele – são de uma mulher entre 23 e 25 anos. Morreu há três meses, teve pelo menos uma gravidez, coxeava, foi morta por uma bala de espingarda comum e ainda viveu de sete a dez dias depois do tiro.

– Pode adivinhar a cor dos olhos dela? – perguntou sarcasticamente um policial.

– Creio que eram castanhos – respondeu o Dr. Smith, fazendo cair do olho o permanente monóculo.

A polícia investigou o caso. Descobriu-se com espanto que uma egípcia franzina e coxa, que tivera um filho, desaparecera havia cerca de três meses. Depois das investigações a polícia prendeu o pai da mulher; este confessou ter ferido de morte, acidentalmente, a filha quando uma arma que estava limpando disparara. Quando a polícia interpelou o Dr. Smith sobre as suas notáveis deduções, ele respondeu que tudo fora muito fácil…elementar, a bem dizer.

Dois dos ossos eram do ilíaco, o terceiro do sacro; juntos formam a pelve. O estado dos ossos revelou a idade, o sexo e o fato de que a mulher tivera um filho. Uma parte dos ossos era mais pesada do que a outra, o que indicava a claudicação. Cravada num osso havia uma bala de espingarda comum. As bordas da lesão mostravam que ela vivera vários dias enquanto os ossos procuravam consolidar-se.

E os olhos castanho?

– Bem, ela devia ser egípcia, e, como sabem, os egípcios têm olhos castanhos – disse o médico rindo.

Com este caso, que ocorreu há 40 anos, o jovem médico começou a palmilhar uma longa estrada que o levou à reputação de que goza atualmente, como perito das técnicas modernas de laboratório de criminologia. Se o seu estilo lembrava Sherlock Holmes, o grande detective de ficção, isso não era coincidência. Na sua recente autobiografia, o médico, hoje Sir Sydney Smith, escreve:

“A investigação criminal é hoje uma ciência…Nem sempre foi assim e deve-se muito dessa transformação à influência de Sherlock Holmes. Conan Doyle teve a rara, talvez exclusiva honra de ver a vida ajustar-se à sua ficção”.

O paralelo entre os fatos e a ficção é espantosamente próximo. Holmes e a sua reprodução da vida real, Sir Sydney, saíram ambos da Universidade de Edimburgo. Sir Arthur Conan Doyle serviu-se do Dr. Joseph Bell, professor da Faculdade de Medicina daquela Universidade, como o seu modelo para o feiticeiro de Baker Street. E o colega do Dr. Bell, Harvey Littlejohn, foi professor de Sydney Smith.

Sir Sydney, por sua vez, tem sido professor, diretor da faculdade e reitor da universidade. Mas é o seu fantástico trabalho de detective que faz – agora com 78 anos e aposentado – ser bombardeado pelas cartas de policiais desconcertados do mundo inteiro. Sua especialidade, a Medicina Legal – outrora chamada jurisprudência médica – é a ponte entre a Medicina e a Lei. A polícia colhe as provas, mas cabe ao médico-legista determinar por meio de exames de laboratório os fatos básicos do caso.

Logo depois de o terem levado do Cairo para ser catedrático de Medicina Legal em Edimburgo, Sir Sydney foi procurado por Willei Merrilees, jovem sargento-detective, que tinha um problema. Um cofre fora arrombado e o único indício era um pedacinho de couro, do tamanho de uma unha, encontrado no local do crime. Sir Sydney tratou de submeter o indício a uma infinidade de exames. Sondou-o, olhou-o ao microscópio, examinou-o com o raio X e analisou-o quimicamente.

– O couro – disse ele afinal – é de um sapato de homem, tamanho 43. É preto, tem cerca de dois anos de uso, foi feito na Inglaterra e o homem calçado com ele andou recentemente por um campo adubado com cal.

Armado com esses dados, Merrilees se dirigiu a um bar de Edimburgo, que sabia freqüentado por um bando de maus elementos. Aproximando-se de um homem de quem suspeitava, disse:

– Que é que você foi fazer em campos cheios de cal?

– Estive ajudando meu velho e querido pai na granja – respondeu piamente o malfeitor.

– Muito bem – disse Willei bruscamente. – Com a informação que tenho do Professor Smith, posso perfeitamente meter o velho e querido papai em cana também!

O detective levou o homem para a delegacia e mandou o sapato para Sir Sydney, que o identificou como sendo o mesmo de que saíra o fragmento de couro. Diante das provas, o arrombador de cofres confessou e disse à polícia:

– Fiquem sabendo que é um bocado desonesto espiar a vida dos outros com um microscópio.

Sir Sydney Smith nasceu em Roxburgh, na Nova Zelândia, em 1883, filho de um faiscador de ouro. Depois de uma infância de pioneiro e de três anos de trabalho numa farmácia, o jovem Sydney foi estudar Medicina em Edimburgo. Abriu consultório, mas uma tragédia o impediu de continuar a exercer a Medicina. Já tarde da noite, um jovem lavrador bateu-lhe à porta pedindo que fosse a sua casa ver-lhe a mulher grávida e que se achava doente. Quando Smith chegou à casa no campo, encontrou a jovem com febre alta e sofrendo grandes dores. Sem poder falar, ela abriu os olhos, estendeu a mão e agarrou a mão do médico. Smith examinou-a, mas percebeu que não havia mais nada ao alcance dele nem de qualquer outro médico. Paralisado por essa certeza, ficou a noite toda segurando a mão da enferma até que ela morreu.

Sir Sydney ficou abalado com a sua impotência para salvar a moça. Chegando à conclusão de que talvez não tivesse temperamento para o exercício regular da clínica, escreveu para Edimburgo solicitando um lugar no magistério. A única vaga existente era no departamento de Medicina Legal, no cargo de assistente com vencimento de 50 libras por ano. Smith partiu para Edimburgo na tarde seguinte.

Pouco antes de terminar a Primeira Guerra Mundial – servia ele no Exército da Nova Zelândia – soube que o Egito precisava de um médico-legista para organizar um laboratório de polícia. Candidatou-se ao lugar e conseguiu-o.

O Egito se revelou um paraíso para o médico-legista. Havia por ano mais de 1.000 crimes de morte não apurados. Entre estes, contava-se uma série de crimes políticos no início da década de 1920. Nos seus esforços para desvendar esses crimes, Sir Sydney deu impulso à ciência da balística legal – a prova científica de as balas disparadas da mesma arma têm características próprias tão acentuadas quanto as impressões digitais humanas.

Os terroristas, empenhados em derrubar o Governo, haviam iniciado um programa de assassínio generalizado. Sempre que funcionários ingleses ou egípcios ligados ao Governo se apresentavam em público, eram metralhados. Os assassinos, camuflados camuflados pelas multidões nas ruas repletas do Cairo, descarregavam as pistolas contra as vítimas e fugiam. Embora a polícia conhecesse os bandos responsáveis pelos assassinatos, a identificação pareceu impossível até o momento em que Smith começou a estudar as balas fatias extraídas dos cadáveres nas autópsias e as cápsulas vazias encontradas pela polícia.

O Dr. Smith descobriu, sem dúvida alguma, que as balas tinham sido disparadas das mesmas armas: um Colt, uma Browning e uma Mauser – todas de calibre 32.

– Se encontrarem as armas – disse ele aos seus superiores – poderei provar que as balas usadas para os crimes foram disparadas por elas.

Foi então que, numa mormacenta manhã de novembro em 1924, sucedeu um caso impressionantemente inesperado que não só confirmou as asserções de Smith, mas também lhe deu fama mundial da noite para o dia. Sir Lee Stack Paxá, Governador-Geral do Sudão, voltava de uma cerimônia oficial quando, de repente, dois homens avançaram até seu carro e descarregaram as suas pistolas à queima-roupa.

Stack Paxá morreu no dia seguinte e Sir Sydney levou rapidamente as balas extraídas do corpo para o laboratório para exame. Eram em todos os seus detalhes iguais às disparadas nos crimes anteriores.

A polícia prendeu os suspeitos, mas não encontrou nem sinal das armas. Então, por puro acaso, um policial, enquanto interrogava dois irmãos, deu um pontapé num cesto de frutas. Debaixo de uma cascata de tâmaras havia duas pistolas: um Colt e uma Browning.

Sir Sydney recebeu as armas e deu um tiro com o Colt num fardo de algodão. Tirou as balas do fardo, examinou-as aos microscópio e sondou-as com uma tenta. Empertigando-se, olhou para os homens da polícia.

– Senhores – disse ele – foi essa a arma que matou Stack Paxá.

No tribunal, o promotor perguntou ao Dr. Smith:

– Pode afirmar que foi esta a pistola de onde partiram os tiros?

– Posso – respondeu Smith, que, em seguida, arrastou para a sala a sua aparelhagem de laboratório.

Quando acabou de explicar as suas comparações, o juiz perguntou ao advogado do réu se desejava fazer alguma pergunta. O advogado olhou para o médico, para os diagramas, pistolas e balas, depois sacudiu a cabeça. Não havia o que perguntar. Smith havia provado o que afirmava.

Foi enorme a repercussão do caso. Do mundo inteiro chegavam perguntas para Smith a respeito dessa “nova ciência”. Pouco depois recebia um telegrama oferecendo-lhe o lugar na Universidade de Edimburgo.

Em Edimburgo, as aulas do Professor Smith superlotavam a sala. Ator de extraordinária habilidade, gostava de aproveitar os casos mais recentes como temas de aula.

Uma tarde, foi diretamente do tribunal para a cátedra de professor.

– O nosso ponto de hoje – disse ele – é o espírito de observação. Acabo agora mesmo de ver um assassino condenado. O caso por pouco deixaria de ser julgado. A autoridade policial assegurava-me que fora suicídio. O homem fora encontrado perto da sua casa de fazenda com metade da cabeça despedaçada por uma bala, o boné na cabeça e a espingarda apoiada no braço.

– Eu disse ao policial: “É um caso de homicídio. Ninguém poderia despedaçar a metade da cabeça com uma bala e recolocar o boné. Além disso, se virar o corpo do homem, perceberá que os fundilhos das calças estão cheios de grama, mostrando que ele foi arrastado da varanda e colocado aqui. De mais a mais, este homem já estava morto antes de levar o tiro. Foi assassinado com um machado e o golpe foi dado exatamente assim!…”

Dizendo isso, Smith apanhou um machado atrás da sua tribuna, ergueu-o bem acima da cabeça e golpeou com ele a vêrga da porta, por entre aplausos ensurdecedores.

Na opinião de Sir Sydney, nunca houve crime perfeito.

– Mas tem havido casos de observação imperfeita – diz ele. – Ninguém pode entrar num lugar ou dele sair sem deixar sinais tão abundantes de prova como as impressões digitais. Descubram-se esses sinais e encontrar-se-á o culpado.

Nas suas horas de folga Sir Sydney conseguiu escrever um dos melhores tratados de Medicina Legal, que já foi traduzido para 12 idiomas; escreveu a sua autobiografia, Principalmente Homicídio; criar fama contador de anedotas; jogar golfe, criar a família (uma filha é médica no Canadá e um filho é um dos maiores poetas da Escócia) continuar a interessar-se pela Botânica e manter um esfuziante entusiasmo por tudo, desde o julgamento dos méritos do xerez à composição de poemas em verso branco. Sir Sydney é único numa era de especialistas. Como Sherlock Holmes, Sir Sydney é especialista em tudo.

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Uma resposta para Sherlock Holmes está vivo

  1. mundosherlock disse:

    O artigo não menciona o mês de sua publicação, apenas o ano. Em vista disso, o artigo foi postado em 01/01/1962.

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